quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

O açúcar é doce, o sal é salgado

3 Spheres II, Escher

sábado, 20 de dezembro de 2008

A maravilhosa leitura de Dogen, 7 séculos e meio depois

Dogen Zenji, nascido em 1201, é o fundador, no Japão, do que mais tarde seria conhecido como a escola Soto do zen japonês.

Seus textos começaram a me fascinar de uns anos para cá, e depois de ler algumas traduções eu, um tanto descontente com a esterilidade de alguns textos, começo a passar o dedo em cima do texto japonês original. Somente, claro, para ter alguma idéia melhor de certos conceitos chaves; dizem - pois eu não sei ler japonês - que o texto de Dogen é um japonês medieval que os japoneses modernos não necessariamente entendem, à primeira vista.

Digo maravilhosa leitura pois os textos são muito bonitos e bem escritos. Recomendo o Genjokoan e o Fukanzazengi, para início de conversa - e para final, também, pois são os dois para onde sempre volto, tirando o Bendowa.

Caso você, caro leitor, tenha dado uma passadinha de olhos na literatura zen online em inglês, notará a abundância de uma determinada expressão - realization - para definir uma coisinha estranha. Realization anda sempre junto com enlightement, o que todos já sabemos o que é, pois todos vimos o filme com o Keanu Reeves, e actualization, a palavrinha marota que me lembra um dos primeiros trabalhos acadêmicos em psicologia, sobre Maslow.

Realization/enlightement/actualization; grosso modo, a obtenção/percepção/alcançamento/realização (tornar real)/iluminação/despertar. Cabe ao tradutor e autor escolher a palavra que melhor lhe cabe: na maioria das vezes muitos optam por realization, que é uma palavra maravilhosa que recolhe 4 significados expressivos em um:

perceber/tornar-se consciente, conseguir/alcançar alguma coisa, acontecer, produzir/tornar real.

A questão é que este tal de realize é um conceito fundamental nos textos de Dogen, e pela falta de uma tradução decente em português e na vontade de saber um pouco mais sobre "o que ele quis dizer", eu fui dar uma olhada - e demorei para achar, mas achei.

Dogen nos diz, em poucas palavras, que praticar o budismo - neste caso o zazen, a meditação sentada - para alcançar a "iluminação" é ir cada vez mais longe dela. Como Sawaki roshi dizia: zazen é bom para nada, não há nada a se ganhar no zazen. Sentar-se em zazen é simplesmente sentar, shikantaza; shikan é "simplesmente" fazer algo. Mas, continua Dogen, mesmo que a prática do zazen, tão enfatizada por ele, não "traga nada", sentar-se em zazen é iluminação/despertar - realization - por si mesmo. Vamos dar uma olhadinha mais de perto.

Dogen nos traz esta expressão, comumente traduzida como practice/realization, ou prática/esclarecimento, prática/iluminação. Em japonês, ou melhor, em chinês ajaponesado [leitura on-yomi, leitura chinesa dos ideogramas], é shushô.

[Dogen escrevia alguns textos em chinês com pitadinhas japonesas, e outros em japonês mais cotidiano. A mesma coisa faziam outros autores, tanto em religião, filosofia, arte. Descartes, p. ex. escrevia alguns textos em latim, e outros no francês cotidiano. Usualmente quando o contexto era mais formal usa-se a língua mais "eclesiástica".]

shu é "prática", no sentido de uma disciplina, um treino, um estudo, um cultivo. Lembremos que um dos sentidos de "meditação", no páli original da época do Buda, é de "cultivar". A prática não se restringe somente ao meditar.

shô é mais difícil. No japonês moderno tem o sentido de provar, confirmar, verificar, certificar, e é usado em muitas construções relacionadas a certificados, provas, autenticação. Provavelmente seria um erro tomar a acepção moderna e fingir que nada tenha mudado desde Dogen; mas, ao mesmo tempo, é de se pensar por que este termo e não outro mais direto, como iluminação, (satori, go) despertar/bodhi (kaku), p. ex., tenha sido usado. Além do mais, diversos tradutores modernos optam por traduções como "verificação".

[ofereci links para os kanji por problemas de configuração do blog]

"Verificação" do quê, porém? O que é verificado com ou através da prática, sendo que prática e "verificação" são atividades conjuntas?

No começo do Fukan Zazengi Dogen coloca quatro questões, a primeira sendo conhecida como a pergunta que o incomodou durante tanto tempo, até ter encontrado uma "resposta" na sua viagem para a China:
O despertar do Buddha originalmente permeia tudo; como pode ele depender da prática e da experiência/verificação? ["Prática e experiência" são shushô.]
Ou, em outras palavras: se dizem que a natureza de buddha está em todo lugar, qual a necessidade de praticar?

Anos depois, em um texto [Genjo Koan] que escreve para um leigo (um não-monge), Dogen, depois de expor poeticamente o ponto de vista do despertar, termina com uma pequena historinha, um koan:
Hotetsu Zenji do monte Mayoku estava se abanando. Um monge se aproxima e pergunta: “Dizem que ‘NATUREZA DO VENTO SUBSISTE ETERNAMENTE, NENHUM LUGAR NÃO VISITADO.’ Então por que o mestre também usa um leque?” O professor responde: “Você somente entende que a brisa é, por natureza, constante, mas não entende a idéia que não há lugar que ela não tenha alcançado.” O monge disse: “O que quer dizer, então, qual é a idéia de NENHUM LUGAR NÃO VISITADO?” Neste momento o mestre simplesmente se abanou. O monge junta as mãos em profundo respeito.
E acrescenta:
Tal é a experiência que valida a doutrina buddhista, sua verdadeira mensagem tornando-se viva. “Eu não preciso usar um leque, pois de qualquer forma eu sentirei a brisa, se ela for realmente constante”. Falando assim perde-se o sentido tanto de constância quanto da natureza da brisa.
Prática e experiência não estão separadas, para Dogen; ou, "se você fizer a menor diferenciação, criará um abismo maior do que aquele entre céu e terra." É neste ponto que os ensinamentos budddhistas se tornam redundantes, e que a prática/experiência entra com força total. Voltando mais uma vez para o Genjo Koan:
Vendo as coisas como coisas Buddhistas [de um ponto de vista buddhista], então temos sabedoria e prática, temos vida e morte, temos buddhas e seres sencientes.
Quando todas as coisas não tem uma essência, não há nem delusão nem satori, não há nem budas nem seres sencientes, não há nem começos e nem fins.
O caminho do buddha plana acima da extravagância do primeiro e da austeridade do segundo, unindo começos com fins, unindo delusão com satori, unindo ser senciente com buddha.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Cadê marido?

