terça-feira, 30 de maio de 2006

Fiquei estarrecido com o acontecimento de ontem.

Segunda-feira de manhã, um belo dia talvez, a aula pré-prandial, chegando atrasado como sempre, abro a porta e encontro a sala em círculo. Penso estar na sala errada, dada a história sempre "expositiva" do professor. Mas era a minha sala, sem sombra de dúvida. Entro, encontro uma cadeira para sentar, fora do círculo; penalidade dada àqueles atrasados de segunda de manhã. Descubro que a sala está discutindo entre si um texto, que eu também não li, como é o meu costume inconsciente. Algumas regras postas, contudo: que o professor não interviria em nada, e que ninguém podia sair até que a primeira prerrogativa terminasse.

Peguei o texto de uma mesa abandonada e comecei a ler ali mesmo, enquanto algumas pessoas colocavam pontos e questões. Era um texto curto e interessante, de um assunto que me interessava, e foi muito interessante estar lendo ali o texto, junto com os (poucos, devo dizer) comentários da turma. Tudo muito interessante. Falava da "linguagem dos sentimentos" em grupos, e embora este termo esteja meio caduquinho e breguinha, ele colocava alguns pontos interessantes, e, melhor ainda, concernentes à situação que estava ocorrendo ali e naquele momento. A intenção deste exercício provavelmente era, além da discussão do texto, uma vivência mesmo das "linguagens" em jogo.

Foi um processo bem interessante. Em certos momentos algumas das poucas pessoas que estavam discutindo pediam a intervenção do professor, em termos de conceitos a ser esclarecidos, e coisa e tal. Ele se recusava e a coisa continuava. Estes pedidos começaram a ficar mais frequentes e mais "afetivos", sublinhando o papel dele como professor e estas coisas assim. No final das contas uma menina ficou realmente nervosa, praticamente com raiva. Logo depois ele parou e perguntou como nos sentimos com isto. E os comentários me impressionaram.

Quem não falou nada durante o tempo todo, uns 80 porcento da turma, continuou calado. Foi só ele liberar a turma, e faltava bastante tempo para o término da aula, que este pessoal (que eu carinhosamente chamo de "as meninas da psico") debandaram com graça e elegância, uma por uma, sem um piu ou ai. Literalmente uma por uma, e se duvidar em ordem alfabética. O restante, obnubilado por tal enxame de futuras psicólogas, continuava a discussão. Uma disse que achou chato e que ficou a aula inteira lendo um outro texto; outra, que ficou confusa e que achava que tinha sido "não-legal" da parte do professor proceder desta forma, não respondendo às suas dúvidas. Outra disse que tinha sido uma perda de tempo, e a raivosa disse que aquilo não era uma aula de verdade. Me foco aqui nas críticas, mas os que falaram de resto foram mais neutros que outra coisa. Eu só comentei que me senti totalmente de fora com a opinião da sala como um tudo, contudo, pois eu realmente tinha ficado muito contente, com a leitura e com a dinâmica.

Teve um comentário que me chamou bastante a atenção: "nós somos uma sala quieta, realmente". Não me lembro do contexto, mas enfim, eles assumem para eles mesmo esta "qualidade"? Puxa vida. Eu não sei se fiquei mais estarrecido com o desinteresse das meninas da psico ou com esta relação professor-aluno, desta relação específica com o conhecimento, destes apelos à "autoridade" sobre o assunto e até mesmo, por que não dizer, desta carência de..,. autodidatismo?

Enfim, não posso colocar isto como generalizável para a minha faculdade como um todo, mas me alegra saber que eu ajo de forma diferente.

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É praticamente uma aventura pessoal descobrir até onde a experiência de nossos contemporâneos e de nossos antepassados pode nos guiar em certas formas de proceder na nossa própria vida.

(Começo falando de forma geral e abstrata, mas todos aqui devem saber que falo de mim mesmo. :))

Tenho visto que a minha escolha profissional será/é marcante, em vários sentidos. Hoje eu falo do sentido da marca, da alfinetada na almofada da vida cotidiana que uma escolha de caminho sempre dá; uma escolha escolhe quem escolhe.

