segunda-feira, 5 de março de 2007

Muito além da diversão

Uma longa história que felizmente continua, depois de engatinhar durante anos, pausada por contigências históricas muito atuais. Estou surpreso e feliz por ter encontrando, através desta página, o seguinte estudo noticiado por três dos maiores tablóides americanos.

Griffiths, R.R., Richards, W.A., McCann, U., & Jesse, R. (2006). Psilocybin can occasion mystical experiences having substantial and sustained personal meaning and spiritual significance. Psychopharmacology, 187, 268-283.

Psilocibina, para os desinformados, é uma das substâncias "alucinógenas" presentes nos cogumelos "alucinógenos" (detesto esta palavra). Existem duas substâncias "alucinógenas" presentes nestes fungos, a psilocibina e a psilocina; como a psilocibina é metabolizada em psilocina no corpo humano, esta distinção é irrelevante. A psilocibina é altamente aparentada com uma grande classe de compostos, onde se inclui vários outros "alucinógenos", como o LSD (ácido lisérgico).

Só é desgastante ver que um dos jornais ainda diz que LSD tem potencial de abuso - uma breve passada de olhos na literatura científica não condiz com isto, a não ser que se tenha redefinido "potencial de abuso" nos últimos meses, algo do que não estou certo.

Não é necessário um estudo para comprovar os efeitos subjetivos de uma experiência como esta. Quem a teve sabe disto. Um estudo é importante, contudo, em dois sentidos: a) para limpar o caminho de muita tralha, propiciando uma discussão científica, e b) poder ter voz na mídia do estabilishment, não apenas como voz de uma "minoria" de usuários, mas a voz de uma ferramenta - a ciência - que tem grande prestígio social junto a "poderes" estabelecidos.

O interessante, também, e animador, é ver a circunstância em que o acontecimento está inserido: os pesquisadores (McCann é um nome conhecido na pesquisa com o MDMA, de um modo polêmico), o laboratório (Johns Hopkins), o país, o funding. Até este momento, as poucas alternativas vinham sendo conduzidas, de uma certa forma, fora do mainstream.

O interesse da pesquisa também conta. Eles pensam em uma aplicação de tais substâncias em casos de depressão crônica - como em pacientes terminais de câncer. Esta é a tendência em grande parte das pesquisas, ou, melhor dizendo, de tentativas de pesquisa.

Uma discussão séria e lúcida pode, então, começar a ter vez. O uso de tais substâncias tem um representação social nada positiva, independente da camada da população que se trate. Nem mesmo educação superior evita isto, o que é um dado incompreensível, ao meu ver. (Seria muito, muito interessante que eu tivesse material para comprovar isto que eu estou falando, sendo que se trata somente de percepção pessoal - bem fundamentada, sendo ainda percepção pessoal. Fica uma idéia para o futuro.)

Fico aqui esperando mais experimentos, mais resultados e mais mentes dispostas. Estou torcendo por isto, dedos cruzados, fitinha no pulso.

domingo, 4 de março de 2007

Visita aos vajrayanas

Hoje tivemos um "dharma com pipoca" aqui na comunidade da casa verde. O filme, é Primavera, Verão, Outono, Inverno... e Primavera. Um filme muito bonito, de visual mais bonito ainda. A segunda vez que eu o via.

E então, pela primeira vez, fui a uma sangha de budismo vajrayana - budismo tibetano. Aquela, que fica no Canto da Lagoa, atrás do bambuzal. Fomos eu, Edgar e o grande (literalmente) Flávio "Joshin", a convite do último que já conhecia um pessoal de lá.

Era uma cerimônia de tsog. Eu não sei o nome exato, ou do que se trata, mas era uma cerimônia de "Tara Vermelha" (faço pouco idéia do que seja, sei que é a invocação da tal), e no primeiro domingo do mês eles fazem uma espécie de oferenda de alimentos que todos comem - tsog, que foi o que eu fui.

