domingo, 23 de junho de 2013


terça-feira, 10 de abril de 2012

Cidade dos sonhos


Hoje sonhei novamente com a minha Cidade; nesta noite, era a minha "Paris". Minha cidade dos sonhos, contudo, é somente a Cidade: camaleônica, ela amolda-se à necessidade das invisíveis potestades oníricas, as que urdem a trama dos sonhos que sentam à cabeceira da minha cama.

Algumas vezes a Cidade é um símile distante da cidade natal de minha mãe; naquela - e não nesta - prédios e mais prédios duma arquitetura comum na época do meu nascimento, concreto e vidro espelhado, arcadas de cimento, escadas recobertas de granito, corrimões de aço escovado. Ceisa Cênteres ad infinitum. Galerias de pequenas lojas subterrâneas, onde se encontra de tudo que um citadino de médio porte necessita: pijamas de algodão, video games, empréstimos consignados, passagens de ônibus. As galerias se entrecruzam, as lojas têm portas ao fundo que dão para barraquinhas de suco e empanados, onde se pode subir as escadas e sair novamente para o sol frio. As ruas são somente uma só, uma rua Principal que se cruza e entrecruza dúzias de vezes, onde há o Banco e os Prédios Públicos, com as devidas concessões ao concreto e vidro, e onde na via pública são poucos os passantes. Logo adiante, nova entrada acolhedora para outra caverna subterrânea. O ar fresco e limpo das galerias é reconfortante.

Doutras vezes, a Cidade é a parte central de uma grande metrópole, o meu eixo Paris-São Paulo, sem escalas. Minha "Paris" é a última noite da capital de uma Roma imperial pós-moderna. As ruas - sempre é noite - são iluminadas por aquela velha luz lustrosa das lâmpadas de fósforo. Não há muito trânsito nem muitos carros, apesar das largas avenidas. Amplos bulevares também estão vazios, um tanto enevoados, como os Jardins de Luxemburgo no começo da noite. Elevados verde-oliva, mistura de Minhocão com um velho aqueduto romano, atravessam a Cidade, ligando algum subúrbio desconhecido a outro. As pessoas que estão nas ruas aglomeram-se todas em volta da entrada dos teatros, dos restaurantes e dos bares; todas excelentemente bem-vestidas, todas de maneiras aristocráticas, como a Dama das Baguetes que eu e Vitor encontramos em uma praça pequena e desconhecida no centro da real Paris. De Ouro Preto, a Voluptuosa, cujas volutas barrocas, em sonho, nasciam-me fragosamente da serra mineira, minha Cidade toma as diversas vielas e ladeiras íngremes e labirínticas, daquela pedra vulcânica lustrosa e dura, onde o salto de madeira claqueia e o eco dos desejos é abafado.

Na Cidade Ceisa, eu nunca estou hospedado, nunca tenho guarida. Sou somente um flâneur; o sol nunca se põe, e o dia é comercial, mesmo quando parece feriado. Algumas vezes o comércio fecha, e ficamos somente eu e as fechadas modestas num eterno domingo pós-prandial. Na minha Paris, o sol nunca se levanta, e é sempre uma sexta-feira de noite; lá eu fico - moro, possuo? - num pequeno flat de pé-direito alto, velhas portas de pesada madeira, como a pesada madeira dos tacos no chão, e mimosos azulejos na cozinha e banheiro. Algumas vezes eu sou visitante e sou hospedado por alguém - e neste caso o flat ainda é o mesmo, mas assume um ar mais impessoal de quarto de hotel 4 estrelas.

Em alguns sonhos é aurora ou crepúsculo, mas estou em outro lugar. Minha Paris onírica possui, a umas três ou quatro quadras do meu flat - estou bem localizado - um grande Teatro, uma magnífica Casa de Cultura que, ao mesmo tempo, porém, é uma Catedral e um Forte militar-religioso. Algumas vezes ela está em cima de uma pequena, mas imponente, colina, e em outras, ao contrário, está em um baixio. Durante a eterna-enquanto-dura noite o Teatro-Museu fulgura, convidativo, na cálida luz alaranjada; um grande Evento ali acontece, de onde todos saem, enlevados, para beber, dançar e conversar empolgadamente na esquina de sua escolha. Há ocasiões, porém, em que estou a subir a colina, que se torna ainda mais íngreme e rochosa, e o céu violáceo, de nuvens bem definidas, me avisa que o sol não está muito longe. Percebo então que um mar calmo, mas em movimento, agita e lambe a pedra, acizentada e já um pouco gasta pelo constante roçar; algas escuras e pequenos mariscos ressecam ao ar. Chego a uma esplanada de pedra, onde se apóiam os contrafortes da Catedral-Forte, onde se escoram algumas pessoas escuras, pequenas e silenciosas. Dou a volta e encontro a entrada, não guardada. Sei que há um ofício a acontecer lá dentro, e sei que faço parte, mas não tenho ideia do que se trata.

domingo, 4 de dezembro de 2011

domingo, 15 de agosto de 2010

Trilhas


Deixei os bosques por uma razão tão boa quanto a que me levou para lá. Talvez por ter me parecido que eu tinha várias vidas para viver, e não podia desperdiçar mais tempo com aquela. É impressionante a facilidade com que insensivelmente caímos numa determinada rotina e fazemos para nós uma trilha batida. Ainda não tinha vivido ali uma semana e já meus pés marcavam o caminho da minha porta até a beira do lago; e embora já faça cinco ou seis anos que eu o pisei, continua nitidamente visível. Receio, é verdade, que outros tenham enveredado por ele, contribuindo assim para mantê-lo aberto. A superfície da terra é macia e sensível aos pés dos homens; o mesmo acontece com as veredas por onde a mente viaja. Quão gastas e poeirentas não devem ser portanto as estradas principais do mundo! Quão arraigados os hábitos da tradição e do conformismo! Não quis comprar uma passagem de cabine para poder viajar em frente ao mastro e no convés do mundo, porque de lá podia apreciar melhor o luar entre as montanhas. E não desejo baixar à cabine agora.

I left the woods for as good a reason as I went there. Perhaps it seemed to me that I had several more lives to live, and could not spare any more time for that one. It is remarkable how easily and insensibly we fall into a particular route, and make a beaten track for ourselves. I had not lived there a week before my feet wore a path from my door to the pond-side; and though it is five or six years since I trod it, it is still quite distinct. It is true, I fear, that others may have fallen into it, and so helped to keep it open. The surface of the earth is soft and impressible by the feet of men; and so with the paths which the mind travels. How worn and dusty, then, must be the highways of the world, how deep the ruts of tradition and conformity! I did not wish to take a cabin passage, but rather to go before the mast and on the deck of the world, for there I could best see the moonlight amid the mountains. I do not wish to go below now.

Henry D. Thoreau, Walden, "Conclusion";
tradução de Astrid Cabral, Ed. A.

sábado, 14 de agosto de 2010

Estupidez

(...) assim se manifesta que o entendimento é, sem dúvida, susceptível de ser intruído e apetrechado por regras, mas que a faculdade de julgar é um talento especial, que não pode de maneira nenhuma ser ensinado, apenas exercido. Eis porque ela é o cunho específico do chamado bom senso, cuja falta nenhuma escola pode suprir. Porque, embora a escola possa preencher um entendimento acanhado e como que nele enxertar regras provenientes de um saber alheio, é necessária ao aprendiz a capacidade de se servir delas correctamente a nenhuma regra, que se lhe possa dar para esse efeito, está livre de má aplicação, se faltar tal dom da natureza*.
__

*A carência da faculdade de julgar é propriamente aquilo que se designa por estupidez e para semelhante enfermidade não há remédio. Uma cabeça obtusa ou limitada, à qual apenas falte o grau conveniente de entendimento e de conceitos que lhe são próprios, pode muito bem estar equipada para o estudo e alcançar mesmo a erudição. Mas, como há ainda, habitualmente, falha na faculdade de julgar (segunda Petri), não é raro encontrar homens muito eruditos, que habitualmente deixam ver, no curso da sua ciência, esse defeito irreparável.

Kant, Crítica da razão pura, B 172.