Se eu decido ir pro lado da psicoterapia ou mesmo, por que não, da psicanálise, qual será a relação que eu vou ter de manter com a comunidade onde estou e, mais especificamente, com a língua? É uma pergunta que eu tenho me colocado por motivos óbvios, pensativo que estou em que mudanças de lugares e afins. Eu tenho de ser um ótimo falante de uma língua, para uma prática psicoterapêutica? Ou psicanalítica, então?

O que eu tenho percebido é que a experiências dos meus contemporâneos e dos meus antepassados pode indicar perguntas, mas não caminhos. Não mais. Em realidade é o meu papel ou meu destino ou sina ou bolhinha-de-sabão trilhar as novas configurações, como todos fazem todo o tempo e acham que não fazem.

iê!

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Acontecimentos marcantes me fizeram lembrar da famosa frase do Sócrates, no seu julgamento.

"Uma vida não-examinada não é digna de ser vivida."

Na verdade a frase me veio (e ficou um dia inteiro) em inglês, mas digamos que esta é a tradução formal da frase, que em grego é praticamente a mesma. Eu acho uma frase aterradora e marcante.

Aliás, como eu estou falando tanto de "marca" e "marcante"! Engraçado...

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O veranico de maio está aí, em sua força total. Hoje eu suei toda a gordura acumulada em dias e mais dias glaciais, e então temos o último suspiro de calor antes do frio.


Agora eu tenho um aquecedor a óleo e nunca mais passarei frio... dentro do meu quarto.

terça-feira, 23 de maio de 2006

Adoro bandinhas de menininhas. De pequenas mini-punks narcísicas, de belos sorrisos raros, de olhos escuros e olhares desconfiados, de rostos lisos e brilhantes e rostos redondos e bochechas vermelhadas e maçãs do rosto salientes e cabelos pretos de ângulos retos e obtusos como uma fina placa de ébano laqueado.

Adoro como elas cantam, como se pouco se importassem, com a fina camada de atenção sublimada. Como strippers. A maneira de abraçar suas pequenas guitarras de boca, como armas que embalassem em seu colo gentil e quente e enrolado em tiras róseas.

Adoro a podre corroída misère maquiada das finas moças gentis, de amplo sorriso.

You know, like the Big Dipper.

quinta-feira, 18 de maio de 2006

Pelas termas de Caracala!!

Voltei a ser adolescente.

Estou escutando, com o maior tesão, a minha trilha sonora de meus 15-16 aninhos, radiantes aninhos, os aninhos de... bem, quem me conhece sabe que aninhos foram estes... E que trilha é esta, d'na Mareea me pergunta?

Ora, ora, quem mais que No Doubt no Tragic Kingdom?

you came in with the breeeeeeeeeeeeze, on sunday morning...
I'm sure you've changed since yesterday, without any warning

E, confesso, foi uma redescoberta legal. O No Doubt, nesta época, ainda tava brincando com a música; despretencioso (é com s ou c?) e divertido, como muitas músicas deveriam ser. É legal. Além de suas letrinhas falando de coisinhas básicas, que eu estou me sentindo o mais básico dos humanos, humano, demasiado humano, no último mês.

Pois, no resto, como diria a Moùza, they only want you when you're seventeen... when you're twenty one, you're not fun.

sexta-feira, 12 de maio de 2006

Por que a água é azul?

Sim, a água é azul, em grandes quantidades. Sim, há dias que a a água tem sua cara marrom, como na BeiraMar "poluída", ou sua cara cinza, como no mar cinzento dos elfos de Tolkien e, na expressão mais desconcertante, o mar cor-de-vinho de Homero. E tem dias que a água do seu copo não quer, de jeito nenhum, deixar de ser transparente. Aliás, a água do meu copo nunca deixou de ser transparente. Mas água em grandes quantidades é azul. É porque a água reflete o céu?

http://www.dartmouth.edu/~etrnsfer/water.htm

Eu sou fascinado pela cor azul. Eu sou fascinado pelas cores naturais. O brilho de uma esmeralda, por mais azul e profundo que seja, não substitui o azul anil intenso e extenso de um dia de outono, céu de brigadeiro. Um rubi, nas suas entranhas de fogo, não se compara ao brilho preternatural e efêmero de uma chama.

terça-feira, 9 de maio de 2006

Solaris

Solaris. Planeta. Planeta? Talvez um organismo. Um planeta coberto por um organismo; um único organismo talvez, habitando um planeta.