Festival Xintoísta da Fertilidade, Kanamura, Japão

(Contextualização necessária: andávamos eu, Will e Jão pela Liberdade/Sampa, procurando por mochis de rua, que todos sabem que são os mais gostosos. Encontramos esta mulher, numa barraquinha improvisada com um carro, que não sabia falar muito bem português. Ela simplesmente apontava e dizia o preço para qualquer pergunta feita; quando a pergunta se estendeu por mais de cinco palavras - provavelmente Will maquinando alguma pauta nova - ela olhou para o lado e disse: "cadê marido?")

sábado, 29 de novembro de 2008

Bibi

Profundo mergulho na "natureza humana": um carro buzina na rua, e todos vão à janela a pensar "é para mim, é para mim!".

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Limpa na gmail

Levei três horas para limpar o meu mail no gmail. Montes de megas de informação inútil, que agora não mais existam - pelo menos para mim. Ficou o essencial e o pessoal, coisas que sempre deixo ficar.

Retraçar os seus passos postais virtuais nos últimos dois anos é uma experiência que sempre traz surpresas. Nossa memória é muito seletiva. Mesmo que exista a possibilidade de que "gravemos" tudo, a memória é uma construção a posteriori. Faz-se um esforço danado para fazer uma memória.

Quantos contatos em aberto, quantas perguntas prementes, quantas promessas não cumpridas! Quantos tiros para o ar, sem nenhum alvo. Quantos interesses agora distantes. Quantos planos agora esquecidos.

Isto tudo vem contra a constância imaginária que vejo na minha vida cotidiana. Embora, é claro, dois anos sejam muito tempo.

Percebi o quanto eu sou fuxiqueiro. As mensagens mandadas para personalidades acadêmicas, no Brasil e exterior, fazendo perguntinhas matreiras, exigindo textos inéditos e réplicas teóricas, ou até mesmo opiniões e compartilhando pequenas angústias.

As trocas de trocadilhos e xingamentos e engraçadices com amigos próximos.

Outras mensagens de grave consideração.

E afins.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

SED

Tem gente que critica a torto e a direito a "sindromização" de todos os comportamentos humanos acima da média. Eu não tanto, não mais. Acho divertido. Acho digno. E, além de tudo, é uma excelente forma de colocar as informações juntas.
Vejam, por exemplo, o caso da SED. Alguma idéia do que seja a SED? É um nome atual para aquelas pessoas que não comem certas coisas, ou que têm receio de provar coisas novas; quando a coisa fica muito restritiva, "acima do normal", é chamada de SED - Selective Eating Disorder.
"Menino, come este brócolis com nabo torrado e semente de linhaça, senão você vai ficar com SED e ninguém vai gostar de você!", grita a mãe para a criança que - com razão - não quer nada disto. Afinal, criança tem que gostar do leitinho da mamãe. E tenho dito.

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Metempsicose equina

Imagine que você recebe, no meio da sua vida pacata cotidiana, a visita de pessoas coloridas, de um lugar diferente e longínquo, que querem te conhecer melhor e fazem perguntas esquisitas.

E você tem 5 anos de idade.

Imagine também que uma noite elas te levam para uma sala e pedem que, de uma mesa, você diga quais objetos são seus. Sua mãe está ansiosa, assim como uma aura de expectativa envolve o lugar. As pessoas coloridas estão ainda mais coloridas e solenes. E talvez esperançosas. E elas são importantes. Don't fail mommy.

Termino a cena por aqui. Talvez seja a mesma que esta aqui, talvez não. Mas, de qualquer maneira, quando ouço este tipo de história não posso evitar de me lembrar da história do "Hans, o inteligente", der Kluge Hans.

Pelos idos do começo do século XX um cavalo, Hans, virou fenômeno ao responder, com batidas do casco, a perguntas variadas feitas pelo seu treinador. A história toda pode ser lida no lugar usual, para quem não conhece. No final - e o final que é interessante - é que descobre-se que o cavalo respondia, afinal, a "dicas" involuntárias na expressão corporal do treinador Fulano - e involuntárias repito, pois Fulano não o sabia, também.

A verdade é mais interessante do que a ficção. Um cavalo que sabe fazer contas e raciocinar verbalmente mas é impedido de comunicar-se a não ser por batidas com o casco é menos interessante do que um cavalo que responde a sinais corporais involuntários. Por quê? Um cavalo pensante é somente um homem disfarçado, enquanto que um cavalo é um cavalo, e pouco sabemos what is like to be a horse.

A trilha sonora do Kundun é maravilhosa. Philip Glass, tinha que ser.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Enternecimento... adormecimento.

E esta vontade, este desejo cravejado no mais cristalino do coração de cada um, de ser redimido, de ser salvo, de ser reconfortado.

Quando eu era mais novo - e isso não quer dizer muito mais novo - eu sentia algo, em alguns momentos, que chamava de "enternecimento", por falta de nome melhor. Enternecimento ele é; uma sensação de conforto, ternura, acolhimento, que me acometia de vez em quando nas situações mais inesperadas. Uma vez a minha vó, de visita aqui, me trouxe trouxinhas de doce-de-leite. Outras, depois de uma atividade física, sentindo o frescor do sangue. Outras, no colo de alguém amigo, recebendo cafunés.

Percebi, faz pouco tempo, que procuro por estes momentos, como se fossem cruciais para mim. Os momentos em que me enterneço.

E passamos a viver esperando por salvação - ou enternecimento - ou por amor.

As promessas são muito parecidas. O fogo inextinguível do amor, aquele que se encontra no olhar de dois apaixonados - e a promessa de que este fogo vive "dentro" de nós, jogado em um canto esquecido. A promessa do Cristo que diz que "você amará!": você não ama agora, você não vive neste Reino dos Céus, mas sim, você amará - mesmo sendo quem você é, agora. A aposta de salvar-se, de encontrar um acordo, uma harmonia com qualquer coisa maior que si mesmo; a tentativa de fazer este algo maior do que si mesmo.

Não é maravilhoso poder ouvir uma voz paternal que possa te dizer que tudo está bem... ou sentir o calor maternal que mostra que você nunca está longe de casa?

Mas e a vida, esta vida que nos traz nossos prazeres e dores diários, esta vida que pode acabar virando a espera da promessa? E se a promessa calha de não vir, o que há de errado?