(...) und so zeigt sich, daß zwar der Verstand einer Belehrung und Ausrüstung durch Regeln fähig, Urteilskraft aber ein besonderes Talent sei, welches gar nicht belehrt, sondern nur geübt sein will. Daher ist diese auch das Spezifische des sogenannten Mutterwitzes, dessen Mangel keine Schule ersetzen kann; denn, ob diese gleich einem eingeschränkten Verstande Regeln vollauf, von fremder Einsicht entlehnt, darreichen und gleichsam einpfropfen kann; so muß doch das Vermögen, sich ihrer richtig zu bedienen, dem Lehrlinge selbst angehören, und keine Regel, die man ihm in dieser Absicht vorschreiben möchte, ist, in Ermangelung einer solchen Naturgabe, vor Mißbrauch sicher*.
__

*Der Mangel an Urteilskraft ist eigentlich das, was man Dummheit nennt, und einem solchen Gebrechen ist gar nicht abzuhelfen. Ein stumpfer oder eingeschränkter Kopf, dem es an nichts, als am gehörigen Grade des Verstandes und eigenen Begriffen desselben mangelt, ist durch Erlernung sehr wohl, sogar bis zur Gelehrsamkeit, auszurüsten. Da es aber gemeiniglich alsdann auch an jenem (der secunda Petri) zu fehlen pflegt, so ist es nichts ungewöhnliches, sehr gelehrte Männer anzutreffen, die, im Gebrauche ihrer Wissenschaft, jenen nie zu bessernden Mangel häufig blicken lassen.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Viver e/ou narrar

Quando se vive, nada acontece. Os cenários mudam, as pessoas entram e saem, eis tudo. Nunca há começos. Os dias se sucedem aos dias, sem rima nem razão: é uma soma monótona e interminável. De vez em quando se procede a um total parcial, dizendo: faz três anos que viajo, três anos que estou em Bouville. Também não há fim: nunca deixamos uma mulher, um amigo, uma cidade, de uma só vez. E também tudo se parece: Xangai, Moscou, Argel, ao fim de 15 dias tudo é igual. Por alguns momentos - raramente - avaliamos a situação, percebemos que nos envolvemos com uma mulher, que nos metemos numa confusão. Por um átimo. Depois disso o desfile recomeça, voltamos a fazer as contas das horas e dos dias. Segunda, terça, quarta. Abril, maio, junho. 1924, 1925, 1926.

Viver é isso. Mas quando se narra a vida, tudo muda; simplesmente é uma mudança que ninguém nota: a prova é que se fala de histórias verdadeiras. Como se fosse possível haver histórias verdadeiras; os acontecimentos ocorrem num sentido e nós os narramos em sentido inverso. Parecemos começar do início: "Era uma bela noite de outono de 1922. Eu era escrevente de tabelião em Marommes." E na verdade foi pelo fim que começamos. Ele está ali, invisível e presente, é ele que confere a essas poucas palavras a pompa e o valor de um começo. "Estava passeando, saíra do vilarejo sem perceber, pensava em meus problemas de dinheiro." Essas frases, tomadas simplesmente pelo que são, significam que o sujeito estava absorto, deprimido, a cem léguas de uma aventura, exatamente nesse tipo de estado de espírito em que se deixam passar os acontecimentos sem vê-los. Mas o fim, que transforma tudo, já está presente. Para nós o sujeito já é o herói da história. Sua depressão, seus problemas de dinheiro são bem mais preciosos do que os nossos: doura-os a luz das paixões futuras.

E o relato prossegue às avessas: os instantes deixaram de se empilhar uns sobre os outros ao acaso, foram abocanhados pelo fim da história que os atrai, e cada um deles atrai por sua vez o instante que o precede: "Era noite, a rua estava deserta." As frases são lançadas negligentemente, parecem supérfluas; mas não caímos no logro e as deixamos de lado: é uma informação cujo valor compreenderemos depois. E temos a impressão de que o herói viveu todos os detalhes dessa noite como anunciações, como promessas, ou até mesmo de que vivia somente aqueles que eram promessas, cego e surdo para tudo que não anunciava a aventura. Esquecemos que o futuro ainda não estava ali; o sujeito passeava numa noite sem presságios, que lhe proporcionava de cambulhada suas riquezas monótonas, e ele não escolhia.

Quis que os momentos de minha vida tivessem uma sequência e uma ordem como os de uma vida que recordamos. O mesmo, ou quase, que tentar agarrar o tempo.

Jean-Paul Sartre, A náusea, pgs. 56-57. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Claude Lévi-Strauss

Fui saber da morte do Claude Lévi-Strauss quase uma semana depois que ela aconteceu, isto numa época conhecida pela rapidez de (muita da) informação. Disseram-me que houve menção nos jornais televisivos e demais quetais, que não chegaram aos meus ouvidos pelo simples motivo que eu não os assisto mais - e que não estou mais na Academia, onde certamente ouviria falar a respeito.

Uma conclusão a ser tirada: a informação não chega até mim, mas eu chego até a informação, muitas vezes pelas fontes mais insuspeitas e de um certo mal-gosto.

Mais por vir, quiçá, mas por ora quedo-me em silêncio e respeito por uns dos "pensadores" principais do século passado - embora sabendo que esta noite vou fazer uma visitinha para o Tristes Tropiques, que descansa, na estante branca, envolto no calor ocre.

(E agora está virando o tempo, que refresco!)

sábado, 31 de outubro de 2009

Kindle, ou demais

Finalmente o Kindle resolveu se espalhar um pouquinho, na mesma época em que outras novidades online resolvem aparecer.

Eu tenho ficado de olho no Kindle (ou Nook, ou Sony Reader, não importa qual) praticamente desde o momento em que ele surgiu: a idéia de um leitor digital não é inédita, e muito menos nova, somente faltava um pouco de tecnologia. Torci, então, para que ele não se tornasse uma das tecnologias recém-lançadas que são relegadas para um semi-esquecimento, utilizadas apenas por geeks e demais - isto significa, automaticamente, fracasso na sua vinda para países como o Brasil.

E então que parece que um pouco certo deu, e espero que o recém-aberto mercado editorial virtual brasileiro cresça exponencialmente, frutifique escandalosamente.

Se eu vou abandonar meus livros de papel? Claro que não, eu gosto do papel. Mas, ao mesmo tempo, fico pensando naquela grande estante que tenho no meu quarto, nos vários livros espalhados por todos os cantos. Fico pensando na minha coluna que já apresenta aquela leve curvatura dorsal, característica de quem lê muito, ou usa muito o computador, e nas várias posições estapafúrdias, assumidas por horas e horas, para segurar confortavelmente um calhamaço de 600 páginas de papel gramatura 180. Nos gramas e quilos de celulose carregados para cima e para baixo, dentro de uma mochila. Nas mudanças da vida que me forçarão a deixar uma parte da biblioteca para trás.

(A outra opção, ler menos e fazer mais academia, me deixa levemente enfastiado. Ler não é uma escolha, depois de um certo tempo. Ainda sonho com o dia em que talvez não precise mais ler, e queime todos os meus livros, inspirado por uma súbita sabedoria reveladora. Já pensei até em fazer uma espécie de porta-livros, uma versão menor e caseira daqueles que se vê em cenas de bibliotecas medievais, onde aqueles códices e infólios gigantescos podem ser apoiados.)

A minha questão é somente a praticidade.

domingo, 11 de outubro de 2009

William Harris

(abertura do livro 9 da Ilíada)

É com pesar e alegria que anuncio, com um atraso de mais de meio ano, a morte de uma pessoa que eu jamais conheci pessoalmente.

William Harris era professor emeritus da Universidade de Middlesbury. Dias atrás, ao cavucar atrás dos fragmentos de Heráclito em grego antigo, eu me deparo com um simpático .pdf que fornecia, além do que eu procurava, comentários curtos sobre a maioria dos fragmentos heracliteanos. O nome do autor, juntamente com o seu título, não me era estranho, e logo o clarão do reconhecimento alisou a minha testa recurva: é claro, é claro.

William Harris era um classicista, um professor de humanidades - uma disciplina que, dói-me dizer, receio não passar pelo crivo do novo século, ou ter de passar às duras. Seu foco principal? As letras antigas, latim e grego. Uns bons anos atrás, quando comecei seriamente a dedicar uns minutos do meu tempo diário a aprender latim e grego (com um foco no grego), deparei-me com os recursos básicos, fornecidos de graça pela internet através de çaites como o Textkit: textos didáticos que remontam a mais de século, com ênfase na gramática e na repetição formal incessante, enfadonhamente relembrando o leitor - que nessas alturas estaria se achando a mais ignorante das criaturas, um bárbaro no sentido lato da palavra - as centenas de regras, microregras e subsistemas de regras e suas malditas exceções. Os tempos verbais gregos "proteicos", como dizia I.F. Stone, aqueles que aparecem somente uma vez a cada cem anos; as hapax legomena, as palavras que aparecem somente uma vez em uma obra; as exceções - oh, que crueldade, as exceções - de tudo aquilo que você tenta colocar na cabeça, para então poder aprender.

William Harris apareceu neste momento, para confirmar o que eu, intuitivamente, já sabia: isto tudo é besteira, é a maneira errada; é como aprender a usar um jogo de talheres antes de aprender a comer. Deparei-me com o seu Guia de latim para a pessoa inteligente, que atraiu-me sobremodo por eu saber que a) eu sou uma pessoa inteligente, e b) há uma maneira mais inteligente de aprender a ler e a pensar um pouco em uma outra língua. Afinal, não somos mais infantes aprendendo a balbuciar as primeiras sílabas ("m(a)", "b(a)" e "p(a)"). E eis então que, jamais, até hoje, tendo terminado de ler, por inteiro, o seu "Guia", retomei a confiança - nunca perdida, na verdade - em aprender latim e grego.

William Harris tinha para si que aprender línguas clássicas era mais fácil do que muitos pensam, e bem mais interessante. É algo que não devia ser encarado como uma tarefa demasiado séria, cheia de pré-requisitos e demais quetais, com a seriedade e a sobriedade que raramente reservamos para a nossa própria lingua mater - que dizer para uma outra língua, praticamente morta fora dos muros eruditos e *eructivos. Ele confiava na oralidade e no trançar, muitas vezes não consciente, que o falar enreda e no qual nos vemos enredados, mais cedo ou mais tarde. Enfatizava a leitura de Homero com ritmo, com sonoridade; falava de Catulo como se tratasse de um conterrâneo, de um conhecido, de um amigo. Confiava também, enfim, na inteligência e na capacidade que - eu até o imagino - suponho que ele visse em cada pessoa disposta a gastar tempo para aprender algo que não vai contar, necessariamente, como um MBA, ou entrar no Lattes. Tudo isto sem jamais perder a inteligência crítica e o senso de humor que podia-se ver através das linhas.

