sábado, 28 de abril de 2007

Questões issai-fai


Issai-fai (dois ditongos, "ái") é o termo antigo, usado pelas exuberantes culturas terrestres, para descrever uma área específica dos estudos sagrados: aquela da previsão. Alguns dos profetas issai-fai consideram-se descendentes diretos de uma tradição cultural de quase três milênios - ver ornitomantes, oniromantes e cartomantes. A maioria deles, contudo, nega esta descendência, preferindo-se colocar à parte de qualquer política temporal - muitas vezes assumindo uma postura cética, o que os liga com outra política temporal terrestre. No auge do movimento consumerista dos primeiros séculos da era nanológica, os estudos issai-fai colocaram-se à disposição para a produção contínua de material descartável. Foi somente com a concretização da intervia D a partir dos trabalhos de Golber e associados que muitos dos antigos profetas foram religados por um intervalo de 34 horas-p. Neste breve intervalo 27 novos rumos para o futuro da ASTI-Galáxia - em três linhinhas - foram delineados, nenhum de acordo com a Condução-FR. Assim, todos os antigos profetas foram exilados para a Aislândia, o que provocou a bancorrota de dois dos maiores conglomerados: o custo associado e corrigido de transporte, embarque-desembarque, chocolates e água mineral na Terra-1 era, para não dizer estrondoso, profético. Por que a Aislândia? Esta é a pergunta que vamos tentar esclarecer neste Xou.

ASTI-Madonna, em "Complexidades da religação: novas questões em uma época não tão nova". Xou no equinócio vernal do ponto-eixo 45.

Os maravilhosos conceitos lacanianos - Significante

O que são os maravilhosos conceitos lacanianos? O que eles têm de maravilhoso?

O problema com os conceitos é que sempre esperamos aquele conceito... aquela palavra, aquela idéia, que fará a diferença - para um discurso, para uma instituição, para uma pessoa. E, na verdade, como uma pessoa - um sujeito - é efeito de discurso, não muda muito se se trata da Igreja, do Estado ou da dona Maria.

Temos esperança com os conceitos... esperamos que um significante recubra a falta. Esperamos que um significante nos represente, que podemos chegar e dizer "depois de tanto tempo, isto aqui sou eu! isto me representa... isto é o que eu sou." E aqui eu introduzi um dos maravilhosos conceitos lacanianos, o de significante.

O maravilhoso dos conceitos lacanianos é que, a primeira instância, eles podem nos dar a esperança de cubrir algo - e eles maravilhosamente podem servir para fugir desta esperança. Não por sua "natureza intrínseca fugitiva da esperança", mas por estarem no campo do discurso psicanalítico.

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(Longa preleção sobre o conceito de significante; poderia eu me fazer mais claro? Fica a pergunta para todos. Nada de importante: passe para a próxima barra, se te apraz. Se te apraz, não me leia: faça o favor, contudo, de me avisar, com antecedência, que não me lerás.)

Significante é um conceito retirado da linguística, a linguística que nasceu no começo do século passado com Saussure. Saussure nos diz que a unidade linguística é o signo linguístico, e o signo linguístico é composto por duas partes: o significante (S) e o significado (s). A palavra "árvore", por exemplo, é um signo por ter um significado - o conceito - e um significante - a "imagem acústica" árvore. Saussure rompe com tradições que nos fazem pensar a unidade linguística como a relação de um termo a uma coisa: "o signo linguístico une, não uma coisa a um nome, mas um conceito e uma imagem acústica. Esta última não é o som material, coisa puramente física, mas a marca física deste som, a representação que nos é dada por nossos sentidos; ela é sensorial, e se nos ocorre chamá-la 'material', é apenas neste sentido e por oposição ao outro termo da associação, o conceito, geralmente mais abstrato" (Curso de linguística geral, Saussure).

s/S

O importante de ver aqui, para os propósitos do meu texto, é que o significante e o significado, para Saussure, não estão em uma relação imutável de colamento: há uma autonomia do significante para com o significado, e esta autonomia é que permite as substituições presentes na metáfora e na metonímia.

"Uma árvore não é somente uma árvore: uma árvore pode ser uma árvore". Se tivéssemos apenas uma fixidez entre significante e significado, a frase acima não teria sentido nenhum. Ela, contudo, pode ter um sentido.

