quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

Alvorada da janela de minha casa...


... com uma pequena pincelada do Corel Photopaint, evidentemente.

*****

Porque você sabe onde as palavras vão cair,
você não tem medo de andar na chuva.
A chuva de caixinhas escuras,
quer caia na sua cabeça - ou não.

Apreendes as colunas, dois eixos e um,
espaços vazios, cheios, espaços,
em que caixinhas se lançam na lama
desenhando um pixelado gramado.

Assim então não tens medo.
Tantos hematomas e pancadas necessárias;
mas não são tão possíveis, tão queridas?
Pois acaso não sabes onde elas irão cair?



terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

Desperdício

Meu pai tem um restaurante, um buffet a quilo, num bairro aqui de Florianópolis.

Não se enganem: comida é sim reaproveitada em um restaurante deste, sempre de acordo, é claro, com as especificações da Vigilância Sanitária.

Mas se pode ver o quanto de comida vai fora. Isso sempre me deixou desconfortável, e fico imaginando o quanto vai fora, e em escala macro, é muita coisa. Por mais logística que se faça, por mais que se imagine - e os restaurantes tem bastante interesse financeiro em não deixar sobrar, claro - sempre sobra muita coisa. Fico imaginando se não se poderia tomar soluções fáceis, de uma certa forma, para dispor de uma maneira mais inteligente, de todos estes restos, sem necessariamente tranformá-los em lixo.

Uma delas seria distribuir a comida entre pessoas de renda inferior, ou doar para alguma entidade assistencialista, algo assim. Sabem por que isto não pode ser feito? Porque qualquer problema que as pessoas tiverem, com relação a comida, é culpa do estabelecimento - como doenças, por exemplo. E, para evitar de uma vez este tipo de problema, a letra da lei coloca, peremptoriamente, que os restaurantes não podem fazer isto, e ponto final. E os restaurantes respiram aliviados. Eles não têm muito interesse nisto, afinal.

A lógica da argumentação é impecável: evita-se problemas sanitários com esta medida. Mas é o tipo de lógica burra, cega, fechada em interesses e resultados muito próximos. Mais um caso de lógica que se fecha em si mesma.

Pois, de uma certa forma, qual é o estabelecimento que não tende a prezar a qualidade das coisas que produz - sempre, é claro, dentro do parâmetro custo-benefício? Qual é a possibilidade de uma pessoa ter salmonela, por exemplo, comendo comida de um restaurante? Em mais de cinco anos do restaurante de meu pai, teve apenas um ou dois casos. Quer dizer, a medida tem seu âmbito, mas não seria um âmbito mal pensado... ou simplesmente preguiça de fazer diferente?

Pois porque não tentar fazer algo diferente? Não, a imagem do sopão dos pobres não precisa pular na sua cabeça. A comida poderia ser distribuída de graça, ou depois de um certo horário em que as classes trabalhadoras (ahUAHuaUAHhauHAUH) já tivessem voltado pra labuta, uma redução drástica de preço, algo desta forma, um prato por um real, que tal? O argumento de que se evita isto para evitar problemas sanitários é ridículo. Afinal, os problemas talvez não sejam tantos, e faria muito mais sentido proporcionar um tratamento para as pessoas que supostamente passaram mal por causa de tal comida, do que evitar a possibilidade por medo de uma possibilidade mais remota que talvez pareça.

Eu sei que o caso dos restaurantes é somente um entre muitos. Eu imagino que este tipo de desperdício é uma constante no esquema que montamos para nós mesmos, em nível local e mais global. Tenho certeza que o emblema de nossa época, para a posteridade, será a imagem de lixo, muito lixo, escondido daqueles que podem, jogados na frente dos lares de quem não podem tanto, presente na vida de outros que simplesmente não contam. Vide uma reportagem da revista piauí, deste mês, sobre a cidade de Lagos, uma megalópole de 15 milhões de pessoas vivendo em condições marcantes, onde uma das moedas de troca é o próprio lixo. 15 milhões de pessoas.

Sempre me lembro, nestes momentos, da Sônia Felipe, filósofa aqui da UFSC: imagine você indo no supermercado, comprando um quilo de carne suína de primeira, e ganhando junto um saco com quinze quilos de merda suína, a quantidade de resíduos que, felizmente, atualmente não passa sequer perto dos seus olhos, mas infecta o solo de regiões de intensa atividade agropecuária intensiva, como o oeste do estado de Santa Catarina.