William Harris respondeu ao e-mail que lhe mandei, muito tempo atrás. Fiquei entusiasmado - é exatamente esta a palavra, entusiasmo - com a sua visão da "leitura e recitação" dos épicos homéricos, e escrevi a ele, dizendo da dificuldade em encontrar material multimídia gratuito. Isso, evidentemente, não era um problema, como eu posso ver agora; estava somente choramingando. Ele me respondeu dizendo, em outras palavras, para seguir em frente, e então trocamos outras mensagens. Gostaria de, naquela época, ter tido mais estofo com que encher as minhas palavras e ideias, para tornar a nossa breve troca mais interessante e aprazível para os dois, e não somente para mim. Sabe-se lá, porém, qual o prazer de um professor, se não está justamente nisto: em ensinar e, continuamente e conjuntamente, aprender.

William Harris, professor emeritus, morreu aos 83 anos, de câncer. Jamais o conheci, e o admiro profundamente; é com carinho que retenho na cabeceira da minha cama a sua contribuição mais recente, para mim, os tais fragmentos de Heráclito, interesse tão recente.

Sua obra continua acessível para todos aqueles que o quiserem, e que todos possam se beneficiar profundamente.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Pergunta


Temos, dos dois lados, dois alótropos do carbono. À direita, o grafite, o mesmo que se encontra em nossos lápis e lapiseiras.

À esquerda, o diamante, o mesmo que se encontra nas coroas reais e nos anéis de casamento ao redor do mundo.

A bioquímica da grandessísima maior parte da vida terrestre é baseada em carbono. Até mesmo quando pensamos em procurar vida em outros lugares nosso pensamento automaticamente procura por metabolismos que têm o carbono como base - embora pareça que o carbono leva vantagem sobre outras formas imagináveis de bioquímica; ponto de discussão.

À direita temos um pedaço de carne, o mesmo que muita gente gosta de assar com sal e comer, o mesmo que temos em nossos braços e pernas, o mesmo que gostamos de apertar e beijar, quando na pessoa amada. O tom avermelhado é, em poucas palavras, por causa do ferro; além do carbono, outros elementos são importantes na nossa bioquímica, mais ou menos nesta ordem (que aprendi no secundário): CHONPS - carbono, hidrogênio, oxigênio, nitrogênio, fósforo e enxofre.

A carne é macia, e quando viva é quente. O grafite é compacto, mas quebra-se facilmente. O diamante, cristalino, é a substância natural mais dura do mundo conhecido.

À esquerda temos uma concepção artística de um ser vivo cuja bioquímica seria baseada no silício, uma das bioquímicas hipotéticas alternativas, já que não se conhece, ainda, seres que funcionem com base nela. O silício, importante relembrar, é o componente principal na manufatura de chips eletrônicos.

À direita temos um lingote de silício.

A pergunta que resta: por que, exatamente, um ser hipotético com bioquímica de silício tem de parecer um arranjado de cristais? É o mesmo que dizer que nós, os carboneiros, teríamos que nos parecer com pedaços de carvão, grafite e diamante colados uns nos outros. Se houver uma objeção que faça sentido eu gostaria de ouvir.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Você sabia, mona?

Alan Turing é um cara conhecido. Mais conhecido, talvez, se o leitor tiver um interesse - mesmo que mínimo - na área da "inteligência artificial" (teste de Turing, alguém?). E pelo seu trabalho criptográfico, para a Inglaterra, na 2GM. Não vou fazer um nariz-de-palhaço explicativo para o Turing, vá dar uma olhada. Ele também está no Squashed. English required, as always.

E Alan Turing era homossexual, gay, como queirais, e foi condenado por crime pela mesma lei britânica que condenou Oscar Wilde.

Infelizmente eu não fui condenado, senão entraria para este seleto clube de homens inteligentes, e minha memória viveria para sempre.

Ou Turing escolhia pela condenação e sentença, e ia escrever um De profundis da computação, para seu computador Baby, ou se submetia a um tratamento psiquiátrico de última geração, para reduzir o tesão pelos outros homens, com aplicação de hormônios femininos; acaba sendo este último o seu destino. Dois anos depois, ele (provavelmente) se suicida, com uma maçã envenenada por cianureto. (Não nos apressemos a tirar causalidades precipitadas, por favor!)

O tratamento atesionante, se refletirmos a respeito, é de uma violência simbólica considerável. Tem gente que passou por isto voluntariamente, eu sei; a vergonha de si e a culpa operam verdadeiros milagres. Pelo menos Turing não virou um eunuco, ou foi esquartejado por quatro cavalos xucros, ou simples e rapidamente enforcado. Corremos até o risco - sedutor! - de pensar em tão compassiva medicina que dispõe de meios tão astutos para socorrer aqueles que sofrem.

Em agosto deste ano alguém começa um abaixo-assinado requerendo uma retratação e "perdão" do governo britânico com relação ao tratamento legal de Alan Turing. As pessoas deixam as suas opiniões, e no dia 10 deste mês o primeiro-ministro Brown faz uma declaração de "desculpas".

A considerar: ele merece ser "mais desculpado" por ter sido um dos "heróis" da 2GM? Quem opina parece compartilhar desta idéia. Muitos outros, evidentemente, foram mais sóbrios e disseram, com toda a razão que posso dar, que devia-se desculpar as outras tantas milhares de pessoas que passaram pela mesma lei, e por tratamentos, por muitas vezes, bem diversos, mas sempre envolvendo o sentenciamento e a ilegalidade. Turing é somente a figura pública, a encarnação, o bode-expiatório, o pharmakon ao revés, a figurinha a ser bafejada.

Gostaria de poder pensar que este tipo de coisa somente acontecia no nosso remoto passado bárbaro (uns 60 anos atrás), talvez como sintoma social do final da Guerra: "vamos consertar os nossos heróis, e inculcá-los vergonha". Aqui no Brasil as coisas são mais simples e decididas: quase todo mundo odeia quem é gay, ou tem seus grandes preconceitos. As pessoas "toleram", evidentemente, a tolerância na sua forma mais simples - a indiferença que corteja o desprezo. E, por enquanto, parece não ter novela que resolva. Que o diga Maurício de Sousa.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Chega

"Se você soubesse, de antemão, o quanto a prática ['espiritual', do zen] poderia ser difícil, sequer teria começado." Se não me engano, Albert Low falou algo deste calibre, no seu A vaca de ferro do zen.

O mesmo pode ser dito da vida. Se soubéssemos o quanto ela poderia ser difícil - cotidianamente, paulatinamente, excepcionalmente -, o quanto ela não cessa de nos mandar as benesses e as mazelas cotidianas, sem interrupção, acho que um bom número de nós escolheria, em algum momento, nem sequer ter aparecido - pensamento este evidentemente absurdo.

Tente imaginar que você jamais existiu. Não, não assim, não é pensar em você, seja o que for, olhando para o mundo sem a existência ______ (coloque o seu nome aqui); é pensar que você - que está pensando agora - sequer tenha experienciado um momento de consciência de si, e o mundo continuou. É praticamente inconcebível: podemos pensar a nossa não-existência - de modo até calmo e desapegado - somente se vemos com o nosso ponto-de-vista.

Não dá pra dizer "chega, pode parar" para a vida, por mais "vivido" que você pense estar. É tirar ou pôr. A vida é uma questão de vida ou morte, e não pensa em termos de excessos ou deficiências, de mais ou menos - "chega", "ainda não", "estou cheio/estou vazio".

Que pena. Queria uma banheira de água quente infinda, que não murchasse os dedos nem ardesse os olhos, com uma taça de vinho que não acabasse nunca e sempre mudasse a uva, a idade e o vinhedo, com direito a replay dos melhores momentos, sem ressaca. Ah, como eu queria.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Por favor, reflitam a respeito

Grandes baluartes intelectuais da nossa herança cultural fazem a nítida distinção entre homens e animais. A longa procura intelectual pelo que é distintivo do homem nos deixa claro: homem não é animal, e animal não é homem, seja a linha de corte a cultura, a linguagem, a inteligência, a consciência, a moralidade, a religiosidade, e outros, outros tantos.

Descartes, por exemplo, demonstrou claramente que animais são autômatos biológicos, que não sentem dor, posição confirmada e respeitada pelas nossas mais conceituadas instituições de ensino, de pesquisa, e corporações. Platão, the paragon of philosophers, classifica as nossas paixões mais "baixas" de animais, nos instando a nos livrar delas e aceder a paixões mais humanas e sublimes; visão esta que é compartilhada pelas grandes religiões mundiais, além de outros pensadores.

É tomando somente estes dois exemplos - aos quais eu poderia acrescentar tantos e tantos outros - que eu próprio conclamo a todos a abandonar o uso do fio-dental. Estudos recentes nos mostram que macacas ensinam os seus filhotes a passar fios de cabelo (humano) entre os dentes, para limpá-los e, assim, diminuir os riscos de infecções.

