sábado, 31 de outubro de 2009

Kindle, ou demais

Finalmente o Kindle resolveu se espalhar um pouquinho, na mesma época em que outras novidades online resolvem aparecer.

Eu tenho ficado de olho no Kindle (ou Nook, ou Sony Reader, não importa qual) praticamente desde o momento em que ele surgiu: a idéia de um leitor digital não é inédita, e muito menos nova, somente faltava um pouco de tecnologia. Torci, então, para que ele não se tornasse uma das tecnologias recém-lançadas que são relegadas para um semi-esquecimento, utilizadas apenas por geeks e demais - isto significa, automaticamente, fracasso na sua vinda para países como o Brasil.

E então que parece que um pouco certo deu, e espero que o recém-aberto mercado editorial virtual brasileiro cresça exponencialmente, frutifique escandalosamente.

Se eu vou abandonar meus livros de papel? Claro que não, eu gosto do papel. Mas, ao mesmo tempo, fico pensando naquela grande estante que tenho no meu quarto, nos vários livros espalhados por todos os cantos. Fico pensando na minha coluna que já apresenta aquela leve curvatura dorsal, característica de quem lê muito, ou usa muito o computador, e nas várias posições estapafúrdias, assumidas por horas e horas, para segurar confortavelmente um calhamaço de 600 páginas de papel gramatura 180. Nos gramas e quilos de celulose carregados para cima e para baixo, dentro de uma mochila. Nas mudanças da vida que me forçarão a deixar uma parte da biblioteca para trás.

(A outra opção, ler menos e fazer mais academia, me deixa levemente enfastiado. Ler não é uma escolha, depois de um certo tempo. Ainda sonho com o dia em que talvez não precise mais ler, e queime todos os meus livros, inspirado por uma súbita sabedoria reveladora. Já pensei até em fazer uma espécie de porta-livros, uma versão menor e caseira daqueles que se vê em cenas de bibliotecas medievais, onde aqueles códices e infólios gigantescos podem ser apoiados.)

A minha questão é somente a praticidade.

domingo, 11 de outubro de 2009

William Harris

(abertura do livro 9 da Ilíada)

É com pesar e alegria que anuncio, com um atraso de mais de meio ano, a morte de uma pessoa que eu jamais conheci pessoalmente.

William Harris era professor emeritus da Universidade de Middlesbury. Dias atrás, ao cavucar atrás dos fragmentos de Heráclito em grego antigo, eu me deparo com um simpático .pdf que fornecia, além do que eu procurava, comentários curtos sobre a maioria dos fragmentos heracliteanos. O nome do autor, juntamente com o seu título, não me era estranho, e logo o clarão do reconhecimento alisou a minha testa recurva: é claro, é claro.

William Harris era um classicista, um professor de humanidades - uma disciplina que, dói-me dizer, receio não passar pelo crivo do novo século, ou ter de passar às duras. Seu foco principal? As letras antigas, latim e grego. Uns bons anos atrás, quando comecei seriamente a dedicar uns minutos do meu tempo diário a aprender latim e grego (com um foco no grego), deparei-me com os recursos básicos, fornecidos de graça pela internet através de çaites como o Textkit: textos didáticos que remontam a mais de século, com ênfase na gramática e na repetição formal incessante, enfadonhamente relembrando o leitor - que nessas alturas estaria se achando a mais ignorante das criaturas, um bárbaro no sentido lato da palavra - as centenas de regras, microregras e subsistemas de regras e suas malditas exceções. Os tempos verbais gregos "proteicos", como dizia I.F. Stone, aqueles que aparecem somente uma vez a cada cem anos; as hapax legomena, as palavras que aparecem somente uma vez em uma obra; as exceções - oh, que crueldade, as exceções - de tudo aquilo que você tenta colocar na cabeça, para então poder aprender.

William Harris apareceu neste momento, para confirmar o que eu, intuitivamente, já sabia: isto tudo é besteira, é a maneira errada; é como aprender a usar um jogo de talheres antes de aprender a comer. Deparei-me com o seu Guia de latim para a pessoa inteligente, que atraiu-me sobremodo por eu saber que a) eu sou uma pessoa inteligente, e b) há uma maneira mais inteligente de aprender a ler e a pensar um pouco em uma outra língua. Afinal, não somos mais infantes aprendendo a balbuciar as primeiras sílabas ("m(a)", "b(a)" e "p(a)"). E eis então que, jamais, até hoje, tendo terminado de ler, por inteiro, o seu "Guia", retomei a confiança - nunca perdida, na verdade - em aprender latim e grego.