Chegamos atrasados e nos sentamos no fundão, colocando almofadinhas coloridas nas nádegas. Crianças corriam para lá e para cá, um gato que ficava circulando pelas pessoas atrás de carinho e comida - muito parecido com o meu, por sinal, na primeira vez que o vi levei um susto de três nanosegundos, "o que você está fazendo aqui?". O lugar era muito colorido, com várias figuras nas paredes, de cores fortes, com flores estilizadas; um lugar gostoso. Um cheiro doce e fresco emanava de algum lugar.

E um monte de recitações em tibetano. Aproveitei o ambiente para um pouco de zazen. As recitações não paravam. Uma hora, dedicaram algumas palavras para seres que tinham morrido recentemente, incluindo a monja Zuiten do zen, vários praticantes humanos, um "cachorro na Lagoa" e um beija-flor.

Chegam então os pratinhos com comida. Uma pequena melange de várias coisas: um pedacinho de maçã, outro de banana, um sanduichinho de atum, tirinhas de pimentão verde, uma uva passa, fatia de queijo, biscoitinhos cream-cracker e wafers, fatias de pepino em vinagre, um pedaço de salame italiano e pimentinhas vermelhas. O último item me surpreendeu mais que o antepenúltimo (já sabia que o pessoal do vajrayana não negava carne), mas então me lembrei que era um cerimônia dos "cincos sabores", segundo meu grande amigo.

Comecei a comer as coisinhas... e o pessoal continuava recitando. Até me meti a comer a pimentinha. Uma mulher do lado me pede para eu ter cuidado, mordiscar a pontinha da pimenta primeiro. Agradeço e dou um bicadinha, que arde; "se é para comer, coma tudo de uma vez". E eu meto a pimenta na boca e a mastigo. E ela arde. Caramba, como a pimenta arde.

Chorava e fios de água escorriam pelo meu nariz. Cada respiração era como uma chama que se voltava para dentro. Recebi cinco pimentas: uma o Edgar pegou, três eu comi - a última eu praticamente engoli - e uma ficou para trás. Pretendia comer todas, afinal nunca se sabe o que o pessoal acha falta de respeito, mas uma ficou para trás - estava de bom grado para mim, muito bom grado.

Ótima oportunidade para olhar sensações sem se deixar levar demais... afinal, vai passar. Mas que arde, arde pra caralho.

Essa foi a minha visita no centro vajrayana. Fiquei contente de conhecer os colegas, e fiquei mais contente ainda por praticar o zen. Não me dou muito bem com rituais, com recitações. Prefiro o zazen, curto e simples - literalmente, preto no branco.

As formas são diversas, contudo, para diversas pessoas, diversos interesses.

Obrigado, pessoal.

sábado, 3 de março de 2007

Hora do lanche

São sete e pouco da noite. Me levanto do sofá onde me encontro, descansando de uma semana de estudos intensos estudando (é, paradoxal, mas é assim mesmo, D'na'Mari'a). Vou para cozinha com o pensamento de café fresco se antecipando ao momento presente; o café está praticamente alucinado, ali na frente: falta apenas o café real para que a minha fantasia vire realidade. Com o canto do olho, com um pedaço de banana-passa na boca, vejo um vulto cinzento se aproximando com um andar furtivo, os ombros levantados e a cabeça baixa: é o meu gato. Sei que esta não é o movimento de caçador dele: ele vem resoluto, embora devagar. Seus movimentos, se fossem humanos, me levariam a vê-los como certeza de algo. Quando ele caça, os movimentos são parecidos: o andar furtivo, a cabeça baixa, os ombros levantados. Mas algo é diferente. Talvez o olhar, não tão fixo. Os ombros, também, não tão tensos, embora semelhantes.

Ele entra assim, na cozinha, e tranquilamente passa por mim, não sem antes esfregar - de leve! - o seu rabo, e somente o rabo, por minha panturrilha, e se lança a arranhar uma das estantezinhas de madeira que temos.

Quer comer, sei de mim pra mim mesmo. Faz meses - talvez anos? - em que ele repete a mesma coisa.