É difícil viver sem sonhar, sem esperar. Dizem que despertar - despertar de viver a vida assim, sonhando consigo mesmo - é preciso. Viver não é preciso, se for sonhando. E agora?

domingo, 19 de outubro de 2008

Se eu tivesse um culto...

Totem e Tabu não é, e nunca foi reconhecido, como uma teoria antropológica séria. E eu, pessoalmente, não vejo um porquê para ser. Assim como o Édipo freudiano (do qual Lacan falava que era o "mito do Ocidente"), Totem e Tabu é melhor visto como uma peça imaginativa, um mitologema, uma historinha freudiana - embora talvez sintamos que Freud queria a validez de sua teoria. Whatever.

O que ele nos escreve em Totem e Tabu é o seguinte: a civilização nasce, neste momento "mítico", quando os filhos matam o Pai. O Pai, uma espécie de alpha male "violento e ciumento", tinha todas as mulheres para si. Detinha todo o gozo, lacanamente falando. Era mais forte que cada um dos seus filhos, que expulsava tão logo cresciam. Um dia os filhos reúnem-se ensemble e matam o Pai; canibais que eram, comeram a carne do Pai, de quem tanto invejavam quanto temiam - duas coisas que andam sempre juntas - e "adquirem" parte de sua força. Aí nasce o totem: o animal sagrado que deve ser caçado e comido apenas em um momento específico. Tabu contra incesto e a Lei (entre "iguais") seguem depois. Etc.

Freud retorna um argumento semelhante, e ainda mais interessante, no seu Moisés e o monoteísmo, anos mais tarde, perto da morte. Ele diz que Moisés acabou sendo morto pelos israelitas, e que o judaísmo seria uma espécie de decorrência desta culpa. Vá ler, se quer mais do que as minhas palavras toscas.

Relembro a todos os meus leitores cultos, que certamente leram toda a gesammelte werke freudiana, esta obra singela, para pontuar algo que, cada vez que leio, vejo e escuto mais, mais eu percebo: que os cultos apocalípticos em sua maioria não têm nenhuma criatividade intrínseca, pois repetem todos o tema da horda primeva, sem o assassinato.

O guru, o apóstolo, o mestre, o filho de D'us, é sempre um homem que consegue pegar todas as mulheres, restringindo aos demais homens o acesso a elas. Praticamente sempre. Mesmo se um culto desses não suprime a sexualidade - e a maioria o fazem - o mestre ascenso ou afins encontra uma maneira de convencer a todo(a)s que, além de acreditar em suas alucinações e devaneios evidentes, há de se dormir com ele. E nada de laços fortes familiares no grupo.

É uma coisa engraçada. Eu, se um dia tiver um culto, vou inventar outra história. Mas daí talvez não funcione.

A título de vizualização, um documentário recente sobre um culto norte-americano. (Há uma espécie de resumo do documentário, procurem nos linques e talvez achem.)


sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Anos e anos atrás li um livro chamado Sugar Blues. O título, em português, é inglês mesmo. William Dufty - também adepto da macrobiótica e o que a Wikipedia chama de ativista nutricional - faz um relato nervoso da história do açúcar no ocidente - lembra-me Galeano em suas veias abertas da América Latina -, e alerta com relação ao consumo - que ele considera excessivo - de açúcar.

Eu achei digno. Digo, o livro. Tirando as idéias mais radicais - que eu não vou dar o prazer de dar-lhes de bandeja assim - os argumentos são válidos e o livro é bem divertido. É preciso dar apenas uma colher de chá de confiança na confiança do autor nas teorias macrobióticas e quetais.

Eu, por meu lado, tive a minha experiência macrobiótica anos atrás e descobri o óbvio. O óbvio que a minha gurua alimentar, Sonia Hirsch, também descobriu. O óbvio que são conceitos pragmáticos e verificáveis, estes da "macrobiótica". Tente e verifique. E depois volte a comer um pouco de tudo.

Então eu dei uma colher de chá de confiança. E valeu a pena.

A história do açúcar é paradigmática. Assim como a nossa história recente será - eu tenho absoluta certeza - metaforizada e pensada a partir do "lixo", num futuro qualquer, a história do ocidente moderno anda e andou lado a lado com o açúcar, num ritmo cada vez mais crescente desde a "topação" do Novo Mundo e a colonização posterior. Em poucas palavras, de luxo para poucos passou a mercadoria extremamente barata para quase todos. O preço do açúcar, não é uma loucura? Baratérrimo. E ainda tem gente que reclama.

Soa triste aos meus ouvidos, porém, a história que ouvi recentemente, de um documentário brasileiro recém-produzido: a da mulher que, por falta de comida melhor, alimentava seus filhos com água e açúcar durante alguns dias. Tinha alguns que ela podia dar coisa melhor, um arrozinho ou feijão. Muita gente deve passar por isto. Não é de admirar que as crianças tinham dor nos dentes.

Alguns talvez até pensem: mas uai, água com açúcar, deve ser bom, afinal açúcar é glicose, carboidrato, energia. É isso sim, mas somente isto, e nada mais. Dufty enfatiza exatamente isto: o açúcar branco, refinado, puro, é o ponto final de uma cadeia que começa ou com a cana-de-açúcar ou beterraba, passando pelos melados, pelos açúcares não-refinados e enfim terminando com o açúcar branco. Ele o compara com a heroína - também um pó branco altamente refinado do suco da papoula, e também para reforçar a imagem do açúcar como "droga".

Suspendamos a imagem por aqui, porém. Pensemos somente que aquele delicioso caldo de cana que eu tenho a sorte de poder tomar, nas tardes de verão no Mercado Público, foi tirado da cana ainda verdinha e fresca, cheia de outras coisas além de glicose: sais minerais e vitaminas. Os caldos de cana e melados, todos sabemos, são ricos em ferro e fósforo e outras coisinhas. Estes últimos são progressivamente diminuídos, a cada degrau a mais no refino do açúcar, restando no final uma sacarose quase pura. Sacarose sem seus acompanhantes no metabolismo, acompanhantes que estariam presentes se nada fosse perdido no processo.

Eu me considero um "naturalista", quando se trata de comer. Tenho em mente que comer, além de ser gostoso e tudo o mais, é uma relação orgânica primal, uma das mais antigas na natureza. Antes mesmo de ver, comíamos. Antes mesmo de pensar, comíamos. Quer dizer, uma estrutura/servivo/whatever retirava de outra estrutura/servivo/whatever o que fosse preciso para renovar esta estrutura. Absorver. Metabolizar. Tirar dali para pôr aqui. Trocas tróficas. Interdependência pura. O que significa ser "naturalista", neste sentido?