William Harris tinha para si que aprender línguas clássicas era mais fácil do que muitos pensam, e bem mais interessante. É algo que não devia ser encarado como uma tarefa demasiado séria, cheia de pré-requisitos e demais quetais, com a seriedade e a sobriedade que raramente reservamos para a nossa própria lingua mater - que dizer para uma outra língua, praticamente morta fora dos muros eruditos e *eructivos. Ele confiava na oralidade e no trançar, muitas vezes não consciente, que o falar enreda e no qual nos vemos enredados, mais cedo ou mais tarde. Enfatizava a leitura de Homero com ritmo, com sonoridade; falava de Catulo como se tratasse de um conterrâneo, de um conhecido, de um amigo. Confiava também, enfim, na inteligência e na capacidade que - eu até o imagino - suponho que ele visse em cada pessoa disposta a gastar tempo para aprender algo que não vai contar, necessariamente, como um MBA, ou entrar no Lattes. Tudo isto sem jamais perder a inteligência crítica e o senso de humor que podia-se ver através das linhas.

William Harris respondeu ao e-mail que lhe mandei, muito tempo atrás. Fiquei entusiasmado - é exatamente esta a palavra, entusiasmo - com a sua visão da "leitura e recitação" dos épicos homéricos, e escrevi a ele, dizendo da dificuldade em encontrar material multimídia gratuito. Isso, evidentemente, não era um problema, como eu posso ver agora; estava somente choramingando. Ele me respondeu dizendo, em outras palavras, para seguir em frente, e então trocamos outras mensagens. Gostaria de, naquela época, ter tido mais estofo com que encher as minhas palavras e ideias, para tornar a nossa breve troca mais interessante e aprazível para os dois, e não somente para mim. Sabe-se lá, porém, qual o prazer de um professor, se não está justamente nisto: em ensinar e, continuamente e conjuntamente, aprender.

William Harris, professor emeritus, morreu aos 83 anos, de câncer. Jamais o conheci, e o admiro profundamente; é com carinho que retenho na cabeceira da minha cama a sua contribuição mais recente, para mim, os tais fragmentos de Heráclito, interesse tão recente.

Sua obra continua acessível para todos aqueles que o quiserem, e que todos possam se beneficiar profundamente.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Pergunta


Temos, dos dois lados, dois alótropos do carbono. À direita, o grafite, o mesmo que se encontra em nossos lápis e lapiseiras.

À esquerda, o diamante, o mesmo que se encontra nas coroas reais e nos anéis de casamento ao redor do mundo.

A bioquímica da grandessísima maior parte da vida terrestre é baseada em carbono. Até mesmo quando pensamos em procurar vida em outros lugares nosso pensamento automaticamente procura por metabolismos que têm o carbono como base - embora pareça que o carbono leva vantagem sobre outras formas imagináveis de bioquímica; ponto de discussão.

À direita temos um pedaço de carne, o mesmo que muita gente gosta de assar com sal e comer, o mesmo que temos em nossos braços e pernas, o mesmo que gostamos de apertar e beijar, quando na pessoa amada. O tom avermelhado é, em poucas palavras, por causa do ferro; além do carbono, outros elementos são importantes na nossa bioquímica, mais ou menos nesta ordem (que aprendi no secundário): CHONPS - carbono, hidrogênio, oxigênio, nitrogênio, fósforo e enxofre.

A carne é macia, e quando viva é quente. O grafite é compacto, mas quebra-se facilmente. O diamante, cristalino, é a substância natural mais dura do mundo conhecido.

À esquerda temos uma concepção artística de um ser vivo cuja bioquímica seria baseada no silício, uma das bioquímicas hipotéticas alternativas, já que não se conhece, ainda, seres que funcionem com base nela. O silício, importante relembrar, é o componente principal na manufatura de chips eletrônicos.

À direita temos um lingote de silício.

A pergunta que resta: por que, exatamente, um ser hipotético com bioquímica de silício tem de parecer um arranjado de cristais? É o mesmo que dizer que nós, os carboneiros, teríamos que nos parecer com pedaços de carvão, grafite e diamante colados uns nos outros. Se houver uma objeção que faça sentido eu gostaria de ouvir.