A questão da lógica que maneja as nossas trocas materiais é que ela é, muitas vezes, short-sighted. Fico me perguntando se faz sequer sentido desejar que poderia ser diferente.

Niebuhr

Eu procurava por uma frase específica, que volteava pelo espaço aberto de minha mente, fresca e úmida como terra nova, como a noite de segunda. Era uma frase conhecida, que eu pensava ser de algum dos grandes padres cristãos, ou de Cristo ele mesmo. A frase é a seguinte:

"Meu Deus, dá-me a serenidade para aceitar as coisas que não posso mudar, coragem para mudar o que está ao meu alcance e sabedoria para que eu saiba a diferença entre ambas."

Que, fico sabendo, é usada pelo AA (e talvez pelos Narcóticos Anônimos também), com o nome de "oração da serenidade". É uma frase realmente muito bonita. Talvez ela aponte mais para incertezas do que para certezas: talvez nunca possamos saber, realmente, a diferença. Mas se colocar neste lugar já é o melhor começo, e muitas vezes o melhor começo é meio caminho andado - a gente anda, muitas vezes, sem o saber. Eu me perguntava recentemente, afinal, quando é que "se desiste" e quando é que não...

É a minha grande pergunta, atualmente. Quando é o movimento, e quando é a pausa?

A frase, porém, é de um teólogo americano que viveu no século XX, Reinhold Niebuhr. A internet, o grande celeiro da sabedoria incompleta em forma escrita, me dá mais um pouco dele. É teologia, então não é fácil "leitura", mas aqui vai dois trechinhos (a tradução é minha):

Human nature is, in short, a realm of infinite possibilities of good and evil because of the character of human freedom. The love that is the law of its nature is a boundless self-giving. The sin that corrupts its life is a boundless assertion of the self. Between these two forces all kinds of ad hoc restraints may be elaborated and defined. We may call this natural law [or divine law]. But we had better realize how very tentative it is. Otherwise we shall merely sanction some traditional relation between myself and my fellow man as a "just" relation, and quiet the voice of conscience which speaks to me of higher possibilities. What is more, we may stabilize sin and make it institutional....

Theology, February, 1940, in Love and Justice, p. 54.

A natureza humana é, em suma, um reino de infinitas possibilidades de bem e mal, por causa de seu caráter de liberdade humana. O amor, que é a lei de sua natureza, é uma doação, sem fronteiras, de self. O pecado que corrompe a sua vida é uma asserção sem fronteiras do self. Entre estas duas forças todos os tipos de restrições podem ser elaboradas e definidas. Podemos chamar isto de lei natural [ou lei divina]. Mas é melhor compreendermos o quão temporário isto é. De outra forma, nós meramente sancionaríamos alguma relação tradicional entre mim mesmo e os meus companheiros humanos como uma relação "justa", e aquietaríamos a voz da consciência que me fala de possibilidades mais amplas. Mais ainda, podemos estabilizar o pecado e o tornar institucional...

*****

Politics always aims at some kind of a harmony or balance of interest, and such a harmony cannot be regarded as directly related to the final harmony of love of the Kingdom of God. All men are naturally inclined to obscure the morally ambiguous element in their political cause by investing it with religious sanctity. This is why religion is more frequently a source of confusion than of light in the political realm. The tendency to equate our political with our Christian convictions causes politics to generate idolatry.

Christianity and Crisis, July 21, 1952, in Love and Justice, p. 59.

Política sempre almeja algum tipo de harmonia ou equilíbrio de interesses, e tal harmonia não pode ser considerada como diretamente relacionada à harmonia final de amor do Reino de Deus. Todos os homens são naturalmente propensos a obscurecer o elemento moralmente ambíguo em sua causa política, investindo-o com santidade religiosa. Isto é como a religião é mais frequentemente uma fonte de confusão do que de esclarecimento no reino político. A tendência de igualar as nossas convicções políticas com nossas convicções cristãs faz com que a política gere idolatria.

domingo, 25 de fevereiro de 2007

Fogo Azul


Uma maravilha miraculosa em nossas cozinhas, cotidianamente.

O fogo é azul.

Durante milênios, em nossa história evolutiva, o fogo foi aquela criatura indomável, flamejante, carmim. Freud diz que mijar no fogo e o apagar foi uma grande conquista da humanidade, ou algo deste calibre.

