Existe um estranho sentimento que floresce em determinadas estações interiores: este de as coisas acontecerem na época em que elas têm que acontecer. Tem gente que o poderia chamar de sincronicidade - eu não ligo. Livros que caem na minha mão, pessoas que conheço - tudo que possa portar um conteúdo, significados. Tem horas em que tudo anda como anda - sofregamente, mas com um pouco de lubrificante aqui e ali - e tem horas em que tudo assume este aspecto sinistríssimo de um pathos desconhecido.
O que qualquer um que tenha uma aproximação mínima com a loucura como ela é pode sacar: a loucura, trata-se disto, elevado à potências nevrálgicas.
Passei por experiências castradoras recentemente. Ainda mantenho os meus dois colhões, para a felicidade da minha voz de barítono e do meu futuro amoroso; entendam experiências castradoras como experiências de perda, de frustração, de privação.
Antes - ainda - amar e demais quetais que esta palavrinha pode conter - não vou muito longe, sei do fastio geral sobre este tipo de histórias.
Este ano, meu irmãozinho-a-ser, tão bem esperado e cuidado, morre no dia em que nasceria, por descuido médico. Aqui sentimos o suave absurdo que encompassa os verbos "nascer" e "morrer".
Recentemente quase morro, morreria numa linha temporal imaginária onde potentes antibióticos não existiriam. Sinto uma dor excruciante e temo: eis que isto é viver, supurar um órgão aparentemente sem uso, com dores atrozes, e ficar cada vez mais sonolento até dormir ad aeternum (o cirurgião passa pelas macas no corredor e me vê sonolento: para a sala de cirurgia este garoto, depressa).
Um amigo - um trekker do mesmo caminho - suicida-se estes dias. Missa de sétimo dia, hoje. Existe um buraco com forma de Fulano no universo. Deixa de herança, entre outras coisas, uma pergunta, que não quer calar.
Acabo de voltar de São Paulo. Chego em casa depois de dar uma volta no centro com Jão, que passou três dias por lá - eu uns 10 - na designosa quitinete do Will. Meu gato me recepciona à maneira dos gatos: efusivamente no início, algo que pode confundir-se com demanda insatisfeita de algo com que os gatos nunca estão satisfeitos, então contorce-se em cima do meu colo e ronrona, forçando meu dedos a roçar diversas partes do focinho e pescoço. Depois brigamos de mentirinha - ele morde cada vez mais forte, preciso fazer com que ele veja que estamos brincando, e só - e então corre para a comida.
São Paulo, a metrópole que eu amo odiar, ou odeio amar. Poucos meses desde a última vez em que lá estive, e sinto tantas diferenças em mim. Cansaço. Ansiedade. A cidade se abre um pouco mais, a cada vez que lá apareço; mas aquilo é algo diferente, eu sou um turista. Um estranho recepcionado como turista, e a cada momento Sampa me dirige a palavra, nos seus turbilhões de gente, sons e esquinas: se vieres para cá, conhecerás o que é uma metrópole.
Eu, que ultimamente tenho pensando tudo em termos de lixo, no meio do lixo. Acompanho o lixo com os olhares, dos olhos e da alma: temo pelo lixo, absorvo um pouco do lixo. Homens, cidades, metrópoles erguem-se por cima do lixo, e eu olhando para ele. Algumas pessoas são lixo; outras cobrem-se de lixo.
Civilização é: sabermos o que fazer com o nosso lixo. Quanto melhor a resposta a isto, maior a civilização e a paz de espírito de seus condenados. Eu tenho esta idéia de que poderíamos jogar todo o nosso lixo no sol, começando pelo atômico. Ia ser uma solução boa, tirando o custo astronômico, mas nos coloca em um problema ético, se podemos dizer que o universo comporta a ética, assim como as quatro forças fundamentais: estaremos tirando da Terra para jogar no Sol. Nada se perde, em termos energéticos, mas vendo desta forma talvez o lixo seja importante, e consigo imaginar um futuro em que tentaremos preservar não o ambiente, mas o nosso lixo.
Mas enfim, deixo para os futuros conterrâneos que pensem nos seus problemas prementes.
Qualquer um de sensibilidade um pouco mais aguçada pode perceber: não estou preocupado com o ambiente, o destino dos imigrantes, riqueza e pobreza, com as experiências de perda per se. Preocupo-me com isto pois tudo isto, de uma maneira assombrosa, me faz temer por mim mesmo. Angustio-me? Por mim. E estou angustiado, ah como estou angustiado. Se antes, o jovem deus prometéico que eu prometia ser, esperando pela Coisa garantida, pouco temia, agora algo rui e eu tremo de medo, relegado à mais simples neurose. Comprei a minha mortalidade carimbada e ganho mais angústia. Não digo, não posso dizer, que a barganha é sempre esta, mas comigo tem sido assim e nem mesmo sei se voltaria a ser aquele belo deus.