Significa pensar que temos uma história de metabolismo, como organismos, nós primatas pelados; pensar que a nossa história alimentar tá ligadinha ali com o que somos hoje. E que há maneiras de comer que não só são mais eficientes, mas que também provocam mudanças no metabolismo e podem mexer com coisas tão diversas como o humor ou o pensamento. Bem, nem são tão diversas assim.

O tripé da alimentação brasileira, nas zonas urbanas, é composto por carboidratos complexos refinados (massas, farinha branca), gorduras e açúcar. Proteínas também estão presentes, mas muita gente simplesmente não tem dinheiro para comer carnes e leguminosas com frequência. Poucas fibras e minerais e vitaminas - mesmo que a farinha seja vitaminada, hoje em dia. Eu sei, eu sei que estou falando como um nutricionista, e vou então concluir de uma vez: não me admira que a obesidade esteja crescendo cada vez mais, juntamente com a diabetes tipo 2, em menor escala. E, ironicamente, não necessariamente nas classes que alimentam-se melhor, mas nas classes média-baixa e baixa. A obesidade não é mais coisa de gente rica. É verdadeiramente democrática.

Mas não só a obesidade. Também o humor. Também uma certa forma de vitalidade ao comer bem. Um dieta crônica, "engordativa", com altos teores de açúcar e uma certa baixa metabólica nos oligoelementos - gostasse dessa, não? - tem tudo para deixar uma pessoa mais cansada, mais mal-humorada. Mas aqui eu já extrapolo, embora não sem razão.

Na época dos grandes césares, não existia o açúcar refinado. Tampouco o chocolate. Nos triclínios, no máximo, o mel e os melados tirados de árvores davam a sua presença. Coisas mais caras que R$ 1,99 o quilo. Gerações passaram a léguas de doçuras diárias. A doçura foi, durante muito tempo, um sonho; o paraíso era cheio de frutas dulcíssimas; o mel exsudava de flores melífluas, e todos podiam fartar-se deste dulçor. O bebês nascem gostando do sabor doce, e nisto encontram seu gosto embalado pelo leve doce do leite materno.

Hoje o paraíso fica mais do lado da heroína, para muitos.

"Se você encontra mel, coma apenas o suficiente, para não ficar enjoado e vomitar." (Provérbios, 25:16)

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Things People Say

Things people say contém algumas coisas hilárias. A parte mais bizarra é a que contém trechos de "inglês estrangeiro"; eu me mijo de rir lendo e relendo muitos deles.

Our staffs are always here waiting for you to patronize them.

Destaque para estas instruções duma forma para gelo.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Por que as pessoas dão esmolas para cegos e aleijados, mas não para um filósofo?

Diógenes: Elas sabem que um dia podem ficar cegas ou aleijadas, mas jamais pensam que terão uma filosofia (but they never dream they will take up a philosophy).

rá rá rá rá rá rá rá rá


sábado, 4 de outubro de 2008

Prelúdio a uma conversa sobre religião

50 anos atrás aprendia-se latim na escolas normais, e Regina - uma das personagens intrutoras dos manuais - cantava o Hino Nacional, ao mesmo tempo que mirava a cruz do Salvador - em latim.

Audierunt Ypirangae ripae placidae / heroicae gentis validum clamorem...

Depois ela viajava com seu Pai, nas férias de verão, e talvez se despedisse com um amém, não saberia dizer. Muito louvada diligência sua é.

Era uma menina muito virtuosa, e talvez até mesmo cívica.

Hoje, o tempora! o mores! quem aprende latim na escola? Ninguém. Mas para quê, não é mesmo, se depois do Concílio Vaticano pelos idos dos 60 a missa deixa de ter partes em latim? Ora pois.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Beezahr

Mais de dois anos atrás comecei um blog no WordPress.

Chamava-se "Just to Type It", e eu pretendia escrever um pouco de inglês a cada dia, para treinar.

O segundo post chamava "Kittens I", onde eu falava de gatinhos. Ei-lo:

Kittens are small, furry animals that usually live in the dark streets. They appear to you at night, meouwing like the little poor beasts they are, and you get so touched by these cute creatures, that in the end they go to live in your house to grow up to fat cats. Before that, though, they can be put in the palm of your hand. Their fur is soft like a baby's hair, and you can, then, imagine why some people pay a lot to get their hands (or shoulders, or armpits, I really don't want to know where) in dead corpses' fur.

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Minha Mente Mecânica

Eu fico acima de 99 porcento das pessoas em um teste. Um teste de raciocínio mecânico. Pasmem. No teste de raciocínio verbal, eu que acreditava ter uma mente feminina à beça, fico na média levemente superiora, acima de 64 porcento das pessoas.

Claro que eu discordei do teste de raciocínio verbal. Como eles querem uma única alternativa para algo que poderia ter mais de uma interpretação? Tsc. Acho que a minha mente é mais feminina do que qualquer teste jamais possa verificar.

***

Uma idéia de intervenção artística, para aqueles que a queiram roubar (alguém há de querer).

Poemas ou pedaços de prosa ou letras de música seriam sentidos na pele, através de uma tecnologia que posso imaginar (mas tenho preguiça de descrever), transcritos para o alfabeto fonológico da Internacional de Fonologia - aquelas maravilhosas letrinhas, muitas vezes esquisitas, que pode encontrar-se dos lados das palavras em muitos dicionários.

Não se esqueça de fornecer opções vegetarianas na vernissage.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Trabalheira

Eu vou chorar, eu vou resmungar, eu vou morder, eu vou morrer, mas eu acho que não conseguirei ser um escritor mediano do jeito que as coisas vão.

Sabem? Eu tenho medo de tudo, praticamente. Estou tendo. Qualquer coisinha me dá um calafriozinho esquisito dorsal nos braços e no peito, um nhéc-nhéc esquisito que tem a ver com agarrar, com pegar, com sangue nas mãos. Os macacaquinhos têm aquele reflexo de agarrar nos pêlos das mães, pois não? Pois sim, acho que macaquinho também. Embora sonhe em não ter que fazer mais nada do que escrever - e escrever é um pouco além de sentar na frente de um teclado e digitar, com ou sem caneca de café, depende da modalidade de culpa química no momento - eu me preocupo em ser o Lucas Silva e Silva. Em vez de o ser, porém, efetivamente e realmente.

Sendo-o, quem sabe nada disso levantaria poeira. Acho que transformarei em minha tese pessoal: nada quando acontece é pior do que parece. Tenho esta necessidade de provar isto para mim mesmo, de a à z.

