quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

O açúcar é doce, o sal é salgado

3 Spheres II, Escher

sábado, 20 de dezembro de 2008

A maravilhosa leitura de Dogen, 7 séculos e meio depois

Dogen Zenji, nascido em 1201, é o fundador, no Japão, do que mais tarde seria conhecido como a escola Soto do zen japonês.

Seus textos começaram a me fascinar de uns anos para cá, e depois de ler algumas traduções eu, um tanto descontente com a esterilidade de alguns textos, começo a passar o dedo em cima do texto japonês original. Somente, claro, para ter alguma idéia melhor de certos conceitos chaves; dizem - pois eu não sei ler japonês - que o texto de Dogen é um japonês medieval que os japoneses modernos não necessariamente entendem, à primeira vista.

Digo maravilhosa leitura pois os textos são muito bonitos e bem escritos. Recomendo o Genjokoan e o Fukanzazengi, para início de conversa - e para final, também, pois são os dois para onde sempre volto, tirando o Bendowa.

Caso você, caro leitor, tenha dado uma passadinha de olhos na literatura zen online em inglês, notará a abundância de uma determinada expressão - realization - para definir uma coisinha estranha. Realization anda sempre junto com enlightement, o que todos já sabemos o que é, pois todos vimos o filme com o Keanu Reeves, e actualization, a palavrinha marota que me lembra um dos primeiros trabalhos acadêmicos em psicologia, sobre Maslow.

Realization/enlightement/actualization; grosso modo, a obtenção/percepção/alcançamento/realização (tornar real)/iluminação/despertar. Cabe ao tradutor e autor escolher a palavra que melhor lhe cabe: na maioria das vezes muitos optam por realization, que é uma palavra maravilhosa que recolhe 4 significados expressivos em um:

perceber/tornar-se consciente, conseguir/alcançar alguma coisa, acontecer, produzir/tornar real.

A questão é que este tal de realize é um conceito fundamental nos textos de Dogen, e pela falta de uma tradução decente em português e na vontade de saber um pouco mais sobre "o que ele quis dizer", eu fui dar uma olhada - e demorei para achar, mas achei.

Dogen nos diz, em poucas palavras, que praticar o budismo - neste caso o zazen, a meditação sentada - para alcançar a "iluminação" é ir cada vez mais longe dela. Como Sawaki roshi dizia: zazen é bom para nada, não há nada a se ganhar no zazen. Sentar-se em zazen é simplesmente sentar, shikantaza; shikan é "simplesmente" fazer algo. Mas, continua Dogen, mesmo que a prática do zazen, tão enfatizada por ele, não "traga nada", sentar-se em zazen é iluminação/despertar - realization - por si mesmo. Vamos dar uma olhadinha mais de perto.

Dogen nos traz esta expressão, comumente traduzida como practice/realization, ou prática/esclarecimento, prática/iluminação. Em japonês, ou melhor, em chinês ajaponesado [leitura on-yomi, leitura chinesa dos ideogramas], é shushô.

[Dogen escrevia alguns textos em chinês com pitadinhas japonesas, e outros em japonês mais cotidiano. A mesma coisa faziam outros autores, tanto em religião, filosofia, arte. Descartes, p. ex. escrevia alguns textos em latim, e outros no francês cotidiano. Usualmente quando o contexto era mais formal usa-se a língua mais "eclesiástica".]

shu é "prática", no sentido de uma disciplina, um treino, um estudo, um cultivo. Lembremos que um dos sentidos de "meditação", no páli original da época do Buda, é de "cultivar". A prática não se restringe somente ao meditar.

shô é mais difícil. No japonês moderno tem o sentido de provar, confirmar, verificar, certificar, e é usado em muitas construções relacionadas a certificados, provas, autenticação. Provavelmente seria um erro tomar a acepção moderna e fingir que nada tenha mudado desde Dogen; mas, ao mesmo tempo, é de se pensar por que este termo e não outro mais direto, como iluminação, (satori, go) despertar/bodhi (kaku), p. ex., tenha sido usado. Além do mais, diversos tradutores modernos optam por traduções como "verificação".

[ofereci links para os kanji por problemas de configuração do blog]

"Verificação" do quê, porém? O que é verificado com ou através da prática, sendo que prática e "verificação" são atividades conjuntas?

No começo do Fukan Zazengi Dogen coloca quatro questões, a primeira sendo conhecida como a pergunta que o incomodou durante tanto tempo, até ter encontrado uma "resposta" na sua viagem para a China:
O despertar do Buddha originalmente permeia tudo; como pode ele depender da prática e da experiência/verificação? ["Prática e experiência" são shushô.]
Ou, em outras palavras: se dizem que a natureza de buddha está em todo lugar, qual a necessidade de praticar?

Anos depois, em um texto [Genjo Koan] que escreve para um leigo (um não-monge), Dogen, depois de expor poeticamente o ponto de vista do despertar, termina com uma pequena historinha, um koan:
Hotetsu Zenji do monte Mayoku estava se abanando. Um monge se aproxima e pergunta: “Dizem que ‘NATUREZA DO VENTO SUBSISTE ETERNAMENTE, NENHUM LUGAR NÃO VISITADO.’ Então por que o mestre também usa um leque?” O professor responde: “Você somente entende que a brisa é, por natureza, constante, mas não entende a idéia que não há lugar que ela não tenha alcançado.” O monge disse: “O que quer dizer, então, qual é a idéia de NENHUM LUGAR NÃO VISITADO?” Neste momento o mestre simplesmente se abanou. O monge junta as mãos em profundo respeito.
E acrescenta:
Tal é a experiência que valida a doutrina buddhista, sua verdadeira mensagem tornando-se viva. “Eu não preciso usar um leque, pois de qualquer forma eu sentirei a brisa, se ela for realmente constante”. Falando assim perde-se o sentido tanto de constância quanto da natureza da brisa.
Prática e experiência não estão separadas, para Dogen; ou, "se você fizer a menor diferenciação, criará um abismo maior do que aquele entre céu e terra." É neste ponto que os ensinamentos budddhistas se tornam redundantes, e que a prática/experiência entra com força total. Voltando mais uma vez para o Genjo Koan:
Vendo as coisas como coisas Buddhistas [de um ponto de vista buddhista], então temos sabedoria e prática, temos vida e morte, temos buddhas e seres sencientes.
Quando todas as coisas não tem uma essência, não há nem delusão nem satori, não há nem budas nem seres sencientes, não há nem começos e nem fins.
O caminho do buddha plana acima da extravagância do primeiro e da austeridade do segundo, unindo começos com fins, unindo delusão com satori, unindo ser senciente com buddha.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Cadê marido?

Festival Xintoísta da Fertilidade, Kanamura, Japão

(Contextualização necessária: andávamos eu, Will e Jão pela Liberdade/Sampa, procurando por mochis de rua, que todos sabem que são os mais gostosos. Encontramos esta mulher, numa barraquinha improvisada com um carro, que não sabia falar muito bem português. Ela simplesmente apontava e dizia o preço para qualquer pergunta feita; quando a pergunta se estendeu por mais de cinco palavras - provavelmente Will maquinando alguma pauta nova - ela olhou para o lado e disse: "cadê marido?")