Eu fico me perguntando "como é que este bicho funciona". Como é que, de uma forma ou outra, quando ele "quer comer", ele faz justamente este movimento? Por que não arranhar a cesta com a comida, ou pegar o próprio pacote de comida e servir-se ele mesmo? A pergunta, feita de uma forma senso comum, é "como é que ele pensa para fazer isto?"

Porém, eu tenho cá a minha hipótese - de que este era um comportamento supersticioso que foi reforçado mais que o acaso e virou resposta condicionada. Isto tudo é Skinner, o famoso Skinner que aprofundou as teorias de condicionamento do mais famoso Pavlov & seu Cão.

Comportamento supersticioso (daqui):

[Skinner] cortou completamente o elo causal entre o comportamento e a recompensa. Preparou o aparelho para recompensar a pomba de tempos em tempos, não importava o que o pássaro fizesse. Agora, o que os pássaros precisavam realmente fazer era só pousar e esperar a recompensa. Mas na realidade, não foi isso o que fizeram. Pelo contrário, em seis dentre oito casos, eles desenvolveram - exatamente como se estivessem aprendendo um hábito recompensado - o que Skinner chamou de comportamento supersticioso. Em que isso precisamente consistia, variava de pomba para pomba. Um dos pássaros girava como um pião, dando duas ou três voltas no sentido anti-horário, no intervalo entre as recompensas. Outro pássaro repetidamente lançava a cabeça na direção de um determinado canto no alto da caixa. Um terceiro exibia um comportamento de atirar-se para o alto, como se estivesse levantando uma cortina invisível com a cabeça. Dois deles desenvolveram independentemente o hábito rítmico do "balanço do pêndulo", oscilando a cabeça e o corpo de um lado para o outro. Eventualmente, este último hábito deve ter se assemelhado bastante à dança de namoro de algumas aves-do-paraíso. Skinner usou a palavra superstição porque os pássaros se comportavam como se achassem que o seu movimento habitual tivesse uma influência causal sobre o mecanismo de recompensa, quando na verdade isso não ocorria. Era o equivalente da dança da chuva para as pombas.

(o texto é bem interessante e merece ser lido todo... ainda mais sendo o Dawkins...)

Eu entro na cozinha, ele vem e arranha a estante, se esticando todo, e numa vez em três - digamos que ele faz isso umas seis vezes por dia - eu dou comida para ele, e todas as vezes ele come. Pra vocês verem, o reforço não é contínuo - não é sempre que ele acontece, e não é sempre no mesmo intervalo - tanto de tempo quanto de resposta reforçada.

Bem, tenho a impressão que ele secretamente ri-se de mim, pobre humano o comparando com simples pombos. De um certo ponto de vista, somos os dois mamíferos e talvez temos mais em comum em termos psicológicos do que ele com um pombo, ou eu com um pombo... Quem sabe arranhar a estante seja uma construção cognitiva?

Ah, se meu gato falasse... ou se eu, pelo menos, gateasse...

sexta-feira, 2 de março de 2007

Calor

Coisas a se questionar profundamente:

  1. o caráter de novidade que nosso pensamento e nossas práticas (humanas) parecem imprimir, sempre;
  2. a não-necessidade de uma "sacralidade";
  3. o ideal de progresso.

Um dos piores pesadelos deve ser o de um mundo transparente - de um mundo que funciona muito, muito bem; onde se pode ver o funcionamento de tudo.

Imortalidade e onisciência laplaciana deve ser a sombra secreta de qual todas as criaturas fogem em horror.

Sim, estamos apoiados nos ombros de gigantes... mas, de uma certa forma, não há nada de novo sob o sol.