Lacan introduz, em seu ensino, material da linguística, da chamada linguística estrutural - esta de Saussure. Na leitura de Freud, Lacan recolhe a idéia de significante e significado no "funcionamento mental".

O que difere - radicalmente - o uso dos dois conceitos em Lacan é que este nos diz da primazia do significante sobre o significado - S/s. O que, para Saussure, são duas cadeias mais ou menos correndo juntas - a cadeia dos significantes e a dos significados - trata-se, para Lacan, da primazia do significante, e da cadeia significante. O significado, aqui, passa a ser produto do deslizamento dos significantes.

Quando falamos, na nossa fala, temos uma série de significantes dispostos temporalmente. "Um rato roeu a roupa do rei de Roma" é um exemplo, todos eles significantes. O significado total da minha enunciação não é exatamente a soma dos significados de cada termo: a significação é dada somente no final, na minha pausa. Um. Parei somente com o um. Diz alguma coisa? Uma pessoa contando, talvez. Um rato. Factual, um rato, rato. Um rato roeu. O quê? A roupa. Um rato roeu a roupa. Ponto. Cada uma destas frases tem um significado diferente, não exatamente dado pelo simples somatório dos significados - mas sim pela disposição temporal dos significantes.

Lacan nos diz que a significação - o sentido - não é uma dimensão paralela e conexa com os significantes, mas é efeito de significantes. Quando se diz "linguística estrutural", se quer dizer que a linguagem é uma estrutura. Há de se saber mais sobre o conceito, sobre o movimento do estruturalismo - de forte impacto intelectual. Vide a obra de Levy-Strauss. Mas, basicamente, uma estrutura - como a da linguagem - é determinada pelos seus elementos em relação - estrutural - uns com os outros, não dependentes de uma organização externa.

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O grande "axioma" de Lacan - que muitos dizem ser o que ele desenvolveu durante os 30 anos do seu ensino - é a afirmação poderosa de que

O INCONSCIENTE É ESTRUTURADO COMO UMA LINGUAGEM

Prestemos atenção: o inconsciente (freudiano, psicanalítico, fruto da relação analítica) é estruturado como uma linguagem (a própria linguagem sendo uma estrutura). Como uma: o inconsciente não é uma linguagem, mas os seus mecanismos são como os mecanismos de uma linguagem.

O inconsciente é este constante e atemporal deslizar de significantes; o significado é efeito deste deslizar, e está mais do lado do consciente, do eu.

Lembremos que o significado é o sentido: para Lacan, o sentido é efeito do deslizamento "automático" de significantes "no" inconsciente.

É isto que a experiência da psicanálise vem nos mostrar. Isto chega a ser obsceno.

Como fica a questão colocada no começo do meu post, quando aceitamos pensar - ao menos por um momento - no significante para Lacan?

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Outros maravilhos conceitos lacanianos: objeto a Outro gozo sujeito desejo

Lição de casa

Para vocês, meus sinceros e fiéis leitores, a lição de casa de hoje é pesquisar sobre um singular item:

vocoder

segunda-feira, 23 de abril de 2007

Empurrando o envelope

Existe uma maravilhosa expressão em inglês: pushing the envelope. Eu a escutei, pela primeira vez, no delicioso Storming Heaven, o relato de Jay Stevens da contracultura americana e aléim.

"Empurrar o envelope".. eu fiquei imaginando como empurrar um envelope... um envelope de borracha, talvez, um pouco de ajuda da topologia...

Nada que uma pesquisa de 5 minutos na net não me mostrasse que o tal "envelope", neste caso, é um conceito matemático, o "locus da interseção de curvas consecutivas". Dêem uma olhada aqui, para uma explicação (em inglês) da expressão.

Pushing the envelope quer dizer, dona Maria, "ir além, levar além dos limites preestabelecidos".

Na síntese sonora, o "envelope" de um som é a variação de sua amplitude no tempo. Mais conhecido como "envelope ADRS", é uma modulação dos diversos componentes, no tempo, de um som específico: ataque/attack, o tempo que leva para o som chegar a sua amplitude máxima; decaimento/decay, o quanto o som cai até chegar no nível seguinte; sustentação/sustain, o nível em que o som permanece até repouso/release, que modula quão rápido ele vai se "extinguir" (pensem numa nota de piano com o pedal para um release mais lento).