Minha tese, porém, se refletirmos um pouquinho que seja nela, vai pelos dois caminhos. Tem o que acontece e parece pior antes, e tem o que acontece e realmente é muito pior do que quando você imaginava.

Então... estamos todos de acordo que no fim eu vou ter que catalogar todas as coisas que aconteceram, acontecem ou acontecerão, de acordo com os dois critérios acima? Isso sim é que é uma trabalheira. Quem precisa ser escritor com tamanho trabalho pela frente?

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

Algumas palavras

Confesso: fui um idiota até o presente momento.

Como passei grande parte dos meus anos de consciência sem me angustiar tanto, sem perder a esperança, sem sentir esta vontade de morte que me tomou recentemente? Uma resposta seca: pensando que muitas das coisas que aconteciam com os outros não aconteceriam comigo.

Sempre tive esta confiança arraigada, embora sutil, de que as coisas "ruins" aconteciam com as pessoas por uma espécie de erro subjetivo. Todas as moléstias que afligem-nos cotidianamente, depressões, loucuras, paixões, todas eram vistas por mim como uma coisa facilmente remediável. Não posso dizer como, exatamente. Talvez tenha vergonha de dizê-lo. As pessoas "de boa" não teriam estes problemas. Seriam desequilíbrios, ou qualquer coisa do tipo. Em termos "naturais", tais coisas eram exceções, exageros.

Talvez possa ser assim. Como saber?

Mas eu sabia que certas coisas não poderiam acontecer comigo. Era sempre coisas que aconteciam com os outros, e não aconteceriam comigo. Isso dá uma espécie de tranquilidade, não? Nada mais tranquilizador de que tomar esta posição imparcial, um tanto de fora, de onde se pode olhar e simplesmente constatar.

E ir correr na Beiramar.

Até que alguma coisa abalou esta certeza subjetiva, esta certa imortalidade do meu eu. E passei, como de praxe, para o lado contrário.

Um dos antigos estóicos dizia: eu sou humano e nada do que é humano me é estranho. Quando algo acontecer a mim, quando for preso, quando estiver sofrendo as dores de algo, não posso dizer que era uma surpresa.

Queria ser um estóico, ao menos por uns momentos.

Pois agora sinto este excesso de humanidade. Tudo o que acontece com os outros pode acontecer comigo. Algumas coisas acontecerão de certeza, outras são probabilidades. Mas, de modo potencial, tudo pode acontecer, e de certo modo tudo já aconteceu.

Depois do suicídio do meu amigo, recente, numa conversa com um amigo eu dizia não ter mais certeza de que "as coisas acabam com a morte". Deve ter soado uma declaração um tanto esotérica. Mas, de certo modo, parece-me um tanto assim. Todas as vidas humanas passam por aqui. Algo acaba.

Existe um assassino, um estuprador, um ladrão, em mim. Modo de dizer. Todas estas coisas estão em mim. Poderia ser. Não queria colocar um peso moral nisto, mas é terrificante perceber que talvez não dá mais pra distanciar-se tanto das coisas que olhamos e que nos arrepiam de pavor. As coisas que preferiríamos deixar do lado de fora de casa, e nos proteger com unhas e dentes.

Pois, de certo modo, eu talvez tivesse um pouco de razão: em termos naturais todas as paixões e loucuras e ideais sejam uma desnaturalidade. Um desequilíbrio. Mas afinal, onde é senão com a "morte", com a entropia, que um equilíbrio seria atingido?

Blindness

And oh, I forgot to tell you.

Vi "Blindness" ontem de noite. "Ensaio sobre a cegueira", um dos títulos mais curiosos, ao meu ver. Um livro que mergulha fundo em questões humanas, beirando o escatológico, ser chamado de "ensaio" - um ensaio sempre reserva uma distância intelectual - é uma pitada de sarcasmo.

Pensem em um livro de temática semelhante, como "O Senhor das Moscas", do Golding.

Li o "Ensaio" com mais ou menos 16, 17 anos. Um dos livros mais marcantes. Escrevi dezenas de páginas depois dele. Fui tomado por ele. Emprestei-o para alguém e ele sumiu. Saramago, que recentemente começou a escrever em um blog, com seu estilo cursivo e contínuo que me cativa e me marca, produz uma obra prima não em sua criatividade, mas em sua veemência.

Assistam ao filme e conversemos depois.

Where ignorance is bliss,

'tis folly to be wise.

Pequeno refrão, se não me engano tomado dos poetas transcendentalistas ingleses circa 1700. Preguiça de googlear, e para quê?

A questão: ignorância pode ser fonte de tranquilidade, de felicidade. Saber é cruel. É uma tolice querer saber. Então.

Pergunta em aberto. Importante para mim, pois até o momento tenho escolhido ir pelo caminho do saber. Saber não no sentido de um conhecimento filosófico ou científico, mas uma verdade, para se dizer assim, de mim mesmo. O que tem se mostrado, ultimamente, uma merda.

A vontade que tenho é de virar camponês, esquecer tudo, fortalecer os músculos, passar um pouco de fome, preocupar-me com coisas mais concretas; coisas mais triviais, do meu ponto de vista, pois elas estão praticamente dadas, pelo momento.

Em termos figurativos, ir morar em um kibutz e pronto. Uma coisa assim que poderia ser salutar.

Mas então, este sentimento de, kibutzeando ou não, as coisas acabariam me perseguindo, este saber encontraria um meio de aparecer novamente e ficar me perguntando? Por que isto?

"Então, Lucas", enquanto eu escavo um pouco de terra seca para enxertar alguns pezinhos de raiz-forte, "será que você esqueceu de mim?", pergunta a pergunta. E eu vou dormir com esta coisa enxertada em mim.

Isto acontece. Em retiros e tal. Sou sempre o último a dormir. Começo a imaginar que certas perguntas continuam pressionando até encontrar uma resposta satisfatória - ou então até a desconstrução da pergunta.

Mas enfim. Quem disse que isto é somente um mal? Ninguém. Mas tem um certo precinho a ser pago, uma espécie de mal-estar que a maioria dos meios que possuo pode somente aliviar um pouquinho. Sejam cigarros ou remédios ou conversas.

sábado, 13 de setembro de 2008

Mais uma do Orwell

Down and Out in Paris and London, um livro magnífico que li de uma sentada na tela do computador (sim, é cansativo).