*****

Está um dia terrivelmente quente aqui em Florianópolis. Ontem e hoje. O céu, azul anil, onde nenhuma nuvem pousava para nos dar refresco: a umidade da proximidade com o mar entranhava nos ossos e saía em suor escaldante. A presença insana do sol, folha alguma se mexia. Foi um dia ocupado: entreguei um trabalho, fiz uma prova, passei grande parte do dia na universidade, tive meus óculos escuros furtados, comi lanchinhos, comprei dezenas de bala de banana para distribuir entre os professores e meus coleguinhas, cheguei em casa muito, muito cansado, descobri que a moça da limpeza aqui em casa deixou todos as janelas fechadas desde o meio-dia, e meu gato mal conseguia miar, tamanho o forno aqui dentro, tomei um banho que me restaurou, e fui deitar na minha chapa macia com o ventilador soprando bafo morno em cima de mim.

Terrivelmente quente. Vou tentar ir à praia hoje, mas ainda tenho de entregar um último trabalho. Terrivelmente quente.

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

Alvorada da janela de minha casa...


... com uma pequena pincelada do Corel Photopaint, evidentemente.

*****

Porque você sabe onde as palavras vão cair,
você não tem medo de andar na chuva.
A chuva de caixinhas escuras,
quer caia na sua cabeça - ou não.

Apreendes as colunas, dois eixos e um,
espaços vazios, cheios, espaços,
em que caixinhas se lançam na lama
desenhando um pixelado gramado.

Assim então não tens medo.
Tantos hematomas e pancadas necessárias;
mas não são tão possíveis, tão queridas?
Pois acaso não sabes onde elas irão cair?



terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

Desperdício

Meu pai tem um restaurante, um buffet a quilo, num bairro aqui de Florianópolis.

Não se enganem: comida é sim reaproveitada em um restaurante deste, sempre de acordo, é claro, com as especificações da Vigilância Sanitária.

Mas se pode ver o quanto de comida vai fora. Isso sempre me deixou desconfortável, e fico imaginando o quanto vai fora, e em escala macro, é muita coisa. Por mais logística que se faça, por mais que se imagine - e os restaurantes tem bastante interesse financeiro em não deixar sobrar, claro - sempre sobra muita coisa. Fico imaginando se não se poderia tomar soluções fáceis, de uma certa forma, para dispor de uma maneira mais inteligente, de todos estes restos, sem necessariamente tranformá-los em lixo.

Uma delas seria distribuir a comida entre pessoas de renda inferior, ou doar para alguma entidade assistencialista, algo assim. Sabem por que isto não pode ser feito? Porque qualquer problema que as pessoas tiverem, com relação a comida, é culpa do estabelecimento - como doenças, por exemplo. E, para evitar de uma vez este tipo de problema, a letra da lei coloca, peremptoriamente, que os restaurantes não podem fazer isto, e ponto final. E os restaurantes respiram aliviados. Eles não têm muito interesse nisto, afinal.

A lógica da argumentação é impecável: evita-se problemas sanitários com esta medida. Mas é o tipo de lógica burra, cega, fechada em interesses e resultados muito próximos. Mais um caso de lógica que se fecha em si mesma.

Pois, de uma certa forma, qual é o estabelecimento que não tende a prezar a qualidade das coisas que produz - sempre, é claro, dentro do parâmetro custo-benefício? Qual é a possibilidade de uma pessoa ter salmonela, por exemplo, comendo comida de um restaurante? Em mais de cinco anos do restaurante de meu pai, teve apenas um ou dois casos. Quer dizer, a medida tem seu âmbito, mas não seria um âmbito mal pensado... ou simplesmente preguiça de fazer diferente?

Pois porque não tentar fazer algo diferente? Não, a imagem do sopão dos pobres não precisa pular na sua cabeça. A comida poderia ser distribuída de graça, ou depois de um certo horário em que as classes trabalhadoras (ahUAHuaUAHhauHAUH) já tivessem voltado pra labuta, uma redução drástica de preço, algo desta forma, um prato por um real, que tal? O argumento de que se evita isto para evitar problemas sanitários é ridículo. Afinal, os problemas talvez não sejam tantos, e faria muito mais sentido proporcionar um tratamento para as pessoas que supostamente passaram mal por causa de tal comida, do que evitar a possibilidade por medo de uma possibilidade mais remota que talvez pareça.