Vejo, porém, que as certezas - as certezas que temos em nossas vidas, a certeza de que "seremos" felizes ou infelizes assim ou assado, estas certezas que estão por trás de qualquer angústia - podem ser mortais. As certezas podem ser mortais, e disto eu não tenho certeza: eu sei.
É quando estas pequenas coisas das quais falava no começo, estas pequenobscenidades, começam a juntar-se e a sugerir uma ordem de certeza, esta pequena porta dos fundos para a mansão dita "loucura", que podemos sacar que as certezas podem ser mortais. Nenhum juízo de valor atachado a isto. Sabemos, porém, que as certezas podem ser mortais.
Isto foi sussurrado no ônibus, de volta para casa.
Prova de que as certezas podem ser mortais? É justamente por causa delas que as pessoas se matam, ou deixam matar.
Na festa da Nossa Senhora de Achiropita, comemos beringelas recheadas, antepastos, fogazzas e uma deliciosa polenta. Na cantina italiana próxima de casa, um carbonara, entradinha de sardela e demais petisquetes. Reportagem para um folhetim diário nos concede passagem por dois restaurantes chineses: um pra encher, outro pra degustar - refrescante sopa de vinagre. Queijos. Vinhos. Pães. Pessoas, muitas, nas ruas; cultura, livros, falação. Tudo o que se oferece na vida como civilização - ou melhor, como excesso de civilização. O excesso caracteriza um turista, o excesso caracteriza algumas pessoas. Há quem se especialize no excesso, outras na privação. Muitos confortam-se no meio termo. Quem sustenta a casa? Não sei.
Em Floripa o ar está fresco e há árvores nas ruas. As calçadas estão relativamente limpas. A maioria das pessoas têm casacos nos ombros. Ah. Todos sonhamos com um mundo melhor, e a maioria de nós faz suas apostas neste sentido. Sinto um terror, pequeno e contido, porém terror, ao me deparar com um cuidado que chamo de feminino, por faltar palavras. O cuidado, a vontade de preservar, de cuidar de algo infante, imberbe, de algo que pode passar por um pedaço de carne, ou cuidar de um pedaço de tecido, ou de uma história. De preservar, de curar, de fazer com que cresça; não só maternidade, não o que dá vida, mas o que a preserva. Para preservar, algo cai fora, de maduro.
Pobreza no meio da fartura. Ah, mas que pobreza irremediável, esta.
Qual a sua relação com a loucura? Dizem que uma análise com Lacan começou com esta pergunta. Muito, muito pertinente; uma elegante pergunta de gênio - e de cuidado.
O que qualquer um que tenha uma aproximação mínima com a loucura como ela é pode sacar: a loucura, trata-se disto, elevado à potências nevrálgicas.
Passei por experiências castradoras recentemente. Ainda mantenho os meus dois colhões, para a felicidade da minha voz de barítono e do meu futuro amoroso; entendam experiências castradoras como experiências de perda, de frustração, de privação.
Antes - ainda - amar e demais quetais que esta palavrinha pode conter - não vou muito longe, sei do fastio geral sobre este tipo de histórias.
Este ano, meu irmãozinho-a-ser, tão bem esperado e cuidado, morre no dia em que nasceria, por descuido médico. Aqui sentimos o suave absurdo que encompassa os verbos "nascer" e "morrer".
Recentemente quase morro, morreria numa linha temporal imaginária onde potentes antibióticos não existiriam. Sinto uma dor excruciante e temo: eis que isto é viver, supurar um órgão aparentemente sem uso, com dores atrozes, e ficar cada vez mais sonolento até dormir ad aeternum (o cirurgião passa pelas macas no corredor e me vê sonolento: para a sala de cirurgia este garoto, depressa).
Um amigo - um trekker do mesmo caminho - suicida-se estes dias. Missa de sétimo dia, hoje. Existe um buraco com forma de Fulano no universo. Deixa de herança, entre outras coisas, uma pergunta, que não quer calar.
Acabo de voltar de São Paulo. Chego em casa depois de dar uma volta no centro com Jão, que passou três dias por lá - eu uns 10 - na designosa quitinete do Will. Meu gato me recepciona à maneira dos gatos: efusivamente no início, algo que pode confundir-se com demanda insatisfeita de algo com que os gatos nunca estão satisfeitos, então contorce-se em cima do meu colo e ronrona, forçando meu dedos a roçar diversas partes do focinho e pescoço. Depois brigamos de mentirinha - ele morde cada vez mais forte, preciso fazer com que ele veja que estamos brincando, e só - e então corre para a comida.