E dona Maria vai pra cozinha, liga o gás e acende o fogo, e lá está a sempiterna chama azul.

Se você olha com carinho, percebe o quanto é uma coisa maravilhosa. O fogo é azul.

sábado, 24 de fevereiro de 2007

Procrastinação

Estou profundamente emocionado.

Que eu sou um grande procrastinador, todo mundo que me conhece sabe. Aliás, não é para com tudo: eu sou um grande procrastinador, mas um procrastinador acadêmico. Deixo atrasar trabalhos, enrolo os professores, peço segundas chances.

Em outras coisas, sou normalmente organizadinho e bonitinho.


Meu receio é que todos pensem que eu sou uma criatura pelvelsa, que faço isto por não dar a mínima a tudo aquilo, por não querer saber. Bem, sempre se tem uma pontinha de não querer saber, mas não sou uma pelvelso, a não ser talvez em manifestações sexuais esporádicas.

Não, Kátia; não, Magda, Roberto (os dois, Guerra e Cruz, que lindo título), Sílvio, Olga, Carmen, Ângela, Edmilson, Chalfin, Abel, Jadete, Andréa, Mauro, Sérgio, Fernando, Tuto, e demais. Não, não faço por mal. Sou apenas um rapaz latino-americano procrastinador.

Estou profundamente emocionado pois, como sempre do nada, dou de cara com artigos sobre procrastinação, justamente numa tarde de sábado em que estou procrastinando trabalhos que podem decidir se vou repetir a disciplina semestre que vem ou não (já deixo aqui avisado que se tratam de Desenvolvimento III e Social II, para que eu sofra peer pressure, o que dizem que ajuda a não procrastinar). Os artigos dizem que a procrastinação é um problema acadêmico sério, que os departamentos de atendimento aos alunos devem saber lidar com isto, e que eu não sou o único!

Usualmente a procrastinação de trata de ou problemas pessoais (dã, categoria aaaaaaaaaaampla), ou ansiedade e coisas similares (hum), raiva, hostilidade, baixa auto-estima, baixa tolerância a frustração ou questões de perfeccionismo. Interessante.

E eu vou então me mandar e tentar parar de procrastinar, que é o que eu estou fazendo escrevendo pra vocês.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

Galheta


A praia, é a Galheta, para quem conhece, aqui em Florianópolis. A vista é do alto da trilha que vai da "fortaleza" da Barra da Lagoa para a Galheta. Foi ali, onde a montanha esconde a praia no centro da foto, que eu passei as últimas horas de 2006. Uma lua monumental prateava a vegetação arrastada pelo constante vento marítimo, espraiada no declive suave das encostas. As ondas quebravam em colunas de mercúrio. Ternura, admiração e terror. A Galheta é conhecida por ser uma praia de nudismo optativo, por prática de sexo nas trilhas mais próximas da praia, e (dizem) por ser ponto focal para as bruxas da ilha, especialmente na lua cheia. Muitas pessoas evitam a Galheta por um motivo qualquer (destes). Esta é a cidade onde eu moro.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

Palitos no céu, palitos no inferno

Tem uma historinha oriental, talvez budista, que nos fala o seguinte:

um cara vai para o "inferno", e o que ele encontra lá? Uma mesa enorme, com pratos deliciosos, manjares inesquecíveis, moças e rapazes nus (há de se respeitar o gosto sexual de cada) deitados cobertos com sushis, enfim, um repasto maravilhoso. Várias pessoas se sentavam em torno desta mesa: todas tinham o braço esquerdo amarrado nas costas, e no braço direito a mão era amarrada com um longo palito, que impediam que elas usassem as mãos para se servir de qualquer coisa, e os palitos eram longos demais para que elas os usassem para levar coisas à boca. Todos estavam famintos, então, obrigados a sentar nas cadeiras, com a visão de comida eternamente deliciosa à sua frente; choravam e gritavam de desespero, choro e ranger de dentes. Provavelmente, em sua angústia, usavam seus palitos para cutucar a orelha do companheiro ao lado.

No "céu", a cena era exatamente a mesma, sem tirar nem pôr: até o sushi estava lá. Só que todos usavam os palitos para levar a comida até a boca do companheiro ao lado. Fico imaginando as conversas: "gostaria de alguma coisa?" "humm... que tal aquele quiche de azeitonas, ali do seu lado?". E todos comiam e ficavam satisfeitos. Não sei dizer se comiam o tempo todo ou se faziam outra coisa nas horas vagas, como carteado - é de se pensar. Mas enfim, a história é esta.