Eu sei que o caso dos restaurantes é somente um entre muitos. Eu imagino que este tipo de desperdício é uma constante no esquema que montamos para nós mesmos, em nível local e mais global. Tenho certeza que o emblema de nossa época, para a posteridade, será a imagem de lixo, muito lixo, escondido daqueles que podem, jogados na frente dos lares de quem não podem tanto, presente na vida de outros que simplesmente não contam. Vide uma reportagem da revista piauí, deste mês, sobre a cidade de Lagos, uma megalópole de 15 milhões de pessoas vivendo em condições marcantes, onde uma das moedas de troca é o próprio lixo. 15 milhões de pessoas.

Sempre me lembro, nestes momentos, da Sônia Felipe, filósofa aqui da UFSC: imagine você indo no supermercado, comprando um quilo de carne suína de primeira, e ganhando junto um saco com quinze quilos de merda suína, a quantidade de resíduos que, felizmente, atualmente não passa sequer perto dos seus olhos, mas infecta o solo de regiões de intensa atividade agropecuária intensiva, como o oeste do estado de Santa Catarina.

A questão da lógica que maneja as nossas trocas materiais é que ela é, muitas vezes, short-sighted. Fico me perguntando se faz sequer sentido desejar que poderia ser diferente.

Niebuhr

Eu procurava por uma frase específica, que volteava pelo espaço aberto de minha mente, fresca e úmida como terra nova, como a noite de segunda. Era uma frase conhecida, que eu pensava ser de algum dos grandes padres cristãos, ou de Cristo ele mesmo. A frase é a seguinte:

"Meu Deus, dá-me a serenidade para aceitar as coisas que não posso mudar, coragem para mudar o que está ao meu alcance e sabedoria para que eu saiba a diferença entre ambas."

Que, fico sabendo, é usada pelo AA (e talvez pelos Narcóticos Anônimos também), com o nome de "oração da serenidade". É uma frase realmente muito bonita. Talvez ela aponte mais para incertezas do que para certezas: talvez nunca possamos saber, realmente, a diferença. Mas se colocar neste lugar já é o melhor começo, e muitas vezes o melhor começo é meio caminho andado - a gente anda, muitas vezes, sem o saber. Eu me perguntava recentemente, afinal, quando é que "se desiste" e quando é que não...

É a minha grande pergunta, atualmente. Quando é o movimento, e quando é a pausa?

A frase, porém, é de um teólogo americano que viveu no século XX, Reinhold Niebuhr. A internet, o grande celeiro da sabedoria incompleta em forma escrita, me dá mais um pouco dele. É teologia, então não é fácil "leitura", mas aqui vai dois trechinhos (a tradução é minha):

Human nature is, in short, a realm of infinite possibilities of good and evil because of the character of human freedom. The love that is the law of its nature is a boundless self-giving. The sin that corrupts its life is a boundless assertion of the self. Between these two forces all kinds of ad hoc restraints may be elaborated and defined. We may call this natural law [or divine law]. But we had better realize how very tentative it is. Otherwise we shall merely sanction some traditional relation between myself and my fellow man as a "just" relation, and quiet the voice of conscience which speaks to me of higher possibilities. What is more, we may stabilize sin and make it institutional....

Theology, February, 1940, in Love and Justice, p. 54.

A natureza humana é, em suma, um reino de infinitas possibilidades de bem e mal, por causa de seu caráter de liberdade humana. O amor, que é a lei de sua natureza, é uma doação, sem fronteiras, de self. O pecado que corrompe a sua vida é uma asserção sem fronteiras do self. Entre estas duas forças todos os tipos de restrições podem ser elaboradas e definidas. Podemos chamar isto de lei natural [ou lei divina]. Mas é melhor compreendermos o quão temporário isto é. De outra forma, nós meramente sancionaríamos alguma relação tradicional entre mim mesmo e os meus companheiros humanos como uma relação "justa", e aquietaríamos a voz da consciência que me fala de possibilidades mais amplas. Mais ainda, podemos estabilizar o pecado e o tornar institucional...