É evidente que, a partir do momento em que você imita um macaco, você se torna um macaco. Como poderíamos, então, continuar o vergonhoso uso de um procedimento que nos torna, cada dia mais, mais parecidos com um macaco, com um animal? É tarefa de alguns avisar a outros tais perigos que se escondem nas práticas mais cotidianas, que repetimos, sem o saber.

Eu nunca usei fio dental, e nunca o usarei.

[ditado por] Tilo, o Gato

(O dono do presente blogue não se responsabiliza por opiniões veiculadas por terceiros, como acima)

Uma história de meditação bem-sucedida

Existe uma coisa chamada "análise do discurso", uma ou várias técnicas, com vários referenciais teóricos, para, por exemplo, analisar representações sociais em pedaços de discurso - textos, vídeos, músicas. Há trabalhos interessantíssimos, e aponto para o LACCOS, aqui na UFSC. Há, também, trabalhos risíveis, daqueles que se pergunta se foi realmente necessário uma pessoa chegar até um mestrado, ou doutorado, para escrever algo que, usualmente, as pessoas fazem - ou tentam fazer - lá na redação do vestibular, ou numa mesa de bar, ou em um blogue.

Uma destas análises risíveis segue-se abaixo.

Faz mais de duas semanas em que o seguinte blogue está assombrando a minha caixa de mensagens do gmail, lá em cima, onde o onipresente google coloca os seus pequenos anúncios. É um blogue de um cara de meia-idade, que poderia ser chamado, aqui no Brasil, de Ricardo da Silva.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Como criar um efebo erudito - parte 1

Foi este o culpado.

Com a compra de um aparelho de som da Philco-Hitachi, muitos e muitos anos atrás, você ganhava, totalmente grátis depois de pagar uma nota, o compact disc - uso o termo completo, como de praxe na época - das "Quatro Estações", Vivaldi, Filarmônica Nacional da França conduzida pelo Lorin Maazel.

Tinha eu uma idade indefinida, entre os seis e os nove anos. Logo tomei a ousadia - em uma casa em que, nos primórdios, as grandes tecnologias, como o primeiro 386, só poderiam ser usadas com supervisão de um adulto - de botar pra tocar, na nossa casinha de madeira que tremia com qualquer coisa, deitado naquele tapete de pêlos mil que, admiro, não tenha me matado de rinite.

Eram umas caixas lindas. O som era muito bom. Meses atrás tivemos que, infelizmente, jogar as caixas fora - a única parte do som que eu fiz questão que não fosse dispensada, o resto do equipamento precisava de um bom conserto. As caixas de madeira de 80-90 centímetros de altura, com um grave que jamais esqueço, ainda funcionavam.

Paro de falar, pois estou começando a ter apertos no coração, de arrependimento.

Bem, o que temos hoje, então? Alguém que sabe as "Quatro Estações" de cor. Pego-me imaginando: o se fosse outro o compact disc? Um do Iron Maiden, talvez? Ou uma coletânea de música brasileira, ou de fados portugueses? Ou um de axé-music? Bem, talvez não fizesse muita diferença, ainda mais porque gosto de fados e tenho uma admiração secreta - é segredo! - pela Daniela Mercury (uma das cantoras brasileiras mais versáteis, entenda como quiser).

Mas fica a cena, engraçadinha e interessante: uma criança botando Vivaldi para escutar, mais interessante ainda ao pensar que muita gente já adulta escuta música "erudita" e não gosta nem um pouco.

Pela herança musical, então, vamos todos juntos agradecer àquela corporação que incutiu, nos meus tenros axônios, a compassada, medida e suave, porém terrível, interpretação de Maazel e colegas: dōmo arigatō gozaimashita.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Caminhos de Barro das Índias


Caros amigos

As notícias sempre acabam chegando, vocês bem sabem. Finalmente, depois de um mês pensando na vida e quatro dias sufocando em Nova Délhi, eu e Maurício fizemos nosso blog de viagem. Não contentes, fizemos ainda uma conta no Flickr específica para fotos do percurso. Escreveremos em inglês e português --pois não queremos privar todas as pessoas interessantes que conheceremos no caminho de lerem sobre elas mesmas e seus países em nosso blog. Claro, como a Ásia não é, digamos, uma grande free wi-fi zone, não sabemos como nem com que frequência essa pagineta terá direito a nossas deliciosas histórias. Mas, por enquanto, a coisa vai render. Por favor, não se sintam desencorajados a espalhar nosso endereço pelos quatro cantos. E não hesitem em postar comentários achincalhando nossa suposta capacidade ou olhar jornalístico.

Abraços a todos. E links abaixo.
Willian

http://24tz.wordpress.com
http://www.flickr.com/photos/24timezones/

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

O que há de errado, exatamente, com o casamento gay?



1) Ser gay não é natural. As pessoas comuns nunca aceitam as coisas que não são naturais, como os óculos de sol, antibióticos e ar-condicionado.

2) O casamento gay irá encorajar mais pessoas a ser gays, da mesma forma que ficar rodeado por pessoas altas fará com que você fique mais alto.

3) A legalização do casamento gay abrirá as portas para vários tipos de comportamento estranho. As pessoas podem até querer casar seus animais de estimação, pois se uma pessoa gay pode fazer um contrato de casamento, um cachorro também tem representação legal e também pode assinar um contrato de casamento.

4) O casamento heterossexual existe por um bom tempo e nada mudou: as mulheres ainda são propriedades, os negros ainda não podem casar com brancos, e o divórcio ainda é ilegal. Isto nos mostra que o casamento não deve ser mudado.

5) O casamento heterossexual teria menos sentido se o casamento gay for aceito; a santidade do casamento porra-louca de 55 horas da Britney Spears seria destruída. [Excelente!]

6) Casamentos heterossexuais são válidos porque eles produzem crianças, e os orfanatos ainda não estão cheios. O mundo precisa de mais pessoas. Casais homossexuais, casais estéreis e pessoas de idade não deveriam ser proibidas de casar.

7) É evidente que pais gays criarão crianças gays, já que pais heterossexuais criam somente crianças heterossexuais.

8) O casamento gay não é apoiado pela religião. Em qualquer estado teocrático normal, uma religião deve ser imposta ao país inteiro. Eis por que, por exemplo, há somente uma religião nos EUA e, de acordo com John McCain, a constituição deste país declara que "os EUA é uma nação cristã".

9) As crianças não podem ser bem-sucedidas sem uma figura materna e paterna em casa; eis por que nós, como sociedade, proibimos terminantemente que pais solteiros criem filhos.

10) O casamento gay mudará as fundações da sociedade. Nós nunca conseguiríamos nos adaptar às novas normas sociais, assim como não nos adaptamos aos carros e telefones celulares, e jamais nos adaptaremos aos computadores e à internet.

Não sou ardoroso defensor do casamento gay, nem mesmo defensor em causa própria - as boas meninas escrevem diários, as más não têm tempo para isto. Como as toscas argumentações me irritam, contudo, aí vai a piada.

Food-drug continuum

maçã gala, t'és rajada
com'ma tigresa vermelha redonda
pintalgada

*****

Hum. Uhum. (Re)encontrei o uso do termo que tanto gosto, contínuo alimento-droga (food-drug continuum), remexendo nos velhos textos empoeirados no armário - da época em que ainda imprimia os meus arquivos. Agora só imprimo ou os difíceis ou aqueles que eu prevejo que serão leitura de cabeceira.

É do Humphry Osmond, no primeiro capítulo de um livro que nunca li, mas que é bem eloquente. Humphry Osmond é, por procuração, uma influência intelectual, já que ele dialogou com o Huxley - que, sem necessidade de dizer, é uma das mais profundas influências que eu tenho, reconheço mais e mais a cada dia. Brinco: não aceito influências intelectuais por procuração, há de ter um bom argumento (e uma boa cabeça, de preferência). Mas ei, se tivesse de ser sempre "boa cabeça" metade dos filósofos ia para fora com a água da banheira, então esqueçamos.

Osmond foi uma das pessoas que tentou ventilar um pouco de bom-senso na discussão da época, sobre os "alucinógenos". Ele também propôs a teoria, agora desacreditada, que a esquizofrenia seria uma espécie de "superdosagem" de uma substância "alucinógena" endógena, a ver a discussão médica, que os chamava de "psicotomiméticos" por enxergar nas situações de uso de "alucinógenos" - usualmente em laboratório - semelhanças (mimetismo) com quadros psicóticos. De certo modo ele apontou para um ramo de investigação correto, afinal todos nós produzimos DMT, embora não saibamos o porquê.

Talvez seja mais provável que "uma das causas" (detesto esta expressão, ela não dá conta da multifatorialidade de uma coisa desta) da esquizofrenia seja um vírus. Não é interessante?