Para você, caro jovem classe média, com medo da vida e da pobreza, não tema mais! Orwell, em uma andança juvenil, passa fome em Paris, antes de trabalhar como plongeur, e vira vagabundo em Londres, com direito a uma abortada invectiva homossexual.

Bem, passar fome e virar vagabundo - de uma maneira digna, para se dizer assim - é uma experiência que facilmente pode ser fonte de uma história, sem muitos segredos. O mesmo vale para Orwell. O livro é bem escrito, com detalhes interessantes e um estilo de narrativa que antecipa, em parte, 1984.

Uma das coisas que mais me chama a atenção, sendo eu mesmo um jovem classe média que tem medo da vida e da pobreza, é esta tal de resiliência, esta capacidade de suportar situações extremas. Os medos antecipados são sempre piores do que a situação em si. Um exemplo? Imagine-se sendo atropelado por um carro. Horrível, não? Deve ser pavoroso e dolorido. Pois bem, na minha experiência não o foi exatamente assim. O pavor vem somente depois, assim como a dor.

É com uma advertência semelhante que Orwell começa sua obra: quando o cinto aperta, não é o medo e a preocupação excessivas que batem à porta.

É ou não é ou não é? É!!

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Orwell Diaries

O diário de George Orwell - escrito entre 1938 e 1942 - será publicado em "tempo (i)real". Exatamente 70 anos depois.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

How soon is too soon?


Not soon enough. Laboratory tests over the last few years have proven that babies who start drinking soda during that early formative period have a much higher chance of gaining acceptance and "fitting in" during those awkward pre-teen and teen years. So, do yourself a favor. Do your child a favor. Start them on a stric regimen of sodas and other sugary carbonated beverages right now, for a lifetime of guaranteed happiness.

O mais cedo possível. Nos últimos anos, testes de laboratório têm demonstrado que bebês que começam a beber refrigerantes durante o período inicial de formação têm uma chance maior de serem aceitos e se "encaixarem", nos complicados anos da adolescência, e antes. Então, faça um favor a si mesma. Faça um favor ao seu filho. Coloque-os em uma dieta estrita de refrigerantes e outras bebidas gasosas doces agora mesmo, para uma vida de felicidade garantida.


(não garanto a veracidade...)

O RLY?


Finally, in what seemed to me a startling detour, she [Madonna] asked whether I believed in death. I answered somewhat bleakly that I did. When I turned the question back on her, she announced that she didn’t because she believed in the concept of reincarnation as taught by the Kabbalah Center. “The thought of eternal life appeals to me,” she told me, as though she were trying on a new outfit in front of a mirror. “I don’t think people’s energy just disappears.” I wasn’t sure what she meant by this — whether Madonna believed in a concrete form of reincarnation whereby she would return to earth as herself, all blond ambition and strenuously toned body, or in the more abstract concept of gilgul neshamot. But it made eminent sense that her link to the center would be based on something more than an altruistic vision of egoless self-betterment and earthly bliss, which is the message she conveys in her statements and songs. When I asked her why she hadn’t stuck with Catholicism, which incorporates belief in an afterlife, she snapped in reply: “There’s nothing consoling about being Catholic. They’re all just laws and prohibitions. They don’t help me negotiate the world.”

http://www.nytimes.com/2008/04/13/magazine/13kabbalah-t.html?scp=8&sq=&st=nyt

terça-feira, 19 de agosto de 2008


Encontrado em um site qualquer.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Para Casa

Existe um estranho sentimento que floresce em determinadas estações interiores: este de as coisas acontecerem na época em que elas têm que acontecer. Tem gente que o poderia chamar de sincronicidade - eu não ligo. Livros que caem na minha mão, pessoas que conheço - tudo que possa portar um conteúdo, significados. Tem horas em que tudo anda como anda - sofregamente, mas com um pouco de lubrificante aqui e ali - e tem horas em que tudo assume este aspecto sinistríssimo de um pathos desconhecido.

O que qualquer um que tenha uma aproximação mínima com a loucura como ela é pode sacar: a loucura, trata-se disto, elevado à potências nevrálgicas.

Passei por experiências castradoras recentemente. Ainda mantenho os meus dois colhões, para a felicidade da minha voz de barítono e do meu futuro amoroso; entendam experiências castradoras como experiências de perda, de frustração, de privação.

Antes - ainda - amar e demais quetais que esta palavrinha pode conter - não vou muito longe, sei do fastio geral sobre este tipo de histórias.

Este ano, meu irmãozinho-a-ser, tão bem esperado e cuidado, morre no dia em que nasceria, por descuido médico. Aqui sentimos o suave absurdo que encompassa os verbos "nascer" e "morrer".
Recentemente quase morro, morreria numa linha temporal imaginária onde potentes antibióticos não existiriam. Sinto uma dor excruciante e temo: eis que isto é viver, supurar um órgão aparentemente sem uso, com dores atrozes, e ficar cada vez mais sonolento até dormir ad aeternum (o cirurgião passa pelas macas no corredor e me vê sonolento: para a sala de cirurgia este garoto, depressa).

Um amigo - um trekker do mesmo caminho - suicida-se estes dias. Missa de sétimo dia, hoje. Existe um buraco com forma de Fulano no universo. Deixa de herança, entre outras coisas, uma pergunta, que não quer calar.

Acabo de voltar de São Paulo. Chego em casa depois de dar uma volta no centro com Jão, que passou três dias por lá - eu uns 10 - na designosa quitinete do Will. Meu gato me recepciona à maneira dos gatos: efusivamente no início, algo que pode confundir-se com demanda insatisfeita de algo com que os gatos nunca estão satisfeitos, então contorce-se em cima do meu colo e ronrona, forçando meu dedos a roçar diversas partes do focinho e pescoço. Depois brigamos de mentirinha - ele morde cada vez mais forte, preciso fazer com que ele veja que estamos brincando, e só - e então corre para a comida.

São Paulo, a metrópole que eu amo odiar, ou odeio amar. Poucos meses desde a última vez em que lá estive, e sinto tantas diferenças em mim. Cansaço. Ansiedade. A cidade se abre um pouco mais, a cada vez que lá apareço; mas aquilo é algo diferente, eu sou um turista. Um estranho recepcionado como turista, e a cada momento Sampa me dirige a palavra, nos seus turbilhões de gente, sons e esquinas: se vieres para cá, conhecerás o que é uma metrópole.

Eu, que ultimamente tenho pensando tudo em termos de lixo, no meio do lixo. Acompanho o lixo com os olhares, dos olhos e da alma: temo pelo lixo, absorvo um pouco do lixo. Homens, cidades, metrópoles erguem-se por cima do lixo, e eu olhando para ele. Algumas pessoas são lixo; outras cobrem-se de lixo.