Hipótese(s):

a) um macaco descobriu uma forma de lavar suas batatas numa praia japonesa; a idéia se transmitiu "noosfericamente" para os demais macacos de balneários vizinhos. Os macacos descobriram o céu e o inferno. Os macacos ensinaram os habitantes do céu por analogia; os habitantes do inferno tentaram escravizar os macacos por analogia, e até hoje os macacos não voltaram ao inferno.

Esta é a minha hipótese, a mais simples em que posso pensar para esclarecer esta história.
Trecho de "O mito de Sísifo", o turbilhante livro de Camus.

Se a descida, assim, em certos dias se faz para a dor, ela também pode se fazer para a alegria. Essa palavra não está demais. Imagino ainda Sísifo indo outra vez para seu rochedo, e a dor estava no começo. Quando as lembranças da terra se mantêm muito intensas na lembrança, quando o apelo da felicidade se faz demasiadamente pesado, acontece que a tristeza se impõe ao coração humano: é a vitória do rochedo, é o próprio rochedo. O enorme desgosto é pesado demais para carregar. São nossas noites de Getsêmani. Mas as verdades esmagadoras perecem ao serem reconhecidas.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

Lixo

A gente abre o Bis, come o Bis e joga o papel fora.

A gente esquece que não se joga nada fora. Não se joga nada fora: apenas joga para longe.

Jogar fora é lançar longe, em viagem. Nada foi fora, a não ser longe dos olhos.

domingo, 11 de fevereiro de 2007

Lambuze-me

Atenção, todos vocês: descobri ontem que o alimento que se conserva por mais tempo é o mel. Foram encontrados potes, em sarcófagos egípcios, com um tanto de mel, ainda consumível - um tempo atrás. Provavelmente então o mel foi encaminhado à Sotheby's, e uma pessoa de l'argent enfeitou o seu pão nosso de cada dia da Polaîne com camadas douradas egípcias.

Ou ela fez como eu e o velho de Marquez, no "Memória de minhas putas tristes": fez um café forte e Bom, e adoçou-o com o mel - sem a "tapioca" do velho, necessariamente.

Eu tomo mel todo dia, desta forma, religiosamente prazerosa, meu paraíso profano. Será que o mel tem uma virtude conservativa, exatamente por se conservar tanto? Será que ele vai me fazer viver mais, ficar mais conservado, enquanto envelheço na soleira da minha casinha de madeira, sentado perto da grama salpicada de sereno, tomando café e observando o mundo desfilar à minha porta? Bem que eu podia viver numa época em que as coisas se davam desta forma: havia "forças" e afinidades entre as coisas, definidas por suas características. (Tenho em mente o livro do Eco, "A ilha do dia seguinte".) Hoje, o mel é apenas um adoçante, e quando muito tem suas propriedades anti-sépticas e anti-inflamatórias.

Mas ainda penso que daqui a pouco ele vai perder o posto de campeão na sua virtude conservativa. Nunca se sabe onde a indústria alimentícia terrestre do século XXI e além pode nos levar. Creio que não é preciso ir muito longe: não é característico dos contos e historietas pós-modernos o personagem principal, jovem urbano, encontrar uma bolacha, daquelas suas favoritas, debaixo da almofadona do sofá, e comê-la, para desespero de sua mãe fluminense, d. Alcina?

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

Comoção nacional

A morte de um menino de 6 anos, João, preso ao cinto de segurança do lado de fora de um carro, arrastado por 7 quilômetros pelas ruas do Rio de Janeiro. Estava com a mãe e a irmã quando três homens se aproximaram para um roubo. Elas saíram, e ele não conseguiu sair - a Folha enfatiza a hiperatividade e os problemas motores e físicos do garoto.
Na novela do horário nobre global, uma cena: três freiras lêem a tragédia no Globo, com lágrimas nos olhos e voz trêmula, e rezam um pai nosso.
Isso, sim, é comoção nacional: uma cena colocada em último momento no horário nobre.
A Folha também dá detalhes da massa encefálica e do corpo decapitado e aquebrantado. Os suspeitos foram quase linchados. A multidão gritava "assassinos". E eles disseram que não perceberam que o garoto estava preso no carro.
Mentira? Muito crack na cabeça?
Eu mesmo quis linchar um destes caras. Quis, quis, quis. Quis muito. Fiquei muito revoltado. Uma atitude natural. Foi breve, mas foi. Precisei de uma dose de razão e outra de sensibilidade para deixar o acontecimento ir...
Rezemos pelo garoto. Ou melhor, pensemos no garoto e rezemos por nós.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