Um século de pesquisas, e nenhuma resposta.

Sabe-se de suas complexas estruturas, de suas revoltas manifestações mutantes, arquitetura titânica escalofobética em compostos orgânicos. Parece intencional. Parece que percebe a pequena estação flutuante, perto de sua superfície.

Um século de investigação científica, de complexa catalogação, de ansiosa especulação metafísica; um século de estudos solarianos, de volumosos volumes encardenados em couro verde, de volumosos volumes de índices aos volumosos volumes, arranjados em ordem alfabética em uma estante em órbita.

Até agora, o nosso único contato, e ainda não se sabe se estamos a contatar o nosso único contato, organismo talvez, mostruoso, uma camada de plasma, talvez pensante.
Uma pequena estação em órbita, um século de pesquisa. Um iogue cósmico? Uma inteligência planetária?

Um século de contato frustrado, um século de catalogação do que talvez possa ser inteligência - a sublime simetria matemática de suas catedrais de esponja, efêmeras! - do que talvez possam ser causalidades desconhecidas, criatividade entrópica aos engulhos, destinada a ser engolfada, um turbilhão de leis físicas em meio a um espaço apavorantemente vazio.

Kris Kelvin, psicólogo. Dezesseis meses de viagem, desce em uma pequena cápsula até a estação, recepcionado pela voz mecânica do computador. Vem para investigar o comportamento aberrante da equipe a bordo, sua falta de respostas, seu estranho silêncio. Kris deve ser um excelente cientista, para ser recomendado a tal missão; foi estudante e amigo de um dos pesquisadores, que descobre então morto, Gibarian. Suicídio. É o que lhe fala Snow, que Kelvin descobre solitário na cabinde de rádio. Snow olha-o com medo, como se não reconhecesse, como se não soubesse de quem se tratava, como se ignorasse os avisos recentes de sua chegada. Outro, Sartorius, trancado no laboratório, parece ter medo de que Kelvin veja o que, ou quem, está junto dele. O som dos passos é de criança, e a risada também.

Kelvin vê uma negra andando pelos corredores da estação. Desce para ver o corpo de Gibarian no congelador, morto na última noite, e encontra, do lado dele, cadáver, a negra estendida ao seu lado, o corpo morno, como se estivesse dormindo, em meio a um frio enregelante.

Kris começa a perguntar se ele, também, não está enlouquecendo, alucinando, por um motivo qualquer, talvez os gases tóxicos do planeta. Monta um experimento e descobre que, infelizmente, nada daquilo é delírio. E então vai dormir.

"Tirei toda a minha roupa, fiz com ela uma bola que joguei longe e deixei-me cair sobre o travesseiro. Nem mesmo me dei ao trabalho de o inflar convenientemente. Adormeci sem apagar a luz.

Quando tornei a abrir os olhos, tive a impressão de haver cochilado alguns minutos. O quarto estava banhado por uma penumbra vermelha. Fazia menos calor. Eu estava me sentindo bem, deitado, com as cobertas afastadas, inteiramente nu. A cortina só cobria metade da janela e lá, defronte de mim, ao lado da vidraça, iluminada pelo sol vermelho, havia alguém sentado. Reconheci Rheya. Usava um vestido de prata, branco, cujo tecido estava esticado no bico dos seios. Tinha as pernas cruzadas e os pés descalços. Imóvel, com os braços abertos bronzeados até os cotovelos, olhava-me por entre os cílios escuros. Rheya, com seus cabelos pretos penteados para trás. Encarei-a durante muito tempo, calmamente. Meu primeiro pensamento foi reconfortante: eu estava sonhando e consciente disso. Não obstante, preferia que ela sumisse. Fechei os olhos e tratei de varrer aquele sonho. Quando tornei a abri-los, Rheya estava sentada ao meu lado. Tinha os lábios entreabertos, como de costume, num gesto de assoviar. Mas seu olhar era sério. Lembrei-me da véspera, quando fizera aquelas especulações a respeito dos sonhos. Rheya não havia mudado desde o dia em que a vira pela última vez. Tinha, naquela época, dezenove anos. Hoje teria vinte e nove. Mas, evidentemente, os mortos não mudam, ficam eternamente jovens. Ela fixava-me com o olhar espantado de sempre. Tive vontade de atirar alguma coisa sobre ela. No entanto, apesar de se tratar de um sonho, não tive coragem - mesmo em sonho - de maltratar uma morta.

