sexta-feira, 31 de março de 2006

Visita

A coisa mais incrível aconteceu, mas estou receoso de contar aqui, nunca se sabe, a internet, dizem, todos ficam sabendo de cada vírgula mal colocada. Na verdade não ficam, pois alguém usa vírgulas na net? Mas enfim... conto.

Cheguei aqui em casa esta segunda feira, cansado e ferido de mais um dia acadêmico maçante e desconstrutivo, de idéias toscas e flácidas como... enfim, o conceito de tosco e flácido que você, leitor atento, tiver em mente - alguns são desaconselhados para menores - quando, ao chegar no portão do prédio, vejo um cara velho e barbudo sentado na escada.

Ele tinha a pele bem bronzeada, curtida, os olhos cinzas e uma basta cabeleira que, embora branca, ainda conservava traços de um antigo castanho queimado. E uma barba um tanto mal cuidada, nada que uma gilete de três lâminas e quatro crianças taiwanesas não resolvam. Ele me vê chegando e vem falar comigo. Achei engraçado ele estar somente com uma camiseta, ainda mais aquela da Embratel que tinha a Ana Paula Arósio, na época que ela considerada a beleza encarnada e todo mundo gostava dela, a pobre-menina-que-namorado-suicidou-se-defronte; mas relevei a camiseta, depois de ver que ele não tinha nada por baixo, deixando a semi-mostra sua vergonha, que na penumbra não era nada saradinha.

Balbuciou algumas coisas, balbuciou modo de dizer, pois falou alto - eu que entendi coisa nenhuma e achei que a caninha Camarão tinha tido mais um freguês esta tarde, e já entrava em prédio meu com aquela carinha burguesa de "por-favor-saia-da-minha-frente", nojinho, quando ele me pega pelo braço e começa a falar mais claro e mais devagar, fazendo gestos amplos com o braço, parecendo que queria o meu liquidificador emprestado, sei lá.

Mas tinha algumas palavras que me eram familiares. Será? Ele começou a apontar para si mesmo, dizendo "Sôôcrates, Sôôcrates, Sôôcrates", parecendo que ia vomitar. Deu um pulo pra trás, instintivamente, e depois me dei conta que Sôôcrates devia ser Sócrates. Me parecia que o sujeito queria dizer que se chamava Sócrates, o que achei muito irônico e até conveniente. Por causa disso relaxei um pouco, botei as coisas no chão e tentei entender o que aquele cara queria.

Mesmo assim continuava a entender bulhufas. Patavinas. E ele lá falando, e tentando arranjar um vidro sujo onde pudesse escrever alguma coisa, e me pegando o braço e falando mais alto, ficando meio sem ar e vermelho no processo, parecendo o tipo de cara que fica enfezado se ninguém o escuta. Parecia até que falava grego.

Me lembrei então que queria estudar mais um pouquinho de grego ainda aquele dia, e que tinha de dar comida pro gato e limpar a pequenina caixinha de areia higiênica do elegante senhor Gato, e já estava me desvencilhando dele e ele me olhando com um ar muito de perdido e desamparado, prestes a desabar no chão e clamar por misericóridia e eu achando aquilo tudo muito esquisito, quando de um átimo ele começa a murmurar, como se tivesse se dado conta de algo importante, sua face se ilumina e ele começa a gritar com todos os pulmões, para a felicidade dos meus vizinhos, "diaphteironta, diaphteironta, diaphteironta!"

Donde, donde um velho de rua aprendeu a ler grego clássico? Isto o que passou pela minha cabeça. Acontece que, como percebi três segundos mais tarde, ele não era um velho de rua. Bem, pelo menos não da minha rua.

quinta-feira, 16 de março de 2006

Qual o gosto de uma taça de cicuta?

"Sócrates pura e simplesmente queria morrer."

Uma das frases deliciosas do livro que estou relendo, aos pouquinhos e com bocadinhos de obras afins e alheias: "O julgamento de Sócrates", do jornalista americano que, mal conheci, sempre amei, I. F. Stone (as iniciais são de nomes tão horrendos que, dizem, quem os escutar terá dispepsia, sudorese noturna e dissociações esquizóides).

Neste livro Stone analisa, com detalhes e a finesse de um bom esquerdista defensor da liberdade de expressão individual, o mais famoso (e funesto) acontecimento da tão democrática Atenas. Não sei se falei deste livro antes: temo que me repita demasiado. Foda-se. O que Stone faz ver é que não, Atenas não está desculpada de ter assassinado um dos maiores usuários da parrhesia, da liberdade de expressão ateniense; o que ele deseja é dirimir um pouco a mácula e, principalmente, dirimir um pouco a aura heróica, quase santa, que cerca a morte do famoso filósofo.

Das idéias anti-democráticas de Sócrates todos os estudiosos já as sabiam, e não é preciso muito esforço para, lendo o que Platão e Xenofonte nos escrevem dele, chegar a uma percepção disto. Sócrates era alvo da gozação de várias comédias contemporâneas suas, o que era normal na Atenas daquela época, a comédia servir como meio de crítica e apontar incongruências dos figurões e detentores de cargos públicos. O homem que ficava o dia todo à palaestra, onde os jovens se exercitavam, e na agora, convocando as pessoas que achavam que eram sábias a se verem ignorantes (ou menos sábias que ele, dado que ele ao menos sabe que nada sabe), adorava fazer o mesmo com os cidadãos de mais influência, mostrando que a democracia era, enfim, uma merda, pois nenhum de seus governantes (o povo quase como um todo, no final do intrincado e até belo sistema democrático ateniense) tinha qualquer conhecimento de como governar, pois não conseguiam sequer definir o que é a virtude, o seu infatigável questionamento sobre a virtude...

... e se orgulhava de não cobrar nada por seus ensinamentos à juventude que o segue e passa a adotar o mesmo método para ridicularizar os poderosos, passando-os por néscios.

Até aí, tudo bem, adoramos fazer isto até hoje. É bem legal.

Acontece que as tendências...

(Você, leitor, quer conhecer o final desta fascinante história? Mande a sua opinião, ou até mesmo sugestões de o que poderia ter acontecido ao querido e feio Sócrates!! Continuamos no próximo poste.)