Civilização é: sabermos o que fazer com o nosso lixo. Quanto melhor a resposta a isto, maior a civilização e a paz de espírito de seus condenados. Eu tenho esta idéia de que poderíamos jogar todo o nosso lixo no sol, começando pelo atômico. Ia ser uma solução boa, tirando o custo astronômico, mas nos coloca em um problema ético, se podemos dizer que o universo comporta a ética, assim como as quatro forças fundamentais: estaremos tirando da Terra para jogar no Sol. Nada se perde, em termos energéticos, mas vendo desta forma talvez o lixo seja importante, e consigo imaginar um futuro em que tentaremos preservar não o ambiente, mas o nosso lixo.

Mas enfim, deixo para os futuros conterrâneos que pensem nos seus problemas prementes.

Qualquer um de sensibilidade um pouco mais aguçada pode perceber: não estou preocupado com o ambiente, o destino dos imigrantes, riqueza e pobreza, com as experiências de perda per se. Preocupo-me com isto pois tudo isto, de uma maneira assombrosa, me faz temer por mim mesmo. Angustio-me? Por mim. E estou angustiado, ah como estou angustiado. Se antes, o jovem deus prometéico que eu prometia ser, esperando pela Coisa garantida, pouco temia, agora algo rui e eu tremo de medo, relegado à mais simples neurose. Comprei a minha mortalidade carimbada e ganho mais angústia. Não digo, não posso dizer, que a barganha é sempre esta, mas comigo tem sido assim e nem mesmo sei se voltaria a ser aquele belo deus.

Vejo, porém, que as certezas - as certezas que temos em nossas vidas, a certeza de que "seremos" felizes ou infelizes assim ou assado, estas certezas que estão por trás de qualquer angústia - podem ser mortais. As certezas podem ser mortais, e disto eu não tenho certeza: eu sei.

É quando estas pequenas coisas das quais falava no começo, estas pequenobscenidades, começam a juntar-se e a sugerir uma ordem de certeza, esta pequena porta dos fundos para a mansão dita "loucura", que podemos sacar que as certezas podem ser mortais. Nenhum juízo de valor atachado a isto. Sabemos, porém, que as certezas podem ser mortais.

Isto foi sussurrado no ônibus, de volta para casa.

Prova de que as certezas podem ser mortais? É justamente por causa delas que as pessoas se matam, ou deixam matar.

Na festa da Nossa Senhora de Achiropita, comemos beringelas recheadas, antepastos, fogazzas e uma deliciosa polenta. Na cantina italiana próxima de casa, um carbonara, entradinha de sardela e demais petisquetes. Reportagem para um folhetim diário nos concede passagem por dois restaurantes chineses: um pra encher, outro pra degustar - refrescante sopa de vinagre. Queijos. Vinhos. Pães. Pessoas, muitas, nas ruas; cultura, livros, falação. Tudo o que se oferece na vida como civilização - ou melhor, como excesso de civilização. O excesso caracteriza um turista, o excesso caracteriza algumas pessoas. Há quem se especialize no excesso, outras na privação. Muitos confortam-se no meio termo. Quem sustenta a casa? Não sei.

Em Floripa o ar está fresco e há árvores nas ruas. As calçadas estão relativamente limpas. A maioria das pessoas têm casacos nos ombros. Ah. Todos sonhamos com um mundo melhor, e a maioria de nós faz suas apostas neste sentido. Sinto um terror, pequeno e contido, porém terror, ao me deparar com um cuidado que chamo de feminino, por faltar palavras. O cuidado, a vontade de preservar, de cuidar de algo infante, imberbe, de algo que pode passar por um pedaço de carne, ou cuidar de um pedaço de tecido, ou de uma história. De preservar, de curar, de fazer com que cresça; não só maternidade, não o que dá vida, mas o que a preserva. Para preservar, algo cai fora, de maduro.

Pobreza no meio da fartura. Ah, mas que pobreza irremediável, esta.

Qual a sua relação com a loucura? Dizem que uma análise com Lacan começou com esta pergunta. Muito, muito pertinente; uma elegante pergunta de gênio - e de cuidado.

sábado, 31 de maio de 2008

Demonstração

Os sonhos neuromânticos retornam a assombrar a casa paterna.

Afinal, de que mais podemos falar uns aos outros, se não através de deliciosos aparelhos e aparatos? O sintetizador, invenção tipicamente ocidental e sécula víntica, toma o lugar da nossa produção textual-musical. Cultuamos o sintetizador; não em suas pequenas peças de plástico e madeira. Vemos o sintetizador, que sintetiza em si madeira e plástico: que digitaliza o som, que demonstra que o que antes era características de materiais concretos e visíveis - conchas, sapatos, cordas de crina de cavalo, pinos, sinetes, gatos pardos - agora pertence a um reino hipernatural, um reino gótico de ondas de alcance máximo, de arrepios eletrônicos no velho deus-demônio cartesiano.

Supernatural, de über não podemos mais, todos os über estão head-over-feet.

Quem teme os amantes da música eletrônica?

O divã freudiano na discoteca; sonhos onanistas com o pé da mesa, ou passos surdos na lama de uma rave chuvosa?

Ó, o pai que se torna mais surdo, mais mudo, mais múltiplo. Pequenos pais, pais a serem olhados na distância de um horizonte de eventos cada vez mais distante e somente-no-futuro; o nachträglich aponta não mais somente para antes, mas para o depois do antes.

Então... não cultuamos o sintetizador. Temos nos espelhos em que nos vemos um pequeno chamuscado para qual não temos nome, e não costumamos nos perguntar, na cálida frigidez da música e dos protocolos antiquados já na porta de entrada, que apesar disto sucedem-se em uma rapidez de epiléptico - temos nestes espelhos borrões verdes de ferrugem, maquiagens de espelhos; olha, os espelhos também estão maquiados.

sábado, 8 de março de 2008

Moisés no Daime

Não consigo entender a indignação das pessoas perante proposições como a seguinte: Moisés, considerado o principal profeta da religião judaica, pode ter ingerido uma substância semelhante à ayhuasca, conhecida no Brasil como chá do Daime.