Parece simples, não? E é. Mas é impressionante o quanto mexer com estes quatro parâmetros podem modificar o som. Se quiser fazer a experiência, baixe um programinha qualquer de sintetizador (como o FruitLoops, o que eu brinquei um monte) e experimente em mexer nesta curva. Ele é um dos elementos cruciais da síntese sonora, este mundo novo e selvagem e maravilhoso.

Eu sempre imagino que a música eletrônica pushes the envelope. Eu tenho estima pelos envelope pushers. Acho um trabalho maravilhoso. De vez em quando eu abro os olhos e vejo gente pushing the envelope... e sempre imagino um envelope ADRS tomando forma de som, e mais gente mexendo com LFOs, amplificadores, sintetizadores, mixers; pushing the envelope.

Eis a minha contribuição de entrada para uma eulogia da museletro, que ecoa na minha cabeça recentemente. Em breve, em breve.

Real, simbólico e imaginário chez Lacan


Lacan nos propõe uma metáfora. Se nós tomamos uma mesa, a mesa imaginária recorta as funções deste objeto: se come nela, pode servir para colocar um vaso, marca a refeição, etc. A mesa simbólica é a palavra "mesa" tal como ela vem se ligar dentro do discurso: "à table!", fazer "table rase" [fazer tabula rasa, começar do começo, de novo] - o significante "mesa" pode assim se inserir dentro de outras expressões, como "table de matières" [sumário]. O real, enfim, se constitui do resto, mesmo daquele que não se conhece.

Lacan propose une métaphore. Si nous prenons une table, la table imaginaire recoupe les fonctions de cet objet, on mange dessus, elle peut servir à poser un vase, elle marque le repas, etc. La table symbolique, c'est le mot table tel qu'il vient se lier dans le discours : à table!, faire table rase - le signifiant table peut aussi s'insérer dans d'autres expressions, comme table des matières. Enfin, le réel se constitue du reste, soit ce que l'on ne connait pas.

sexta-feira, 20 de abril de 2007



Vocês, vocês, vocês têm três dias para assistir à minissérie televisiva Angels in America, antes que eu escreva um post sobre esta fabulosa história e passe por cima de qualquer spoiler warning conhecido.

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Botei uma foto de casa aqui.

quarta-feira, 11 de abril de 2007

Caffè sospeso

Dizem que a tradição nos cafés napolitanos - o sul da Itália - era a de uma pessoa, considerando-se afortunada, ou tendo acordado com o pé direito ou com um pouco mais de dinheiro no bolso, entrar em um café e pedir um "café em suspenso" - caffè sospeso. Ela bebia o seu café - seja ele espresso, prensa francesa, será que havia café turco? e pagava dois. Um segundo, já pago, ficava em suspenso para qualquer pessoa de menos fortuna que entrasse no café e pedisse por um que tenha ficado sospeso naquele dia.

Foi assim que eu ouvi. Dizem que acontece até hoje. Fico imaginando se criássemos o hábito de deixar coisas em suspenso aqui no Brasil, o que aconteceria.

Fico imaginando também os cafés em que todos sabiam que o dono embolsava mais sospesos do que o aceitável... ou aquele em que, pro velho comerciante, todo dia era um bom dia para mais sospesos, mesmo que ninguém tenha pagado por eles.

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E falando de café... eu ia escrever uma coisa sobre o café espresso, dizendo que as pessoas falam "expresso" com X para a palavra italiana espresso, que talvez significasse outra coisa do que "expresso". "Expresso", em português, quer dizer uma coisa que é rápida ou direta, ou uma coisa que é exprimida (não confundir com "espremida"). Eu pensava que espresso, em italiano, seria um falso cognato: que poderia remeter a "expresso" (pt), mas na verdade não remeteria. Eu poderia jurar que espresso era um particípio de um verbo que eu não sabia, o qual significaria "espremer", ou "passar sob pressão" - e então, neste caso, seria cognato de "espremido" ou "pressionado". Ledo engano meu: na verdade espresso (it) é, realmente, cognato de "expresso" (pt): meia hora de pesquisa na internet me demoveu de um conhecimento que eu achava que tinha.