- Coitadinha! Você veio me visitar? - murmurei."

[continua aqui.]

Este livro é fantástico; esta cena é fantástica. O livro não é fantasticamente bem escrito, a história não é fantasticamente bem bolada, nem desenvolvida, mas é exatamente, para mim, este deixar pontas soltas, este silenciar-se, o grande toque de arte do Lem.

É tocante a figura de Kelvin, o cientista, o psicólogo, assumindo paradoxalmente, com uma ansiedade reconfortante, a posição de crédulo, a posição de não querer saber quem Rheya é, quem ela está sendo agora, ao mesmo tempo de achar-se podendo resgatar uma culpa do passado, através do perdão desta Rheya, Rheya esta que pode ser um símile, um fantasma, uma tentativa de comunicação do "oceano"...

É tocante a própria Rheya, ao descobrir da sua morte.

Além do resto do livro, da própria discussão sobre o oceano em si, da história cômica e trágica de mais uma interface entre o mistério da fé e do conhecimento científico, "solarística", de som e fúria, significando nada. Nada?

Este foi o livro que inspirou dois filmes, um do Tarkovsky, de 72, se não me engano, que é mais fiel ao texto do livro, mas é um tanto maçante, e o recente, de 2002, do Soderbergh, com o George Clooney, que é interessante, mas nada demais. A música deste filme, porém, de Cliff Martinez...
eu até queria que este blog tivesse sons, pois a música é fantasticamente... silenciosa. Sem palavras. Leia o livro, e ouça a música.

"O silêncio destes espaços infinitos me apavora". Pascal.

sexta-feira, 5 de maio de 2006

Seria Horácio epicurista?

[Adendo do dia seguinte, seis de maio de dois mil e seis, data do sesquicentenário do nascimento do médico vienense, forefather da psicanálise, vida doçura esperança salve salve Sigmund Freud {lê-se "fróid"}. Sim, Quinto Horácio Flaco tinha sua ampla raiz epicurista. Depois de uma estafante busca pela internet encontrei fontes fidedignas deste fato, e descobri que Epicuro falava umas coisas muito mais interessantes do que eu imaginava, e que eu sou um cara tão genial que acabei sendo epicurista na minha pontuação da poesia, mesmo conhecendo três linhas biográficas sobre a vida de Epicuro, tirada de um velho manual de filosofia qualquer. Mentira, é que o epicurismo tem um pontos de contato com o pensamento budista. O texto, assim sendo, está sendo reescrito para o futuro próximo.]

Estou passando por uma época complicadinha. Não entro em detalhes, mas estava recentemente procurando alguma peça de literatura que refletisse este velho drama, o drama do amor e da separação; não o drama do amor-resto de um, e de outro que não ama mais. Falo sim do amor de dois, separados. Procurei, e algumas coisas que encontrei não me satisfaziam. Principalmente Romeu e Julieta, muito cristão, que a única parte que eu gosto é a linda declaração de amor dos dois.

Eu sou muito (pós?)moderno para ser romântico!

Hoje de manhã, do nada, me lembrei do Horácio, a tal falada ode do Horácio (Odes, I.11), que uma época eu cheguei a ter escrita em letras grandes no meu quarto, mas nunca eu parei para ler direito como eu fiz hoje. Ela fala o seguinte (a tradução depois é minha; valeu, Perseus!!):

Tu ne quaesieris, scire nefas, quem mihi, quem tibi
finem di dederint, Leuconoe, nec Babylonios
temptaris numeros. ut melius, quidquid erit, pati.
seu pluris hiemes seu tribuit Iuppiter ultimam,
quae nunc oppositis debilitat pumicibus mare
Tyrrhenum: sapias, uina liques et spatio breui
spem longam reseces. dum loquimur, fugerit inuida
aetas: carpe diem quam minimum credula postero.