Qual o problema? "Uma ofensa contra a religião"? Ah, por favor. Moisés não comia, não cagava, não respirava? O psicólogo acima propõe uma teoria que pode ter um fundo de verdade, ou não - esta linha de pesquisa que poderíamos chamar de estudos sobre religião e etnomicologia. Já foi proposto que o vedismo antigo nasceu do culto do soma, que pode ser um cogumelo; outro propõe que os antigos Mistérios gregos tinham como base uma bebida que continha alcalóides do esporão do centeio; essas propostas todas, o que há de tão desrespeitoso nelas?

Afinal, como um professor me disse: o fígado é o mesmo para todos.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Arte e vida, vida e arte?

Em poucas palavras: no ano passado um artista costa-riquenho, Guillermo Vargas "Habacuc", pegou um cachorro vira-lata das ruas e amarrou-o em um canto de uma exposição artística, perto de uma parede onde se encontrava escrito, com ração de cachorro, a frase "és o que lês". O cachorro, sem água e sem comida, morreu de inanição.

Alguns outros detalhes podem ser lidos aqui. E um pequeno videozinho para incitar emoções.

Certo ou errado? Sádico perverso ou artista militante? Cegos ou tolos? O que você acha?

Moralmente acho condenável, e artisticamente acho tolo e irresponsável. Se o objetivo do Guillermo era suscitar discussões, fazer pensar e refletir sobre determinada ocasião - seja a morte da Natividad ou a morte da bezerra - ele poderia suscitar isto, como milhares de outras pessoas fizeram antes, sem ter que matar um cachorro de fome.

E a Bienal de Honduras de 2008 pede que ele faça a mesma performance. Daí já é demais. Quantos cachorros vamos ter de matar?

Devo agradecê-lo, contudo, Guillermo, por proporcionar-me uma das cenas mais difíceis de tirar da cabeça: as pessoas discutindo - arte? - lá no salão, enquanto o cachorro esfomeava. O carinha fumando o cigarro deu o toque especial. Alguém manda a foto pra ele colocar na parede da sala, por favor?

E, contudo, eu também faço parte de tudo isto. Consigo colocar-me no lugar do moço do cigarro com mais facilidade que a minha consciência me permitiria.

domingo, 27 de janeiro de 2008

Adeus, Pedrinho

Meu (meio) irmão nasceu natimorto, nesta madrugada. Ainda não temos certeza o que foi que aconteceu, mas tudo indica que se trata de anóxia intra-uterina - o que saiu no atestado de óbito. Um carinha grande, 3 quilos e meio, bonitinho; eu que esperava uma cara de joelho fiquei surpreso com os belos traços neotênicos. Estava tudo bem encaminhado, no prazo certo, pronto para um parto natural... e hoje de manhã acordo com os choros de minha irmã...

O que me dói mais não é a morte de meu irmãozinho, Pedro; é ver a Tati, mulher de meu pai. Ah, isso doeu. Ah, isso me faz chorar. Para mim o pequeno Pedro não sofreu, nem se sabia Pedro; entristece é ver tanta expectativa, tanta esperança, frustrados. Dói muito para quem está vivo, e não para quem está morto.

O olhar de uma mãe que perdeu o filho desejado é de cortar o coração.

sábado, 26 de janeiro de 2008

Ti odio, zifio!

A ator que fez Brokeback Mountain morreu, estes dias, em infelizes circunstâncias. De acordo com o folheto do lado, ele agora está no Inferno, começando a cumprir sua Sentença Eterna.

"Heath Ledger pensou que era muito divertido desafiar Deus Todo-Poderoso e sua Palavra, a saber: Deus Odeia as Bichas e os Apoiadores das Bichas. Ergo [adorei este pequeno toque de retórica latina] Deus odeia o balde de lama suja e sórdida, temperado com vômito, conhecido como Brokeback Mountain - ele também odeia todas as pessoas que tem qualquer coisa a ver com isto."

Enfim, o recado é: Deus não está no melhor dos dias e odeia, odeia muito tudo isso. Reunamo-nos em prece para que Deus possa sair do seu pequeno histerismo - afinal, quem não odeia de vez em quando?

Deus também deve odiar a internet, já que todos os endereços devem ser escritos em minúsculas, e todos nós sabemos como Deus Gosta de Falar em Maiúsculas.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Blue within Blue


Um dos poucos mamíferos inferiores a viver em uma atmosfera saturada de melange, este gato mostra a típica coloração azul intensa característica dos consumidores da afamada substância. A tonalidade demonstra uma concentração de pequena a média; concentrações maiores provocam o "azul dentro do azul", um azul escuro profundo que pode ser confundido com preto.

A figura acima, um raro vislumbre do amba-saia-dor Grumi Tumi de Begela, indica uma dieta saturada de melange, o que coloca em relevância a atual idade de Tumi - 155 anos - e as somas exorbitantes gastas em importar a cara mercadoria.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Ói o livro do Eça

Depois de um mergulho desejado e forçado - que luta contra as incessantes ondas da rotina, que ameaçam engolfar todo projeto dissidente! - na literatura de língua inglesa, meu retorno para o português dá-se com surpresa e delícia. Não querendo ler O Primo Basílio - confesso-o, nunca o li - por temer um romance demasiado burguês, ao menos em sua ambientação, escolho A Relíquia, do mesmo autor, Eça de Queiroz. Li o tal em um dia e uma noite. Além de um português portugaico delicioso... que deliciosa ironia, que maravilha despretensão! Deixo a curiosidade de um leitor passante, dos poucos que acampam por aqui, para ir atrás da história. Só posso adiantar que a camisola de Maria Madalena entra no jogo.

De qualquer forma, porém, tão burguês quanto. Acho que vou acabar encontrando O Primo mesmo.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Ahmad Jamal, "Poinciana"

sábado, 5 de janeiro de 2008

Sick to death of cleverness

I'm sick to death of cleverness. Everybody is clever nowadays. You can't go anywhere without meeting clever people. The thing has become an absolute public nuisance. I wish to goodness we had a few fools left.

Oscar Wilde, em The Importance of Being Earnest

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

"Samba da Rosana" & "Sambaqui"

Lisiane Voiceless Rodrigues disponibilizou o ainda-não famoso Samba da Rosana aqui, e Sambaqui aqui, no site do RadarCultura.

Os ouvintes podem votar nas músicas, devidamente acompanhados de um cadastro rápido no site. O que acontece com os mais votados? Bem, não sei.

A Liz é uma das vozes que me acompanham durante anos... além de uma boa amiga. Tive o prazer de cantar em conjunto com ela, anos atrás; e agora ela vai ter o desprazer de cantar em conjunto comigo. O convite foi dela, contudo.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

Retrospectiva 2007?

Eu só quero parar de contar os anos; isso é tudo.