A questão de ventilar um pouco de bom-senso não se refere à discussão de usar ou não usar os "psicodélicos", que no fundo torna-se uma questão menor dentro de uma discussão um pouco mais ampla; aquela sobre as substâncias que chamamos de droga, e das "drogas" que permitimos que façam parte do nosso cotidiano ou não. Esta é, aos meus olhos, uma das questões mais presentes e prementes da atualidade, e não se reflete somente no uso individual de "tóxicos" (do grego tóxon, "flecha, flecha envenenada", Apolo e suas flechas espalhando a peste no comecinho da Ilíada!) e suas consequências negativas - muito visíveis em muitos casos, por sinal -, mas também nos milhões de reais do tráfico nas grandes (e não tão grandes) cidades, e nos milhões utilizados na luta contra os milhões do tráfico - bilhões, se estamos falando dos EUA.

A maneira atual de ver esta questão é puxar toda uma classe de substâncias para baixo do tapete e chamar de "drogas", sem uma avaliação concreta do risco. As tentativas de avaliação de risco - dentre as quais destaco uma, para leitura dos curiosos - são as ações que, ao meu ver, mais podem influenciar em políticas futuras. A posição atual - que eu chamaria de hipocrisia, se não soubesse que não existe hipocrisia social, mas sim um campo complexo de decisões que tateiam em busca da melhor solução possível - leva, somente, a um reductio ad absurdum, especialmente trágico nesta época em que novas substâncias invadem as ruas a cada ano. Qual reductio ad absurdum? Espero falar disto mais tarde, mas trata-se do processo de, através de regressão praticamente infinita, descobrir que não podemos, de modo racional, demarcar a linha entre "droga" e "não-droga", sem concluir que a própria vida é uma "droga". Esta distinção deve existir apenas em termos de legislação, do licet e do non licet, and Lacan approves of that.

Falo tudo acima como indivíduo, cidadão e, especialmente, psicólogo, já que jurei agir de modo a promover, ao meu ver e ao ver da sociedade, a saúde pública. Vamos ao texto.
Qualquer cultura pode ser vista como uma ramificação de uma tecnologia particular, aplicada ao conjunto de condições locais dentro do qual este cultura se situa. O termo "tenologia", como utilizado aqui, refere-se a todo o conjunto de dispositivos - sejam mecânicos, químicos ou linguísticos - pela qual a adaptação dos indivíduos aos seus ambientes pode ser aumentada/melhorada.

[....]

A tecnologia das drogas é uma das mais velhas tecnologias, e provavelmente teve seu início quando nossos ancestrais abriram caminho por entre as florestas e descobriram que, entre os alimentos que experimentavam, alguns produziam mudanças interessantes na forma de sentir, perceber e se ajeitar no mundo. Substâncias que alteram a consciência podem ser encontradas entre provavelmente todas as populações do mundo (Taylor, 1963). Substâncias que contém álcool e cafeína, em particular, parecem ser usadas em praticamente qualquer lugar, e o cânhamo e seus derivados também parecem ser amplamente utilizados.

Substâncias cujo efeito principal é reduzir a fome são classificadas como alimento. Mesmo que, nos dias de hoje, é comum mostrar uma análise, na embalagem, da composição química de muitos dos alimentos que comemos, sua ação é mais estudada em laboratórios de nutrição do que de farmacologia. Os tipos de estudos detalhados, que historicamente caracterizaram o estudo farmacológico - efeitos em estruturas particulares e sistemas de órgãos corporais - são raramente feitos com alimentos. [Temos uma pequena grande mudança nos últimos 40 anos, não?]

Substâncias que aumentam a sociabilidade ou estimulam o indivíduo são, comumente, tratadas como alimentos se elas podem ser ingeridas, ou mais como drogas (sem serem usualmente chamadas assim) se precisam ser fumadas. O álcool, café, chá e chocolate representam a classe comestível destas substâncias, assim como o é o tabaco e a cannabis, junto com seus derivados, em muitos países muçulmanos e do oriente. Cannabis e tabaco representam, provavelmente, as principais substâncias fumadas. O alvoroço contínuo contra o uso do álcool e da cannabis por vários grupos em nossa cultura sugere a posição atípica deste tipo de substâncias no contínuo alimento-droga [assim como tem acontecido com o cigarro atualmente, processo muito recente]. O medo e a ansiedade perante a degradação física e moral que pode resultar da sujeição pelo café, chá e chocolate, quando estes foram introduzidos na Europa, são outro exemplo. Deve-se salientar, também, que muitos fumantes de cigarros têm dificuldade em pensar o tabaco como uma droga, pois o termo "droga" desenvolveu significados muito específicos.

Entre os alimentos recolhidos pelos nossos ancestrais, alguns preservavam a vida, enquanto outros a destruíam. Outros, ainda, pareciam remover doenças. Algumas vezes os alimentos que destruíam a vida podiam também preservá-la, além de remover doenças, se administrados de maneira oportuna, e em doses corretas. É difícil dizer quando a distinção das [substâncias] comestíveis entre alimentos e venenos e entre alimentos e drogas surgiu, pois as divisões já existiam desde o começo da história documentada. As lendas da bruxa e do mago com as suas ervas, ou a da maçã cujo aroma repele a doença, são muito antigas. A tecnologia do uso de drogas é encontrada em todas as culturas, em conjunto com uma tecnologia dos venenos, e o controle desta tecnologia é investida à [em?] pessoas com funções sacerdotais ou semi-sacerdotais, ou em [à?] pessoas que alegam ter relações especiais com o sobrenatural. Com o aumento do conhecimento acerca das artes da cura os sacerdotes, que lidavam com a cura, abriram caminho para um grupo mais secular, com treinamento especial, chamados de médicos. Outro grupo reivindincou jurisdição sobre a preparação destas substâncias; foram chamados de apotecários ou, mais recentemente, farmacêuticos. Estes peritos sabiam quais drogas prescrever, e quando. Também era evidente que estas substâncias poderiam ser perigosas, algumas vezes, se preparadas ou utilizadas incorretamente, então era importante ouvir o que eles tinham a dizer a você sobre as substâncias possivelmente perigosas com as quais eles lidavam. Além disso, como eles lidavam com o alívio do sofrimento, foi fácil que uma imagem de "boa pessoa" surgisse. Como resultado, uma droga, neste contexto, tornou-se algo que deve ser usado sob a orientação de um médico, e que é uma idiotice usar de outra forma.
[Segue falando das outras visões - negativas - da palavra droga e do usuário de drogas.]

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Redução redux

Ultimamente eu quis tentar reduzir - como se reduz o vinho (branco) antes de colocar nos champinhões frescos em tiras, que a essas alturas devem estar chiando na manteiga fresca e uma leve esfumaçada de pimenta-do-reino preta - os meus interesses e pensamentos e desejos, para daí extrair uma espécie de caldo base ou quintessência dos mesmos.

O sucesso de tal empreitada muitas vezes se reduz ao mínimo, pois é difícil encontrar este carnegão, talvez pelo simples fato de que ele possa não existir. A tentativa, porém, é de valia. Afinal, como é dito, our life time here's so short [and] a new one can't be bought.

A rotina, o mesmo, a repetição, enfim, é o que pode nos ajudar, ao contrário do que pensamos, tantas vezes. A capacidade de "não mudar" - a torto e a direito - é o que nos aponta. Do que estamos sempre falando, a que (ou quem) sempre nos referimos, com o que sempre sonhamos... "sempre", aqui, aponta para tudo aquilo que aparece mais do que "deveria", e que nos estranha um pouco por isto.

E então, a partir do momento em que temos um pouco de conhecimento de causa disto, podemos tomar umas tantas rédeas e fazer diferente, fazer diferente com o mesmo. Isto não é interessante?

Já nas primeiras fases do meu curso de psicologia, recém-completo amém, eu sabia que "não era bem aquilo". Na quarta fase cogitei mudar de curso - a balança caía para um curso de letras, mas só de pensar que eu ia estudar mais 4 anos para ser professor* eu me desesperava intimamente. Então estudei mais 6 anos e meio... para quê? Para ser psiterapeuta. Única e exclusivamente. Claro como água desde o início. Nada mais ou menos do que isto. Qualquer outra coisa é muleta.

Foi uma escolha chata, que fiz sem pestanejar, com umas consequências aporrinhantes, enfim.

Sempre foi um tanto claro, então, qual o meu interesse intelectual. Não é difícil saber: basta fazer um parsing dos meus escritos, da minha fala, das minhas leituras.
Fala, linguagem, palavras. Como a linguagem não dá conta do mundo, como não existe fala plena, como sempre sobra algo. As armadilhas da linguagem, o jogo de palavras. O sujeito na linguagem, o sujeito da linguagem. Filosofia da linguagem. Consciência. Os enganos da consciência. Conhecimento, auto-conhecimento e suas ilusões. Ilusões e enganos em geral. Charlatões, pseudociência, e o porquê de nos enganarmos tanto com o que é quase evidentemente falso ("auto-engano"). Vícios.

Retórica, poesia, figuras de linguagem, música, ritmo, sons. Cantar e cantar; harmonia, ressonância. Como falar, como falar bem, como cantar. Persuasão, sedução, sugestão, hipnose - psicanálise. Fala como história; história; história da fala. Etimologias, raízes de palavras. Línguas, aprender línguas.

Saber e sabor; aromas, cheiros, sabores, e o que sabe a quê.