Não queiras, Leuconoê - é ímpio - conhecer o fim que a mim, a ti, deram os deuses, e nem tentes os cálculos dos babilônios. Quão melhor suportar o que quer que virá! Sejam vários invernos, ou seja o último que Júpiter nos concede, e que agora enfraquece o mar Tirreno contra as pedras; sejas sábia, filtres os vinhos, e corte todas as longas esperanças, sendo nosso tempo breve. Enquanto nos falamos fogem os nossos instantes, invejosos: colha os dias, confiando o mínimo no futuro.

Enfim, estava bem ali, debaixo do meu nariz este tempo todo. Sentei-me hoje então e escrevi uma pequena análise leiga, baseado no que eu conheço, e algumas questõezinhas interessantes, esclarecendo e aumentando o pouco o sentido e o significado de algumas palavras e expressões. Não seria nem uma análise, e sim alguns pontos interessantes.

O que se segue é este texto.

Nefas é a palavra para "contra a lei divina". Sendo este poema romano e pagão, seriam as vontades e leis dos deuses; impiedade seria, por exemplo, a húbris, o orgulho humano em se exceder acima de sua medida (p. ex, de conhecer o que lhe reserva a vontade - ou mesmo o capricho, pois os deuses são caprichosos - do Olimpo). Este é um conceito grego, mas creio que pode se aplicar neste poema de Horácio. Os "cálculos (números) dos babilônios" se refere à astronomia caldéia - à previsão de um futuro através de sinais externos.

E por que seria "tão melhor" suportar o que vier? É uma boa pergunta. Eu mesmo estou me fazendo ela a torto e a direito. De três uma: ou há o destino, e mesmo que o pudéssemos prever não poderíamos controlá-lo; não há destino certo e seguro, e neste caso poderíamos conhecê-lo um pouco e controlá-lo um pouco, talvez muito pouco; ou não há destino. As Moiras, na mitologia greco-romana, eram as três deusas: uma fiava o tecido da vida, outra media o comprimento dele, e outra o cortava. Mas, mesmo assim, as vidas dos homens eram como folhas de árvores, sujeitas à vontade e necessidades dos deuses. Como fica esta questão?

Em qualquer um dos três casos, porém, não vale a pena saber do futuro. Em um, porque ele não vai mudar; em outro, porque ele é incerto, e no terceiro, porque não dá pra saber.

Os invernos e os verões e demais estações que se repetem e, apesar de ser cíclicos, marcam a linha reta unívoca que marca a vida humana; este mesmo inverno (se) enfraquecendo, debilitando (e a primavera começa antes do inverno terminar...) ao bater e bater e bater as ondas contra a barreira de pedras lambidas por muito tempo pelas mesmas ondas da água do mar Tirreno (pumex significa pedra, em geral, especialmente estas pedras erodidas pela água). Que visão magnífica! As pedras lentamente sendo dilapidadas pela água, pedras onde o próprio inverno deixa de ser... Quão prático, numa cena dessas, usar a palavra "inverno" para invocar um tempo natural e cíclico, sendo que o "inverno", tal como nós vemos, morre a cada ano...

Filtrar os vinhos, isto é, passar o vinho por peneira ou coador para retirar as impurezas: os pedaços de casca e de fruta ainda presentes, pedrinhas, os sais que se formam no fundo, e a parte da borra que ainda permanece. Como todos os visitantes da cantina da Pipa sabem (ou da sua cantina de vinhos coloniais local) vinho com impurezas dá uma dor de cabeça!, além de não ser a coisa mais fantástica de se tomar na vida. A sabedoria - invocada anteriormente - pode ser também a sabedoria de tomar dos próprios vinhos. Aliás, se uma pessoa filtra os seus vinhos, há uma grande chance de que a mesma os tenha produzido (e talvez plantado e talvez colhido e talvez pisado as uvas). Quer dizer, a pitadinha de ponos, de sofrimento/trabalho duro, presente na vida cotidiana.

Spatio brevi é ablativo absoluto de razão, "sendo a extensão (da vida) curta".

Spes longam é a "esperança que se estende (muito no futuro)"; "de uma vida curta corte todas as esperanças que apontam demasiado além". Quer dizer, não são todas as esperanças a ser cortadas de uma tal vida curta, mas sim estas longas esperanças. Aiaiai...