Cila-ila, Caribdis-ibdis & Tila Tekila

(versão 1, modificações possíveis, eu tenho pressa...)
Ultimamente tenho sido assombrado - literalmente assombrado, assombreado, soçobrado - por um questionamento cruel. Cruel, e delgado como uma lasca de cristal; a crueldade de uma lasca de cristal que se enterra debaixo da unha.

Onde está a diferença entre desistir e deixar acontecer? Onde está aquela sutil diferença entre desistir de algo - por achar impossível, por não poder mais ir adiante, por quaisquer razão - e a consciência limpa de que algo acabou, de que se tentou, se viveu?

Onde poder confessar que não dá mais, e onde é que esta confissão é uma mentira?

Será que dá para definir esta dúvida? Será que eu sempre sou responsável pelas minhas escolhas?

Nem todas as coisas são possíveis. Há coisas que simplesmente não podemos fazer. Isso não nos mostra que as coisas são impossíveis: há muitas coisas que podemos fazer. É assim que se dividem as coisas, então? Entre possíveis e impossíveis? Mas ora, como haveria de ser assim, se olhamos ao nosso redor e vemos as circunstâncias e a paisagem mudando, de momento a momento. Olhamos para a nossa história e vemos que certas coisas que achávamos impossíveis são possíveis, e outras, que achávamos possíveis, não o são tanto assim... e nada impede que este movimento continue, a colocar os possíveis nos impossíveis e vice-versa.

Estou falando de dois pólos, possível e impossível, mesmo sabendo, como coloquei agorinha acima, que não se trata de estes dois pólos, realmente. Se trata de algo muito, muito mais complicada: a probabilidade.

Mas... onde está a diferença entre desistir e deixar acontecer? Por que se desiste? Quem é que desiste?

Enfim, quem é que vai conviver com o arrependimento?

Afinal, arrependimento existe?

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Ao mesmo tempo, a realidade me bateu com força total, e me lançou de cara no chão.

Somos uma geração que tem medo de realidade, pois achamos que ela não existe por si só. Vivemos nesta posição esquisita de negar uma realidade forte, mas ao mesmo tempo a temos na nossa frente todo o tempo - e sabemos disto.

Creio que não se trata em nada de uma característica destes nossos tempos, esta dialética frente à realidade. Mas os nossos tempos são os primeiros a inventar para si a fantasia de uma realidade "virtual", de várias realidades, de várias facetas. Enquanto que em outras épocas parecia ser mais difícil sair fora da historinha do "real" - a não ser pela via da fantasia desenfreada, pra se dizer assim (romances, céu e inferno, loucura) - a nossa época se compraz e se congratula em colocar para si mesma que a realidade tem o impacto de uma bala de gelo no crânio. Ela pode impactar, mas ao mesmo tempo derrete-se.

Quando eu falo realidade eu não falo somente "do mundo lá fora". Este mundo lá fora, que é ele? Que sou eu, este mundo "aqui dentro"? Realidade pode ser definida, para os meus simples interesses leigos, como aquilo que resta depois de tudo mais, depois de qualquer dissolução do mundo dentro das nossas cabecinhas: a morte é um exemplo de realidade, para se colocar assim. Ou melhor, o saber-se morrer.

A realidade é o lembrete que se tem de fazer alguma coisa, mesmo que não se saiba o quê, ou o porquê.
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Onde desistir, então? Será que toda desistência é uma covardia? Será que devemos mesmo, como Hamlet, tomar de armas frente a um mar de problemas e, opondo-se a eles, extingui-los? Será que é esta a metáfora da vida humana - a da "luta", a da oposição, a da força humana frente aos vendavais que ameaçam extinguir sua tênue e fraca, porém inteligente, centelha de vida?

Ou será que a metáfora é a homérica, os homens como gerações de folhas ao vento, morrendo e caindo, ao capricho de deuses tão caprichosos quanto nós, mas imortais?