Comer e beber; comer e beber como necessários, comer e beber como prazeirosos, comer e beber como excessos. Saúde através do comer. Vícios. Relação "mente" e "corpo". Comida como remédio, cosmético, e vice-versa. A difícil linha entre "droga" e "droga". A difícil relação homem-substância. Excessos. Deficiências.
E o acima, obviamente, não esgota o assunto. É o que vem à cabeça mais facilmente. Há outras coisas que sei mas não consigo falar.

Vamos a um pouco de einfall amador? "Vamos", exclamam os leitores ávidos de sangue psíquico.

Parece que as coisas se concentram na boca, na língua, no nariz. Falar, provar, cheirar. Ranjo os dentes de noite; tenho bruxismo. Até hoje respiro pela boca, sem o querer; tenho de prestar atenção para respirar pelo nariz, e durante o zazen, com o rosto relaxado, os lábios ficam entreabertos e pareço a Mônica. Usei aparelhos durante um tempo, quando criança. Meu maior problema, atualmente - soa tolo, eu sei - é o siso esquerdo que parece colado com força gravitacional forte na gengiva, e que me custará 800 reais para tirar. Os outros dois sisos custaram 400 e estavam apenas com as raízes abertas (duas horas e meia para tirar). O nariz é grande mas não serve para muita coisa; cheira um pouco bem, mas como entrada de ar é uma negação, mesmo depois de uma cirurgia de septo. Felizmente contradigo, porém, a tese fliessiana de uma associação intrínseca entre o nariz e os órgãos sexuais - ou será que quero me circuncidar ou me castrar? Quando criança tinha bronquite e rinite, e atualmente estou tendo problemas com o meu sensível nariz - tive de voltar a ter uma cartelinha de loratadina na mochila. Ah, a mochila foi roubada estes dias. Quando criança estava "patinando" em uma sala do colégio quando um "coleguinha" botou a perna na minha frente, caí de cara no chão, sem me proteger, e quebrei os dois dentes da frente. Uma Mônica de dentes quebrados. Será que estou na fase oral? Chupei muita chupeta? Diz mãe que não, embora eu tenho fotos que comprovem o contrário. Em uma delas, um bebê louro no colo do pai frente às cataratas do Iguaçu. Pelo menos isso significa que fui além da fase anal. Êêêê. Sou mais desenvolvido. Quero o meu certificado de fase oral, por favor. Mas, e não sou um "invertido"? Hum, vai ver que estou atrás da chupeta primordial.
*Quanto a ser professor, nada contra, mas nada a favor. Embora pareça ser um intelectualzinho, tenho a confiança íntima de que dedicar-se somente a pensar, sem colocar nos atos (e não falo "em atos", pois a maioria das pessoas pensará que é colocar idéias em atos, e não é, é colocar você mesmo e a sua vida nos seus atos) é um porre. Nada me dá mais ojeriza do que gente que só sabe "pensar". Além dos bien-pensants, claro.
Tenho a leve impressão que vou acabar como Wittgenstein ou Hesse: calado, cuidando de um jardim.

sábado, 22 de agosto de 2009

Did Plato beat the [bush] cat?

Com o passar do tempo gosto menos do Platão. Pessoalmente. Isto quer dizer o quê? Admiro a sua envergadura, mas o conheço cada vez mais e desprezo algumas de suas idéias. Ao mesmo tempo, contudo, sei que as suas obras escritas guardam as chaves - preciosíssimas! - da filosofia ocidental, mesmo que, algumas vezes, sejam anti-chaves, ou chaves de espaços negativos.

A República é o exemplo paradigmático do platonismo aplicado, e suas consequências. Seria a República uma grande ironia, ou somente um exercício intelectual? Ou um destino político inevitável do zôon politikon? Alguns dizem que Platão realmente sugeriu sua república como uma realidade prática, e a sua amizade com Díon pode sugerir isto. Outros dizem que há somente ramelas pedagógicas, e que uma leitura cuidadosa o indicaria - através de linhas de campos de imanência a la Deleuze, talvez? Ou então uma grande e deliciosa ironia. Como eu sempre cuido terapeuticamente das ironias, sonho com a terceira. Então eu e Platão riríamos muito.

Mas tomando seus escritos face-valued, a República é um pesadelo a que somente os reis-filósofos poderiam aspirar. Em termos práticos. A argumentação platônica tenta procurar a forma de governo mais justa possível, e neste interím passa por cima da timocracia/meritocracia, da oligarquia, da democracia e da tirania/despotismo, consideradas como formas "dialéticas" de governo, que não tem o Bem em vista e como objetivo e que, portanto, não podem manter-se por si mesmas (tomo o wikiartigo como hupomnemata).

Esta é a parte mais interessante da República: todos os sistemas pensáveis de governo são colocados em questão, com a conclusão citada acima. O que prossegue depois disto, porém, é de deixar qualquer (pós?)moderno de sobreaviso; o governo do Bem parece-se demasiado com os regimes totalitários que tivemos a oportunidade sangrenta de vivenciar (agora também temos a oportunidade sangrenta de vivenciar uma das formas de democracia mais radical).

Aliás, tenho a impressão que a espécie de utopia disforme de Platão - que apenas não merece o título de distopia por discrição por parte dos críticos - foi o campo que, desde o Renascimento (com a sua reconstrução de um helenismo e classicismo que talvez nunca tenham existido) semeou grande parte dos grandiosos projetos políticos modernos. Apesar de O (outro) Filósofo [Aristóteles] ter se servido fartamente de Platão em seu pensamento político, e consequentemente a escolástica cristã ter se servido fartamente - ou ter subjugado, o que se sobrepõe sutilmente - do Filósofo, a idade média européia nunca foi além do não muito temeroso, embora forte, pensamento feudal. Pelo menos desde as Cruzadas.

A música pode ser uma interessante analogia. Uma das partes que mais me enoja em Platão é aquela em que, em sua nova Cidade[-estado], certos tipos de "harmonias" e "tons" deveriam ser proibidos - os que "provocam" a lassidão, a intemperança, a melancolia, etc.; o trabalho dos poetas (poiétes, os "fazedores", vistos assim como meros artífices de mentiras e contrapostos ao logos verdadeiro do [rei-]filósofo) deveria ser severamente censurado; e a "literatura" poética - os épicos homéricos, por exemplo - deveria ser "reescrita", de modo a não sobrar nenhum trecho que, exempli gratia, descreva deuses olímpicos com paixões humanas. Tudo muito bem regrado.

Comparemos esta sobriedade de harmonias e tons com a profusão maluca da música pós-renascentista. Não é preciso ser apreciador de música "erudita" para verificar isto. Estou para encontrar o nefelibata que me diga que os melhores trechos de Bach, por mais glaciais e celestiais e "não-humanos" que sejam, não contém as pestíferas harmonias vilipendiadas por Platão.

Ufa. Ainda bem.

Isto assemelha-se, grosso modo, com uma discussãozinha que vim a saber atualmente: a da "reescritura" das cantigas de roda tradicionais. Você sabia que há uma versão "politicamente correta" do Atirei o pau no gato? Ela vai mais ou menos assim:

Não atire o pau no gato
Porque isso não se faz
O gatinho é nosso amigo
Não devemos maltratar os animais

(em algumas letras é Jesus quem diz para não maltratar.)

Pode haver algum mérito em querer diminuir um conteúdo "violento" em alguma coisa, mas justamente no Atirei o pau no gato? Você, leitor, você atira paus em gatos na rua, depois de ter cantado com fervor o Atirei dezenas de milhares de vezes, quando criança? Você sente uma propensão para isto? Você já atirou? Matou gatos? Envenenou-os?

Eu me lembro do prazer que era fazer o miaaaaaaaaaaaaaaaaaau final, aquele grito estridente de criança, que treme as órbitas dos olhos e esfria a barriga. Hoje eu tenho um gato em casa. Não sou um anjo de candura, mas ele ainda tem as quatro patas e as duas orelhas. Hum, vai ver que é um sentimento inconsciente de culpa, causado pela minha incessante cantilena de mau-trato aos felinos, que me faz manter e alimentar e acarinhar um deles dentro de minha própria casa!

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

E o Segredo vai para...

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

"O que foi isto?"

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Sonic. Cetim. Satie.

Atualmente eu tenho vergonha da maioria das minhas poesias de outrora, embora saiba que tenha escrito muito melhor outrora do que atualmente escrevo - se e quando escrevo. Uma pena.

Então, escutando Satie - depois de tanto tempo! - retorna à cabeça o poemeto escrito anos atrás. Com um grão de sal, filho e espírito santo, por favor. Aproveitem que o uitubiú tem a opção de vídeos em alta qualidade, agora, e pode melhorar um pouco o som.

à Satie

O céu escuro, na janela sem vidros,
encompassa a sedosa fumaça
do cigarro enrolado

Satie. Cetim. Um pastor contando estrelas.
No acetinado. Da noite.
Cetim. Nos meus braços.
Mamilos e torso torcido
para em beijo ávido beijar-me.

Conto estrelas com a língua. Enlaço.
com o que brilha nos teus olhos.

São meus, os olhos da noite.
Se conto estrelas, traço-as.
Onde sou poeira; molda-me.
Se abres a boca, pérolas.

08/09/2005

******


A mesma dica do uitubiú vale para esta apresentação de um dos temas de Philip Glass para o filme As horas, que é um dos meus favoritos. Torley mostra barbaramente como a música de Glass é tecnicamente fácil, baseada em ostinatos e harmônicos; isto não é empecilho, contudo, para que ela seja boa e aproveitável. Mas enfim, eu tenho um gosto extremamente duvidoso, para alguns - amo muito tudo isso.