"O tempo invejoso nos foge enquanto falamos". Este inuida, além de invejoso, pode significar algo que nos odeia, algo que não nos é favorável. "Estamos aqui a falar, Leuconoê, e eu a te contar para colher os dias, enquanto estes mesmos dias estão a correr por baixo do nosso nariz". Invejosos do quê? Eu não sei. Me parecem mais impiedosos de não conceder a nós o que tanto queremos - o desejo de que eles não passem, o desejo de termos algo aqui para sempre.

E então chegamos a um ponto importante, o famoso carpe diem. Colha os dias, imperativo. Quando se trata de plantas, carpo quer dizer colher como se colhe uma flor, ou uma fruta. Para animais, é se alimentar (tomar como nutrição) de (plantas). O carpe do Horácio faz uso de quase todos os usos do verbo carpo, desde colher até alcançar, juntar, aproveitar, usar, perseguir, gastar. Me agrada, porém, pensar que este carpo me relembra os vinhos a ser filtrados. Os dias (momentos) podem ser como moscas para um rã, prontos a ser rapidamente agarrados (e usados, gastos, comidos, um atrás do outro...), mas de que forma, se não somos rãs?

Eu retomo este ponto por causa do significado que carpe diem acabou tomando com o tempo, desvinculado do seu contexto aqui no poema. "Aproveite o dia" é uma frase simples e equívoca demais, podendo ser lida de várias formas. Procure rapidamente na internet por carpe diem e literatura, e verás de tudo, desde os sonetos engraçadíssimos do século XVI (um dos quais traduzi, faz muito tempo, aqui - relevem que faz tempo), até definições e defesas do hedonismo. No poema inteiro, certamente, Horácio fala da brevidade da vida, de como ela nos foge em cada momento. Ao pedir a Leuconoê, porém, para que seja sábia e filtre os vinhos, ele está simplesmente pedindo que ela seja uma sábia hedonista e prefira uns prazeres que outros, somente?

A última frase pode apontar para um possível sentido: confiando o mínimo no (dia) posterior. Credulus é a mesma que o nosso crédulo: o que acredita com facilidade, sem suspeita. Acreditar no quê, porém? Acreditar que um dia seguirá o outro, certamente, e que amanhã certamente o sol levantará no leste e se porá no oeste. E talvez acreditar nos prazeres futuros, e nos sofrimentos futuros, o que não deixa de ser o destino, ao meu ver. Quam minimum credula postero, acreditando o mínimo. Acreditar e esperar, acreditar "um mínimo" e esperar "não muito além".

Até onde? Esta é uma pergunta fantástica que eu tenho me feito todos os dias.

[Aliás, para os budistas, estes últimos pensamentos podem ter lembrado, mesmo que de longe (para mim foi muito de perto) a famosa reflexão sobre a morte, que para muitos parece um pensamento pessimista, mas é uma prática que traz uma reflexão muito profunda.]

quarta-feira, 3 de maio de 2006

Resumo rápido de um conto zen-budista moderno:

- Mestre, eu quero aprender com o senhor.
- Então não pense em macacos.
Cara sai. Passa o dia inteiro vendo macacos, pensando em macacos: verdes roxos azuis amarelos.
E ele volta. E sabem de uma coisa? Eu esqueci o final.

A luta com palavras é a coisa mais vã. Palavras não são apenas os pequenos e grandes pensamentos que saem da nossa cabeça através da boca. As palavras surgem antes mesmo que nos demos conta; surgem mesmo de um corpo soçobrado, surgem mesmo de um corpo transfigurado. Especialmente destes corpos, as palavras surgem.

Vetores poderosíssimos, as palavras. Perfuram e transpassam três gerações de mamíferos de porte médio, em média, para desconforto dos seres viventes.

Estou em um momento de crise, poderoso, insurgente; mar martelante.

Rio de Janeiro, século XIX. Chuva de verão: quente. Água escorrendo pelos bueiros, levando a merda depositada nas ruas para o grande mar da pequena baía. Mais ou menos como Florianópolis, século XXI.

Vários nomes para isso, da extensa & fecunda produção literária-psicológica. Uma que me lembrei: vórtice. Fabio Herrmann, psicanalista brasileiro.

Outro nome: chuá.