*****

Politics always aims at some kind of a harmony or balance of interest, and such a harmony cannot be regarded as directly related to the final harmony of love of the Kingdom of God. All men are naturally inclined to obscure the morally ambiguous element in their political cause by investing it with religious sanctity. This is why religion is more frequently a source of confusion than of light in the political realm. The tendency to equate our political with our Christian convictions causes politics to generate idolatry.

Christianity and Crisis, July 21, 1952, in Love and Justice, p. 59.

Política sempre almeja algum tipo de harmonia ou equilíbrio de interesses, e tal harmonia não pode ser considerada como diretamente relacionada à harmonia final de amor do Reino de Deus. Todos os homens são naturalmente propensos a obscurecer o elemento moralmente ambíguo em sua causa política, investindo-o com santidade religiosa. Isto é como a religião é mais frequentemente uma fonte de confusão do que de esclarecimento no reino político. A tendência de igualar as nossas convicções políticas com nossas convicções cristãs faz com que a política gere idolatria.

domingo, 25 de fevereiro de 2007

Fogo Azul


Uma maravilha miraculosa em nossas cozinhas, cotidianamente.

O fogo é azul.

Durante milênios, em nossa história evolutiva, o fogo foi aquela criatura indomável, flamejante, carmim. Freud diz que mijar no fogo e o apagar foi uma grande conquista da humanidade, ou algo deste calibre.

E dona Maria vai pra cozinha, liga o gás e acende o fogo, e lá está a sempiterna chama azul.

Se você olha com carinho, percebe o quanto é uma coisa maravilhosa. O fogo é azul.

sábado, 24 de fevereiro de 2007

Procrastinação

Estou profundamente emocionado.

Que eu sou um grande procrastinador, todo mundo que me conhece sabe. Aliás, não é para com tudo: eu sou um grande procrastinador, mas um procrastinador acadêmico. Deixo atrasar trabalhos, enrolo os professores, peço segundas chances.

Em outras coisas, sou normalmente organizadinho e bonitinho.


Meu receio é que todos pensem que eu sou uma criatura pelvelsa, que faço isto por não dar a mínima a tudo aquilo, por não querer saber. Bem, sempre se tem uma pontinha de não querer saber, mas não sou uma pelvelso, a não ser talvez em manifestações sexuais esporádicas.

Não, Kátia; não, Magda, Roberto (os dois, Guerra e Cruz, que lindo título), Sílvio, Olga, Carmen, Ângela, Edmilson, Chalfin, Abel, Jadete, Andréa, Mauro, Sérgio, Fernando, Tuto, e demais. Não, não faço por mal. Sou apenas um rapaz latino-americano procrastinador.

Estou profundamente emocionado pois, como sempre do nada, dou de cara com artigos sobre procrastinação, justamente numa tarde de sábado em que estou procrastinando trabalhos que podem decidir se vou repetir a disciplina semestre que vem ou não (já deixo aqui avisado que se tratam de Desenvolvimento III e Social II, para que eu sofra peer pressure, o que dizem que ajuda a não procrastinar). Os artigos dizem que a procrastinação é um problema acadêmico sério, que os departamentos de atendimento aos alunos devem saber lidar com isto, e que eu não sou o único!

Usualmente a procrastinação de trata de ou problemas pessoais (dã, categoria aaaaaaaaaaampla), ou ansiedade e coisas similares (hum), raiva, hostilidade, baixa auto-estima, baixa tolerância a frustração ou questões de perfeccionismo. Interessante.