Aliás, lembro-me perfeitamente do frio na barriga na primeira vez em que escutei esta música. Eu o sinto, até hoje, ao escutá-la.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Catatau morreu




Não me lembro a primeira vez que o vi; talvez tenha sido mesmo na fila da matrícula, lá no comecinho do novo milênio. De qualquer forma, estudante do CFH que eu era, até poucos dias atrás, o Catatau estava sempre presente, com a sua pose altiva.

Foi enterrado na frente da reitoria.

Leve se suportável, breve se não o é

"O que ocorre com as crianças, nós mesmos experimentamos, crianças crescidas que somos. As pessoas que elas amam, com quem estão habituadas, com as quais brincam, fazem-nas tremer de medo quando se apresentam mascaradas. Não é somente dos homens, é das coisas que cumpre tirar a máscara, obrigando-as a reassumir seu verdadeiro rosto. De que serve mostrar-me estas espadas, estas chamas, esta multidão de carrascos que rugem em torno de ti? Descarta este aparato que te esconde e que só aterroriza os tolos. Tu és a morte, que outrora meu escravo ou uma serva podia desafiar. Mas quê? Ainda teus chicotes, tuas estacas que me apresentas com grande ostentação, estes aparelhos que se adaptam peça por peça a todas as articulações a fim de desmembrá-las, estes milhares de instrumentos empregados para dilacerar, para despedaçar um homem? Despoja-te destes espectros; silencia os gemidos, os lamentos entrecortados, os gritos agudos do supliciado feito em pedaços. Tu és a dor, que o gotoso despreza, que o dispéptico padece em meio a delícias, que a jovem tolera no parto; dor leve se suportável, breve se não o é."

[13] Quod vides accidere pueris, hoc nobis quoque maiusculis pueris evenit: illi quos amant, quibus assueverunt, cum quibus ludunt, si personatos vident, expavescunt: non hominibus tantum sed rebus persona demenda est et reddenda facies sua. [14] Quid mihi gladios et ignes ostendis et turbam carnificum circa te frementem? Tolle istam pompam sub qua lates et stultos territas: mors es, quam nuper servus meus, quam ancilla contempsit. Quid tu rursus mihi flagella et eculeos magno apparatu explicas? quid singulis articulis singula machinamenta quibus extorqueantur aptata et mille alia instrumenta excarnificandi particulatim hominis? Pone ista quae nos obstupefaciunt; iube conticiscere gemitus et exclamationes et vocum inter lacerationem elisarum acerbitatem: nempe dolor es, quem podagricus ille contemnit, quem stomachicus ille in ipsis delicis perfert, quem in puerperio puella perpetitur. Levis es si ferre possum; brevis es si ferre non possum.

Carta de Sêneca para Lucílio, 24; texto em português tirado de A hermenêutica do sujeito, M. Foucault (Martins Fontes, 2004), texto em latim aqui.

leuis aut breuis: o aforismo estóico de que uma dor ou é forte e breve e insuportável - ou passa ou morremos - ou é leve e dura mais, então suportável. Epicuro, antes disso, já apontava em uma de suas máximas (140.IV), abaixo, o que viria a ser a quarta parte do seu tetraphármakos: o que é mal é breve ou no tempo ou leve na intensidade (na carta para Meneceu em outro lugar, 133).

"A dor não dura de uma forma ininterrupta na carne, mas aquela que é extrema não dura mais que um tempo muito curto, e mesmo aquele nível de dor que excede ligeiramente o prazer da carne não dura muitos dias; quanto às doenças de longa duração, elas são acompanhadas de mais prazer (na carne) do que de dor."

ou khronízei to algoûn sunekhôs en tê sarkí, alla to men ákron ton elákhiston khrónon páresti, to de mónon huperteînon to hēdómenon kata sárka ou pollas hēméras sumbaínei; hai de polukhrónioi tôn arrōstiôn pleonázon ékhousi hēdómenon en têi sarkhi ḗper to algoûn.

sábado, 4 de julho de 2009

Carta de Epicuro para Meneceu

[Epicurus' letter to Menoeceus; lettre de Épicure à Ménécée; Epikurs Brief an Menoikeus; epistolḗ pros Menoikéa - greek text, texte grec, "griechische texte" (!), hellenik... whatever]

Abaixo vai a carta de Epicuro para Meneceu, em grego. Não encontrava o original transliterado na internetz - o original em grego, por exemplo, está aqui -, então resolvi fazer um favor para a humanidade, gastando algumas horas transliterando do xerox do Armário Branco - algumas notas sobre a transliteração aqui. As palavras em vermelho são as que não consigo encontrar tradução; as em verde são aquelas que eu faço idéia mas não encontro o verbete correto, e não quero desvirtuar ninguém.

O texto abaixo é do livro de M. Conche, em francês; Epicure, lettres et maxims, disponível na biblioteca da UFSC. As notas absolutamente ininteligíveis para alguém com menos de um doutorado são do mesmo texto, que boto apenas como curiosidade. Acompanha junto uma bela e boa tradução, em francês, que está disponível neste livro do google books, além de notas que tenho preguiça de copiar. Como o texto de Epicuro é livre para todos, não tenho medo do copirraite; as notinhas do autor(a), porém, poderiam me comprometer com a PUF.

Talvez uma tradução pessoal esteja em andamento. Talvez.

Por favor, aproveitem. É um belíssimo texto.

*******

Epíkouros Menoikeî khaírein.

[122] Mḗte néos tis ōn mellétō philosopheîn, mḗte gérōn hupárkhōn kopiátō philosophôn. Oúte gar áōros oudeís estin oúte párōros pros to kata psukhēn hugiaînon. Ho de légōn ē mḗpō toû philosopheîn hupárkhein hṓran ē parelēluthénai tēn hṓran hómoiós estin tôi légonti pros eudaimonían ē mē pareînai tēn hṓran ē mēkéti eînai. hṓste philosophētéon kai néōi kai géronti, tôi men hópōs gēráskōn neázēi toîs agathoîs dia tēn khárin tôn gegonótōn, tôi de hópōs néos háma kai palaios hêi dia tēn aphobían tôn mellóntōn. meletân oûn khrē ta poioûnta tēn eudaimonían, eíper paroúsēs men autês pánta ékhomen, apoúsēs de pánta práttomen eis to taútēn ékhein.

[123] Ha de soi sunekhôs parēngellon, taûta kai prâtte kai meléta, stoikheîa toû kalôs zên taût’ eînai dialambánōn. Prôton men ton theon zôion áphtharton kai makárion nomízōn, hōs hē koinē toû theoû nóēsis hupegráphē, mēthen mḗte tês aphtharsías allótrion mḗte tês makariótētos anoíkeion autôi prósapte; pân de to phuláttein autoû dunámenon tēn meta aphtharsías makariótēta peri auton dóxaze. theoi men gar eisín; enargēs gar autôn estin hē gnôsis; ohíous d’ autous polloi nomízousin, ouk eisín; ou gar phuláttousin autous hoíous nomízousin. asebēs de oukh ho tous tôn pollôn [124] theous anairôn, all’ ho tas tôn pollôn dóxas theoîs prosáptōn. ou gar prolḗpseis eisin all’ hupolḗpseis pseudeîs hai tôn pollôn huper theôn apopháseis. énthen hai mégistai blábai ek theôn epágontai kai ōphéleiai. taîs gar idíais oikeioúmenoi dia pantos aretaîs tous homoíous apodékhontai, pân to mē toioûton hōs allótrion nomízontes.

Sunéthize de en tôi nomízein mēden pros hēmâs eînai ton thánaton; epei pân agathon kai kakon em aisthḗsei; stérēsis dé estin aisthḗseōs ho thánatos. hóthen gnôsis orthē toû mēthen eînai pros hēmâs ton thánaton apolauston poieî to tês zōês thnētón, ouk ápeiron prostitheîsa khrónon, allá ton tês [125] athanasías apheloménē póthon. outhen gar estin en tôi zên deinon tôi kateilēphóti gnēsíōs to mēden hupárkhein en tôi mē zên deinón. hṓste mátaios ho légōn dediénai ton thánaton oukh hóti lupḗsei parṓn, all’ hóti lupeî méllōn. ho gar paron ouk enokhleî, prosdokṓmenon kenôs lupeî. to phrikōdéstaton oûn tôn kakôn ho thánatos outhen pros hēmâs, epeidḗper hótan men hēmeîs ômen, ho thánatos ou párestin, hótan de ho thánatos parêi, tóth’ hēmeîs ouk esmén. oúte oûn pros tous zôntás estin oúte pros tous teteleutēkótas, epeidḗper peri hous men ouk éstin, hoi d’ oukéti eisín. All’ hoi polloi ton thánaton hote men hōs mégiston tôn kakôn pheúgousin, hote de hōs anápausin [126] tôn en tô zên. [ho de sophos] oúte phobeîtai to mē zên; oúte gar autôi prosístatai to zên oúte doxázetai kakon eînaí ti to mē zên. hṓsper de to sitíon ou to pleîon pántōs alla to hḗdiston haireîtai, hoútō kai khrónon ou ton mḗkiston alla ton hḗdiston karpízetai. ho de parangéllōn ton men néon kalôs zên, ton de géronta kalôs katastréphein euḗthēs estin ou mónon dia to tês zōês aspastón, alla kai dia to tēn autēn eînai melétēn toû kalôs zên kai toû kalôs apothnḗiskein. polu de kheírōn kai ho légōn kalon men mē phûnai,
phúnta d’ hópōs ṓkista púlas Aídao perêsai.
[127] ei men gar pepoithōs toûtó phēsin, pôs ouk apérkhetai ek toû zên? en hetoímōi gar autôi toût’ estín, eíper ên bebouleménon autôi bebaíōs; ei de mōkṓmenos, mátaios en toîs ouk epidekhoménois.