Espresso é particípio do verbo esprimere, que quer dizer "expressar". Além disso, espresso também tem o significado de "expresso" - rápido, ou direto. Espremido (squeezed), em italiano, é spremuto - do verbo spremere. E pressionado/passado sobre pressão (pressed) é premuto.

(Eu coloquei as palavrinhas em inglês do lado pois eu procurei aqui.)

Quer dizer que está grafado incorretamente, se se quer manter a palavra em italiano, mas a tradução - a qual eu imaginava incorreta - está correta. Como mantemos a nossa sanidade cultural e não escrevemos caffè, então aí está.

Se você, leitor, tem uma correção, por favor, me mande; eu posso estar falando besteira.

domingo, 8 de abril de 2007

Mar bravio


BeiraMar num domingo de mar bravio.
Clique na imagem e ela, magicamente, se torna maior.

quarta-feira, 4 de abril de 2007

Henry Sobel

Eu não conheço o rabino Henry Sobel. Já o tinha visto, várias vezes, a sua imagem e a sua voz, na mídia; achei engraçado o sotaque, o cabelo. Não escutei direito o que ele falava. Então, não o conheço como rabino e como líder da comunidade judaica de São Paulo. Não sei do seu trabalho.

Ele, como todos sabem, foi pego roubando gravatas "de marca" em um loja em Palm Beach, EUA. Ele declara que não teve a intenção de roubar as gravatas, de que não sabe muito bem o que aconteceu. Passou uma noite na prisão, pagou uma fiança de 3680 dólares e pronto. Foi internado no hospital Albert Einstein na sexta passada, para investigar possíveis desordens psiquiátricas ou afins.

Reações diversas ecoaram: manifestações de solidariedade e preconceito seguiram uma a outra. Ele se afastou temporariamente da sua congregação, muito sensatamente.

Como estudante, eu sei que o rabino pode estar sendo "sincero" (relatando uma vivência "real") quando diz que não quis roubar; estas coisas acontecem. Não podemos dizer, contudo, que ele está sendo, pois isto requer uma confiança que não é preciso depositar, neste momento. A discussão passa longe se o rabino "é ou não é" cleptomaníaco ou não, se ele é um perverso ou não, se os remédios que ele toma mexeram com a cabeça dele ou não. Pessoalmente, esta discussão toda pouco me interessa, por só trazer, cada vez mais, preconceitos e defesas contra preconceitos.

Lembremos do famoso argumentum ad hominem: trata-se, na lógica, de oferecer um argumento contra um propositor do que contra um outro argumento. Falar mal de uma coisa - a religião, por exemplo - através de pontos considerados depreciativos nas pessoas que a advogam, ou nos seus representantes.

O caso dos "homens de religião" é complicado, pois deles é esperado que encarnem a moralidade de sua religião, que ajam moralmente. Assim, cai tão mal a um rabino ser flagrado roubando gravatas, mesmo que ele tenha dito que não o queria fazê-lo...

Disto tudo, tem somente uma coisa que eu gostaria de dizer: eu não queria que o rabino tivesse tido um tratamento pior, ou que esse ato isolado dele justificasse o depreciamento de uma instituição religiosa, ou de sua própria pessoa. Eu queria somente que um outro qualquer pudesse ter o mesmo tratamento e a mesma solidariedade, independente de ser rabino ou judeu ou católico ou comerciante ou evangélico e presidiário.

Lavou, tá limpo.

Sul da Ilha

Eu cresci, a minha infância, no sul da ilha, no bairro do aeroporto, Carianos. O aeroporto não era internacional: era mais um galpão de concreto com uma pista, que se conectava por caminhos misteriosos com a base aérea da aeronáutica. Um dos finais da rua (que depois virou avenida) Diomício Freitas era, justamente, num portão - uma guarita - que separava o "bairro dos oficiais" do restante da população civil. Havia uma certa rivalidade entre quem era filho de oficial militar e quem não o era, alimentado pelo esnobismo inocente.