E eu vou então me mandar e tentar parar de procrastinar, que é o que eu estou fazendo escrevendo pra vocês.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

Galheta


A praia, é a Galheta, para quem conhece, aqui em Florianópolis. A vista é do alto da trilha que vai da "fortaleza" da Barra da Lagoa para a Galheta. Foi ali, onde a montanha esconde a praia no centro da foto, que eu passei as últimas horas de 2006. Uma lua monumental prateava a vegetação arrastada pelo constante vento marítimo, espraiada no declive suave das encostas. As ondas quebravam em colunas de mercúrio. Ternura, admiração e terror. A Galheta é conhecida por ser uma praia de nudismo optativo, por prática de sexo nas trilhas mais próximas da praia, e (dizem) por ser ponto focal para as bruxas da ilha, especialmente na lua cheia. Muitas pessoas evitam a Galheta por um motivo qualquer (destes). Esta é a cidade onde eu moro.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

Palitos no céu, palitos no inferno

Tem uma historinha oriental, talvez budista, que nos fala o seguinte:

um cara vai para o "inferno", e o que ele encontra lá? Uma mesa enorme, com pratos deliciosos, manjares inesquecíveis, moças e rapazes nus (há de se respeitar o gosto sexual de cada) deitados cobertos com sushis, enfim, um repasto maravilhoso. Várias pessoas se sentavam em torno desta mesa: todas tinham o braço esquerdo amarrado nas costas, e no braço direito a mão era amarrada com um longo palito, que impediam que elas usassem as mãos para se servir de qualquer coisa, e os palitos eram longos demais para que elas os usassem para levar coisas à boca. Todos estavam famintos, então, obrigados a sentar nas cadeiras, com a visão de comida eternamente deliciosa à sua frente; choravam e gritavam de desespero, choro e ranger de dentes. Provavelmente, em sua angústia, usavam seus palitos para cutucar a orelha do companheiro ao lado.

No "céu", a cena era exatamente a mesma, sem tirar nem pôr: até o sushi estava lá. Só que todos usavam os palitos para levar a comida até a boca do companheiro ao lado. Fico imaginando as conversas: "gostaria de alguma coisa?" "humm... que tal aquele quiche de azeitonas, ali do seu lado?". E todos comiam e ficavam satisfeitos. Não sei dizer se comiam o tempo todo ou se faziam outra coisa nas horas vagas, como carteado - é de se pensar. Mas enfim, a história é esta.

Hipótese(s):

a) um macaco descobriu uma forma de lavar suas batatas numa praia japonesa; a idéia se transmitiu "noosfericamente" para os demais macacos de balneários vizinhos. Os macacos descobriram o céu e o inferno. Os macacos ensinaram os habitantes do céu por analogia; os habitantes do inferno tentaram escravizar os macacos por analogia, e até hoje os macacos não voltaram ao inferno.

Esta é a minha hipótese, a mais simples em que posso pensar para esclarecer esta história.
Trecho de "O mito de Sísifo", o turbilhante livro de Camus.

Se a descida, assim, em certos dias se faz para a dor, ela também pode se fazer para a alegria. Essa palavra não está demais. Imagino ainda Sísifo indo outra vez para seu rochedo, e a dor estava no começo. Quando as lembranças da terra se mantêm muito intensas na lembrança, quando o apelo da felicidade se faz demasiadamente pesado, acontece que a tristeza se impõe ao coração humano: é a vitória do rochedo, é o próprio rochedo. O enorme desgosto é pesado demais para carregar. São nossas noites de Getsêmani. Mas as verdades esmagadoras perecem ao serem reconhecidas.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

Lixo

A gente abre o Bis, come o Bis e joga o papel fora.

A gente esquece que não se joga nada fora. Não se joga nada fora: apenas joga para longe.

Jogar fora é lançar longe, em viagem. Nada foi fora, a não ser longe dos olhos.

domingo, 11 de fevereiro de 2007

Lambuze-me

Atenção, todos vocês: descobri ontem que o alimento que se conserva por mais tempo é o mel. Foram encontrados potes, em sarcófagos egípcios, com um tanto de mel, ainda consumível - um tempo atrás. Provavelmente então o mel foi encaminhado à Sotheby's, e uma pessoa de l'argent enfeitou o seu pão nosso de cada dia da Polaîne com camadas douradas egípcias.

Ou ela fez como eu e o velho de Marquez, no "Memória de minhas putas tristes": fez um café forte e Bom, e adoçou-o com o mel - sem a "tapioca" do velho, necessariamente.