Mnēmoneutéon de hōs to méllon oúte pántōs oukh hēméteron, hína mḗte pántōs prosménōmen hōs esómenon mḗte apelpízōmen hōs pántōs ouk esómenon.

Analogistéon de hōs tôn epithumiôn hai mén eisi phusikaí, hai de kenaí, kai tôn phusikôn hai men anankaîai, hai de phusikai mónon; tôn de anankaíōn hai men pros eudaimonían eisin anankaîai, hai de pros tēn toû sṓmatos [128] aokhlēsían, hai de pros auto to zên. toútōn gar aplanēs theōría pâsan haíresin kai phugēn epanágein oîden epi tēn toû sṓmatos hugíeian kai tēn psukhēs ataraxían, epei toûto toû makaríōs zên esti télos. toútou gar khárin pánta práttomen, hópōs mḗte algômen mḗte tarbômen. hótan de hápax toûto peri hēmâs génētai, lúetai pâs ho tês psukhês kheimṓn, ouk ékhontos toû zṓiou badízein hōs pros endéon ti kai zēteîn héteron hôi to tês psukhês kai toû sṓmatos agathon sumplērṓsetai. tote gar hēdonês khreían ékhomen, hótan ek toû mē pareînai tēn hēdonēn algômen; [hṓtan de mē algômen] oukéti tês hēdonês deómetha.

Kai dia toûto tēn hēdonēn arkhēn kai télos légomen eînai toû makaríōs [129] zên. taútēn gar agathon prôton kai sungenikon égnōmen, kai apo taútēs katarkhómetha pásēs hairéseōs kai phugês, kai epi taútēn katantômen hōs kanóni tôi páthei pân agathon krínontes. Kai epei prôton agathon toûto kai súmphuton, dia toûto kai ou pâsan hēdonēn hairoúmetha, all’ éstin hóte pollas hēdonas huperbaínomen, hótan pleîon hēmîn to duskheres ek toútōn hépētai; kai pollas algēdónas hēdonôn kreíttous nomízomen, epeidan meízōn hēmîn hēdonē parakolouthêi polun khrónon hupomeínasi tas algēdónas. pâsa oûn hēdonē dia to phúsin ékhein oikeían agathón, ou pâsa méntoi hairetḗ; katháper kai algēdōn [130] pâsa kakón, ou pâsa de aei pheuktē pephukuîa. têi méntoi summetrḗsei kai sumpheróntōn kai asumphórōn blépsei taûta pánta krínein kathḗkei. khrṓmetha gar tôi men agathôi katá tinas khrónous hōs kakôi, tôi de kakôi toúmpalin hōs agathôi.

Kai tēn autárkeian de agathon mega nomízomen, oukh hína pantōs toîs olígois khrṓmetha, all’ hópōs ean mē ékhōmen ta pollá, toîs olígois arkhṓmetha, pepeisménoi gnēsíōs hóti hḗdista poluteleías apolaúousin hoi hḗkista taútēs deómenoi, kai hóti to men phusikon pân eupóristón esti, to de kenon duspóriston. hoí te litoi khuloi ísēn poluteleî diaítêi tēn hēdonēn [131] epiphérousin, hótan hápan to algoûn kat’ éndeian ekhairethêi; kai mâza kai húdōr tēn akrotátēn apodídōsin hēdonḗn, epeidan endéōn tis auta prosenénkētai. to sunethízein oûn en taîs haplaîs kai ou polutelési diaítais kai hugieías esti sumplērōtikon kai pros tas anankaías toû bíou khrḗseis áoknon poieî ton ánthrōpon kai toîs polutelésin ek dialeimmátōn proserkhoménous kreîtton hēmâs diatíthēsi kai pros tēn túkhēn aphóbous paraskeuázei.

Hótan oûn légōmen hēdonēn télos hupárkhein, ou tas tôn asṓtōn hēdonas kai tas en apolaúsei keiménas légomen, hṓs tines agnooûntes kai oukh homologoûntes ē kakōs ekdekhómenoi nomízousin, alla to mḗte algeîn kata sôma [132] mḗte taráttesthai kata psukhḗn. ou gar pótoi kai kômoi suneípontes oud’ apolaúseis paidōn kai gunaikôn oud’ ikhthúōn kai tôn állōn hósa phérei polutelēs trápeza, ton hēdun gennâi bíon, alla nḗpōn logismos kai tas aitías exereunôn pásēs hairéseōs kai phugês kai tas dóxas exelaúnōn, ex hôn pleîstos tas psukhas katalambánei thórubos.

Toútōn de pantōn arkhē kai to mégiston agathon phrónēsis. dio kai philosophías timiṓteron hupárkhei phrónēsis, ex hês ahi loipai pâsai pephúkasin aretaí, didáskousa hōs ouk éstin hēdéōs zên áneu toû phronímōs kai kalôs kai dikaíōs, áneu toû hēdéōs. sumpephúkasi gar ahi aretai tôi zên hēdéōs kai to zên hēdéōs toútōn estin akhṓriston.

[133] Epei tína nomízeis eînai xreíttona toû kai peri theôn hósia doxázontos kai peri thanátou dia pantos haphóbōs ékhontos kai to tês phúseōs epilelogisménou télos, kai to men tôn agathôn péras hōs éstin eusumplḗrōtón te kai eupóriston dialambánontos, to de tôn kakôn hōs ē khónous ē pónous ékhei brakheîs, tēn de hupó tinōn despótin eisagoménēn pántōn engelôntos , ha de apo túkhēs, ha de par’ hēmâs, dia to tēn men anánkēn anupeúthunon eînai, tēn de túkhēn ástaton horân, to de par’ hēmâs adéspoton, hôi kai to mempton [134] kai to enantíon parakoloutheîn (epei kreîtton ên tôi peri theôn múthōi katakoloutheîn ē têi tôn phusikôn ehimarménêi douleúein; ho men gar elpída paraitḗseōs hupográphei theôn dia timês, hē de aparaítēton ékhei tēn anánkēn), tēn de túkhēn oúte theón, hōs ohi polloí nomízousin, hupolambánontos (outhen gar atáktōs theôi práttetai) oúte abébaion aitían ([ouk] oíetai men gar agathon ē kakon ek taútēs pros to makaríōs zên anthrṓpois dídosthai, arkhas méntoi megálōn agathôn ē kakôn hupo taútēs khorēgeîsthai), [135] kreîtton eînai nomízontos eulogistōs atukheîn ē alogistōs eutukheîn; béltion gar en taîs práxesi to palôs krithen orthōthênai dia taútēn.

Taûta oûn kai ta toùtois sungenô meléta pros seauton hēméras kai nuktos [kai] pros ton hómoion seautôi, kai oudépote oúth’ húpar oút’ ónar diatarakhthḗsēi, zḗseis de hōs theos en anthrṓpois. outhen gar éoike thnētôi zṓiōi zôn ánthrōpos en athanátois agathoîs.

FINIS

123 - 7 <hoi> supplevit Gassendi
124 - 3 post blábai scholia : aítiai toîs kakoîs - 9 ápeiron Aldobrandini: áponon libri
126 - 1 <ho de sophos> ins. ex Usener
127 - 4 <oúte pántōs hēméteron> epitome Laertii Diogenis in codice Vaticano gr. 96: om. libri.
128 - 3 tēn tês psukhês ataraxían cod. B. post correctionem: tēn ataraxían B (ante corr.): tēn toû sṓmatos ataraxían libr. cett.
128 - 8 <hótan de mē algômen> supplevit Gassendi
130 - 6 arkhṓmetha Cobet: khrṓmetha libri
131 - 5 proserkhoménous cod. Vaticanus gr. 96 ut Usener: proserkhoménois pler. libri - 8 tas en apol. cod. Vaticanus r. 96: tas tôn en apol. libri
132 - 7 philosophías cod. P post correctionem: philosophía cod. P (ante corr.) B Co - 9 <oude phronímōs kai kalôs kai dikaíōs> suppl. Estienne.
133 - 5 engelôntos Bailey: angéllontos: angelōntos: angelôntos libri <ehimarménēn … légontos> exemplii causa suppl. Usener
134 - 4 hupolambánontos Usener: hupolambánōn libri - 5 <ouk> ins. Usener
135 -1 nomízontos Usener: nomízein: nomízōn libri - 3 seauton Gassendi: heauton libri - 4 <kai> ins. Diano - 5 zḗseis cod. B post correctionem ut Usener: zḗsēi cod. P post corr.