São Paulo, a metrópole que eu amo odiar, ou odeio amar. Poucos meses desde a última vez em que lá estive, e sinto tantas diferenças em mim. Cansaço. Ansiedade. A cidade se abre um pouco mais, a cada vez que lá apareço; mas aquilo é algo diferente, eu sou um turista. Um estranho recepcionado como turista, e a cada momento Sampa me dirige a palavra, nos seus turbilhões de gente, sons e esquinas: se vieres para cá, conhecerás o que é uma metrópole.
Eu, que ultimamente tenho pensando tudo em termos de lixo, no meio do lixo. Acompanho o lixo com os olhares, dos olhos e da alma: temo pelo lixo, absorvo um pouco do lixo. Homens, cidades, metrópoles erguem-se por cima do lixo, e eu olhando para ele. Algumas pessoas são lixo; outras cobrem-se de lixo.
Civilização é: sabermos o que fazer com o nosso lixo. Quanto melhor a resposta a isto, maior a civilização e a paz de espírito de seus condenados. Eu tenho esta idéia de que poderíamos jogar todo o nosso lixo no sol, começando pelo atômico. Ia ser uma solução boa, tirando o custo astronômico, mas nos coloca em um problema ético, se podemos dizer que o universo comporta a ética, assim como as quatro forças fundamentais: estaremos tirando da Terra para jogar no Sol. Nada se perde, em termos energéticos, mas vendo desta forma talvez o lixo seja importante, e consigo imaginar um futuro em que tentaremos preservar não o ambiente, mas o nosso lixo.
Mas enfim, deixo para os futuros conterrâneos que pensem nos seus problemas prementes.
Qualquer um de sensibilidade um pouco mais aguçada pode perceber: não estou preocupado com o ambiente, o destino dos imigrantes, riqueza e pobreza, com as experiências de perda per se. Preocupo-me com isto pois tudo isto, de uma maneira assombrosa, me faz temer por mim mesmo. Angustio-me? Por mim. E estou angustiado, ah como estou angustiado. Se antes, o jovem deus prometéico que eu prometia ser, esperando pela Coisa garantida, pouco temia, agora algo rui e eu tremo de medo, relegado à mais simples neurose. Comprei a minha mortalidade carimbada e ganho mais angústia. Não digo, não posso dizer, que a barganha é sempre esta, mas comigo tem sido assim e nem mesmo sei se voltaria a ser aquele belo deus.
Vejo, porém, que as certezas - as certezas que temos em nossas vidas, a certeza de que "seremos" felizes ou infelizes assim ou assado, estas certezas que estão por trás de qualquer angústia - podem ser mortais. As certezas podem ser mortais, e disto eu não tenho certeza: eu sei.
É quando estas pequenas coisas das quais falava no começo, estas pequenobscenidades, começam a juntar-se e a sugerir uma ordem de certeza, esta pequena porta dos fundos para a mansão dita "loucura", que podemos sacar que as certezas podem ser mortais. Nenhum juízo de valor atachado a isto. Sabemos, porém, que as certezas podem ser mortais.
Isto foi sussurrado no ônibus, de volta para casa.
Prova de que as certezas podem ser mortais? É justamente por causa delas que as pessoas se matam, ou deixam matar.
Na festa da Nossa Senhora de Achiropita, comemos beringelas recheadas, antepastos, fogazzas e uma deliciosa polenta. Na cantina italiana próxima de casa, um carbonara, entradinha de sardela e demais petisquetes. Reportagem para um folhetim diário nos concede passagem por dois restaurantes chineses: um pra encher, outro pra degustar - refrescante sopa de vinagre. Queijos. Vinhos. Pães. Pessoas, muitas, nas ruas; cultura, livros, falação. Tudo o que se oferece na vida como civilização - ou melhor, como excesso de civilização. O excesso caracteriza um turista, o excesso caracteriza algumas pessoas. Há quem se especialize no excesso, outras na privação. Muitos confortam-se no meio termo. Quem sustenta a casa? Não sei.
Em Floripa o ar está fresco e há árvores nas ruas. As calçadas estão relativamente limpas. A maioria das pessoas têm casacos nos ombros. Ah. Todos sonhamos com um mundo melhor, e a maioria de nós faz suas apostas neste sentido. Sinto um terror, pequeno e contido, porém terror, ao me deparar com um cuidado que chamo de feminino, por faltar palavras. O cuidado, a vontade de preservar, de cuidar de algo infante, imberbe, de algo que pode passar por um pedaço de carne, ou cuidar de um pedaço de tecido, ou de uma história. De preservar, de curar, de fazer com que cresça; não só maternidade, não o que dá vida, mas o que a preserva. Para preservar, algo cai fora, de maduro.
Pobreza no meio da fartura. Ah, mas que pobreza irremediável, esta.
Qual a sua relação com a loucura? Dizem que uma análise com Lacan começou com esta pergunta. Muito, muito pertinente; uma elegante pergunta de gênio - e de cuidado.
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