Ou será que a metáfora é outra, de um homem numa relação harmônica com os outros e com o seu mundo, encontrando um equilíbrio dinâmico - ou pior, encontrando a entropia?

O que nos espera além das estrelas: o fogo, o gelo, ou uma injeção de graça na testa? Ou o carimbo do Ibama intergalático?
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Eu não vou afirmar que todas as respostas são temporárias (apesar de me parecerem assim), mas se assim são, eu não me admiro. Não vou afirmar que todas as decisões morais e éticas são temporárias, apesar de me parecerem assim, mas se o forem, eu não me admiro. Não vou afirmar: não posso dizer.

Me admiro um pouco, na verdade, a admiração de um cara que gostaria que ao menos uma coisinha ínfima que fosse fosse certa, segura e certeira.

(A morte? Mas quem é que morre? Te contaram? Quem?)

Mas não me admiro no sentido de achar que só é assim, se for, por uma falha humana.

Talvez faça mais sentido - e seja mais engraçado - se pudéssemos pensar que ter certeza seja a maior falha humana de todas. De que, quando alguém chegar e dizer para nós, "eu sei", podemos desconfiar muito dele.
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Vocês entendem? Se seguimos pelo caminho, encontramos nossos inimigos mais ferrenhos. Se não seguimos, não encontramos nada, nem ninguém, e morremos. Se continuamos pelo caminho, encontraremos no mínimo dois rios. Um do nada, e outro do tudo. Não é difícil de ver isto. Não é uma experiência mística. Encontramos dois rios, um do "niilismo", e outro do "eternalismo". Dizem que foram estes os dois rios que Sidarta encontrou, para usar o personagem espiritual com quem tenho mais intimidade. Encontramos o caminho de que nada existe, ou nada é verdadeiro, ou nada permanece, e vivemos com isto. Ou então encontramos o caminho de que algo existe, algo é verdadeiro, algo permanece - para sempre - e vivemos com isto.

Como viver com o primeiro? Já sabemos o que o niilismo sincero e aplicado pode fazer. Todos nós sabemos. O segundo, eternalismo, sabemos também.

Dizem que era esta a discussão que estava em voga 2600 anos atrás, na época de Sidarta: a discussão se existia algo que permanecia para sempre, ou, para colocar em uma palavra, se existia algo que era imutável. Alguns iam pro lado do niilismo e respondiam que não: nada era imutável, nem a mais minúscula das partículas imagináveis. Outros iam pro lado do eternalismo e diziam que sim, que havia algo imutável, mesmo que fosse a mais minúscula das partículas imagináveis.

Não precisamos ir muito longe para entrar nesta discussão: a discussão entre mutável e imutável encontra-se no nosso berço cultural, no nascimento da nossa "filosofia".

E, falando seriamente, não há nada de mais nesta discussão também, pois é um questionamento básico, ao meu ver. Ele continua ininterruptamente até hoje. O importante é perceber que cada um destes posicionamentos leva a uma atitude com relação à vida e morte.

Este questionamento está no âmago da vida cotidiana, da vida de todos nós. Esta AMBIVALÊNCIA está no âmago da vida de todos nós. Não precisa ser dotado para ver: não se trata de misticismo, ou de insight. Este conflito está no âmago da nossa "existência".

Quem eu sou? E nos damos respostas: escolhemos uma opção, muitas vezes mudamos no meio, misturamos um pouco, fazemos uma resposta, e vivemos desta forma.

E eu tenho a impressão de que nenhuma das respostas vai acabar com esta contradição fundamental. O que fazer, então?

Se fosse somente uma questão de responder a uma pergunta, não seria tão foda assim. Afinal, há várias perguntas que não damos a mínima se elas forem respondidas ou não - a não ser, é claro, quando elas se apresentam para nós, quando sim tratamos de resolvê-las (e nem sempre estamos certos de ter dado "A Resposta", mas grande coisa...) Mas esta contradição, ela te incomoda ou não?

Muitas vezes dá vontade de tirar uma faca que está enterrada no meu peito, achando que ela é a causa de tanta confusão, de tanta insatisfação. Mas todos sabemos o que acontece quando tiramos facas enterradas no peito: o sangue brota e jorra com força.

O que fazer? Fazer nada, afinal de contas é tudo um sonho, nada existe em seu sentido mais puro? Tiro ou não tiro?

Quem é que vai tirar a faca? E quando, e onde, e como?