Meu pai, por ser o dono da farmácia do bairro, tinha o crachazinho para passar pela guarita e adentrar na base aérea. Quando eu ia tomar banho na Tapera - uma praia pequena, de areia muito grossa e água parada como uma poça, cheia de medusas - eu ia por ali. Começavam logo as casas, todas semelhantes, dos oficiais; logo depois terminava esta aglomeração e a estrada continuava durante muito tempo, cercada dos dois lados pelo mato. De vez em quando via-se uma clareira que seguia em linha reta por dentro do mato, onde antenas baixas e parrudas se alinhavam em intervalos regulares. Mais a frente, uma elevação retangular, verde de grama, abrigava uma piscina onde se era tratado o esgoto. Logo depois, a estrada fazia uma curva e descobertava-se então o mar, uma pequena praia da mesma areia grossa da Tapera, um pouco mais agitada por causa do vento sul soprando. Praia deserta, não se podia tomar banho - ou ao menos as pessoas não o faziam. Propriedade da BASF. Um trapichão se debruçava sobre o mar. Uma das primeiras fotos que eu tirei - com uma câmera pequena, que tirava ainda fotos quadradas - foi de lá. Eu tinha visto uma baleia espanando o rabo na água. Corri e tirei uma foto; não me lembro de onde veio a câmera. Jurava ter enquadrado a cena: engano meu. Na foto, somente o mar de várias ondas pequenas do vento sul.

Um sentimento maravilhoso: aquele mar, aquele vento, aquele sol, aquela tranquilidade. Quase nenhuma pessoa. Eu catava conchas, nas poucas vezes em que ia para lá, e trazia montes delas para casa. Elas fediam dentro de uma sacola, o cheiro de mar podre, até que pai ou mãe resolviam jogar fora, para a minha insatisfação: eu apenas não tinha decidido o que fazer com elas. Colocava muitas de molho em um balde com um pouco de sabão, para tirar a lembrança molhada do mar. Muitas estavam quebradas, ou lascadas nas beiradas. Muitas eram muito velhas: assim o supunha, por ser que pareciam como pedra-pomes, cheias de bolhas e buraquinhos, prestes a se esfarelar e se dissolver na água. Outras, eram brilhantes, peroladas, como unhas esmaltadas. Algumas tinham um preto como ébano laqueado; outras eram brancas como osso.

Eu me lembro, quando eu cortei o pulso em um acidente aqui mesmo, na porta do prédio onde moro, que eu vi de relance o osso do meu punho. Era uma cor de pérola, um branco perolado, lindo. Muitas conchas eram assim.

Para entrar no meu bairro de infância, era preciso - e ainda o é - atravessar um espaço só de mato e mangue. Você vai pela Costeira, e em vez de pegar para o Sul-propriamente-dito (Rio Vermelho, Campeche, etc), vai para o aeroporto. Passa a ponte, de onde se tem uma vista bonita da Hercílio Luz brilhando de noite, e um breve espaço sem nada construído, a não ser a estrada e uma cerca alta, tem de ser percorrido antes que o Carianos comece a surgir aos poucos. A primeira vista é a vista do estádio de futebol da Ressacada. Quando eu era pequeno, a estrada era baixa e, quando a maré estava alta, a água do mar tomava a pista, saindo do mangue e do rio ali pertinho. Muitos carros ficavam sem poder seguir em frente; outros modelos o motor aguentava melhor. Este problema não existe mais, pois elevaram a altura da pista. Foi assim, contudo, que eu aprendi sobre este segredo incrível das marés, da forma mais prática possível para mim.

...

Mas eu comecei a escrever para falar de outra coisa. Comecei e fui por outros caminhos, ou por outro caminho, o caminho da "memória"... Eu cresci no sul da ilha, e conheci razoavelmente as praias da região. Tenho as minhas preferências, a até hoje gosto muito mais das praias do sul, de mar bravio e azul-escuro, açoitadas continuamente pelo vento sul, do que as paradas águas das praias do norte - as praias conhecidas do norte, claro. Santinho é uma exceção, e Moçambique, bem, ainda não tive coragem de conhecer a maior praia. Andei em vários costões, e muitas vezes encontrava grandes pedras, de uma pedra meio avermelhada, cor de ferrugem, com pequenas depressões. Muitas eram como se fossem pratos talhados na rocha: buraquinhos redondos, bem rasos, do tamanho de um prato cotidiano, um tanto maior. Haviam também, em menor quantidade, talhos profundos ou rasos. Eu sempre me perguntei, e perguntava aos adultos ao meu redor, o que eram aquilo: intuía que não era nada natural, embora não ficasse tão surpreso se alguém me dissesse que eram naturais. Mas a mim me pareciam coisa humana. Pensava se não seria gente mais antiga e mais rude, pescadores também, que utilizariam as pedras - e seus curiosos entalhes - para limpar peixe, talvez? Não sabia, e ninguém podia me dizer o que era.

