domingo, 15 de agosto de 2010

Trilhas


Deixei os bosques por uma razão tão boa quanto a que me levou para lá. Talvez por ter me parecido que eu tinha várias vidas para viver, e não podia desperdiçar mais tempo com aquela. É impressionante a facilidade com que insensivelmente caímos numa determinada rotina e fazemos para nós uma trilha batida. Ainda não tinha vivido ali uma semana e já meus pés marcavam o caminho da minha porta até a beira do lago; e embora já faça cinco ou seis anos que eu o pisei, continua nitidamente visível. Receio, é verdade, que outros tenham enveredado por ele, contribuindo assim para mantê-lo aberto. A superfície da terra é macia e sensível aos pés dos homens; o mesmo acontece com as veredas por onde a mente viaja. Quão gastas e poeirentas não devem ser portanto as estradas principais do mundo! Quão arraigados os hábitos da tradição e do conformismo! Não quis comprar uma passagem de cabine para poder viajar em frente ao mastro e no convés do mundo, porque de lá podia apreciar melhor o luar entre as montanhas. E não desejo baixar à cabine agora.

I left the woods for as good a reason as I went there. Perhaps it seemed to me that I had several more lives to live, and could not spare any more time for that one. It is remarkable how easily and insensibly we fall into a particular route, and make a beaten track for ourselves. I had not lived there a week before my feet wore a path from my door to the pond-side; and though it is five or six years since I trod it, it is still quite distinct. It is true, I fear, that others may have fallen into it, and so helped to keep it open. The surface of the earth is soft and impressible by the feet of men; and so with the paths which the mind travels. How worn and dusty, then, must be the highways of the world, how deep the ruts of tradition and conformity! I did not wish to take a cabin passage, but rather to go before the mast and on the deck of the world, for there I could best see the moonlight amid the mountains. I do not wish to go below now.

Henry D. Thoreau, Walden, "Conclusion";
tradução de Astrid Cabral, Ed. A.

sábado, 14 de agosto de 2010

Estupidez

(...) assim se manifesta que o entendimento é, sem dúvida, susceptível de ser intruído e apetrechado por regras, mas que a faculdade de julgar é um talento especial, que não pode de maneira nenhuma ser ensinado, apenas exercido. Eis porque ela é o cunho específico do chamado bom senso, cuja falta nenhuma escola pode suprir. Porque, embora a escola possa preencher um entendimento acanhado e como que nele enxertar regras provenientes de um saber alheio, é necessária ao aprendiz a capacidade de se servir delas correctamente a nenhuma regra, que se lhe possa dar para esse efeito, está livre de má aplicação, se faltar tal dom da natureza*.
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*A carência da faculdade de julgar é propriamente aquilo que se designa por estupidez e para semelhante enfermidade não há remédio. Uma cabeça obtusa ou limitada, à qual apenas falte o grau conveniente de entendimento e de conceitos que lhe são próprios, pode muito bem estar equipada para o estudo e alcançar mesmo a erudição. Mas, como há ainda, habitualmente, falha na faculdade de julgar (segunda Petri), não é raro encontrar homens muito eruditos, que habitualmente deixam ver, no curso da sua ciência, esse defeito irreparável.

Kant, Crítica da razão pura, B 172.

(...) und so zeigt sich, daß zwar der Verstand einer Belehrung und Ausrüstung durch Regeln fähig, Urteilskraft aber ein besonderes Talent sei, welches gar nicht belehrt, sondern nur geübt sein will. Daher ist diese auch das Spezifische des sogenannten Mutterwitzes, dessen Mangel keine Schule ersetzen kann; denn, ob diese gleich einem eingeschränkten Verstande Regeln vollauf, von fremder Einsicht entlehnt, darreichen und gleichsam einpfropfen kann; so muß doch das Vermögen, sich ihrer richtig zu bedienen, dem Lehrlinge selbst angehören, und keine Regel, die man ihm in dieser Absicht vorschreiben möchte, ist, in Ermangelung einer solchen Naturgabe, vor Mißbrauch sicher*.
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*Der Mangel an Urteilskraft ist eigentlich das, was man Dummheit nennt, und einem solchen Gebrechen ist gar nicht abzuhelfen. Ein stumpfer oder eingeschränkter Kopf, dem es an nichts, als am gehörigen Grade des Verstandes und eigenen Begriffen desselben mangelt, ist durch Erlernung sehr wohl, sogar bis zur Gelehrsamkeit, auszurüsten. Da es aber gemeiniglich alsdann auch an jenem (der secunda Petri) zu fehlen pflegt, so ist es nichts ungewöhnliches, sehr gelehrte Männer anzutreffen, die, im Gebrauche ihrer Wissenschaft, jenen nie zu bessernden Mangel häufig blicken lassen.