Leio hoje num jornaleco, então, o projeto para colocar placas perto destas pedras, na Barra da Lagoa, informando do que elas serviram: oficinas líticas, ou "bacias de polimento", assim o dizem, onde os povos pré-históricos e indígenas da Ilha poliam e afiavam seus utensílios, armas e ferramentas. E lá estava a foto de uma dessas pedras, tão claras na minha lembrança. Na Barra tem algumas, uma, se não me engano, na beira mesmo do canal, perto de onde a criançada pula na água. É bom que se conte a história: as coisas ficam mais interessantes. Se bem que eu ainda ache que ficaria mais interessante sem placas, sendo contada por um manezinho...


segunda-feira, 2 de abril de 2007

Explicando Freud - lacaniamente? - parte I

Tudo começou quando os psicólogos leram o tal o do Freud.

Na página da Wikipédia sobre "desenvolvimento psicossexual", em inglês, desenrola-se todo aquele papo de "fase oral", "fase anal", de que a criança na fase tal é assim e assado, e que as pessoas que ou param ou regridem a tal fase do seu desenvolvimento são assim ou assado.

Isto não é psicanálise, isto é a psicologia usando vocabulário e palavreado psicanalítico.

O pior, contudo, é quando diz que, no advento da fase fálica, "pelos seis anos de idade", o menino "se apaixona pela mãe" e quer "tomar o lugar do pai". E então todo o drama do complexo de Édipo acontece, e o menino desiste de querer tomar a mãe do pai e se conforma com a castração. E então entra "em latência".

E isto é, realmente, a visão da psicologia do desenvolvimento que se encontra nos manuais.

Para o leigo - ou turista - que se aventura a ler psicanálise, ou este tipo de apresentação causa uma resistência incrível, ou a historinha bem-contada seduz, de alguma forma.

Semana passada tive a excelente oportunidade de ver isto por mim mesmo: uma mãe achou absurda a idéia de que o seu bebê tivesse uma "sexualidade", e ainda mais que esta sexualidade envolvesse ela, a mãe. Eu não tive como responder, na hora, de uma forma adequada ao momento e à ocasião.

Mas, quando ela falou isto, me veio a cabeça a imagem de um bebezinho - vamos chamá-lo de Pedro - que tem um Pedrozinho na cabeça e que tem desejos sexuais pela mãe e que por causa disto quer matar o pai. Isto é ridículo. Isto não é psicanálise. Em primeiro lugar, a criança sequer nasce com um "eu", para Lacan; até mesmo para sacar que ela é um corpo, um corpo separado da mãe, demora um pouco, e demora ainda um tanto mais para juntar os "fragmentos" do seu corpo em uma imagem aceitável - no famoso "estádio do espelho". O eu é uma construção imaginária, um jogo de espelhos. Lacan chama o recém-nascido de "pequeno pedaço de carne", o que não é tão delicado da parte dele.

Sexualidade não é o sexo. Parece óbvio, mas talvez não seja. A libido não é a força dessexualizada que Jung supunha ser, mas também não é somente a vontade de colocar o coisinho no buraquinho. Envolve as excitações corporais e o que fazemos com elas, desde pequenos. A "descoberta" do recém-nascido é que, junto com a satisfação de uma necessidade - fome, por exemplo - houve um "a-mais". O leite vem e mata a fome, mas vem este "a-mais" - o "amor da mãe", falando metaforicamente - que não se pediu.

É claro que o bebê não pediu nada, afinal ele nem sabe que desconforto é aquele que ele sente. O organismo chora, a mãe interpreta: "é fome o que ele tem", e vai lá e dá o peito. A satisfação da fome vem, e com ela o a-mais. É "de brinde". E é este o tipo de coisa que se aprende a pedir do outro - o brinde, o a-mais. Isto é sexualidade, para a psicanálise. A mãe tem prazer em amamentar, o bebê recebe mais do que o leite da mãe.

Continua...