Eu tomo mel todo dia, desta forma, religiosamente prazerosa, meu paraíso profano. Será que o mel tem uma virtude conservativa, exatamente por se conservar tanto? Será que ele vai me fazer viver mais, ficar mais conservado, enquanto envelheço na soleira da minha casinha de madeira, sentado perto da grama salpicada de sereno, tomando café e observando o mundo desfilar à minha porta? Bem que eu podia viver numa época em que as coisas se davam desta forma: havia "forças" e afinidades entre as coisas, definidas por suas características. (Tenho em mente o livro do Eco, "A ilha do dia seguinte".) Hoje, o mel é apenas um adoçante, e quando muito tem suas propriedades anti-sépticas e anti-inflamatórias.

Mas ainda penso que daqui a pouco ele vai perder o posto de campeão na sua virtude conservativa. Nunca se sabe onde a indústria alimentícia terrestre do século XXI e além pode nos levar. Creio que não é preciso ir muito longe: não é característico dos contos e historietas pós-modernos o personagem principal, jovem urbano, encontrar uma bolacha, daquelas suas favoritas, debaixo da almofadona do sofá, e comê-la, para desespero de sua mãe fluminense, d. Alcina?

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

Comoção nacional

A morte de um menino de 6 anos, João, preso ao cinto de segurança do lado de fora de um carro, arrastado por 7 quilômetros pelas ruas do Rio de Janeiro. Estava com a mãe e a irmã quando três homens se aproximaram para um roubo. Elas saíram, e ele não conseguiu sair - a Folha enfatiza a hiperatividade e os problemas motores e físicos do garoto.
Na novela do horário nobre global, uma cena: três freiras lêem a tragédia no Globo, com lágrimas nos olhos e voz trêmula, e rezam um pai nosso.
Isso, sim, é comoção nacional: uma cena colocada em último momento no horário nobre.
A Folha também dá detalhes da massa encefálica e do corpo decapitado e aquebrantado. Os suspeitos foram quase linchados. A multidão gritava "assassinos". E eles disseram que não perceberam que o garoto estava preso no carro.
Mentira? Muito crack na cabeça?
Eu mesmo quis linchar um destes caras. Quis, quis, quis. Quis muito. Fiquei muito revoltado. Uma atitude natural. Foi breve, mas foi. Precisei de uma dose de razão e outra de sensibilidade para deixar o acontecimento ir...
Rezemos pelo garoto. Ou melhor, pensemos no garoto e rezemos por nós.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

Cila-ila, Caribdis-ibdis & Tila Tekila

(versão 1, modificações possíveis, eu tenho pressa...)
Ultimamente tenho sido assombrado - literalmente assombrado, assombreado, soçobrado - por um questionamento cruel. Cruel, e delgado como uma lasca de cristal; a crueldade de uma lasca de cristal que se enterra debaixo da unha.

Onde está a diferença entre desistir e deixar acontecer? Onde está aquela sutil diferença entre desistir de algo - por achar impossível, por não poder mais ir adiante, por quaisquer razão - e a consciência limpa de que algo acabou, de que se tentou, se viveu?

Onde poder confessar que não dá mais, e onde é que esta confissão é uma mentira?

Será que dá para definir esta dúvida? Será que eu sempre sou responsável pelas minhas escolhas?

Nem todas as coisas são possíveis. Há coisas que simplesmente não podemos fazer. Isso não nos mostra que as coisas são impossíveis: há muitas coisas que podemos fazer. É assim que se dividem as coisas, então? Entre possíveis e impossíveis? Mas ora, como haveria de ser assim, se olhamos ao nosso redor e vemos as circunstâncias e a paisagem mudando, de momento a momento. Olhamos para a nossa história e vemos que certas coisas que achávamos impossíveis são possíveis, e outras, que achávamos possíveis, não o são tanto assim... e nada impede que este movimento continue, a colocar os possíveis nos impossíveis e vice-versa.

Estou falando de dois pólos, possível e impossível, mesmo sabendo, como coloquei agorinha acima, que não se trata de estes dois pólos, realmente. Se trata de algo muito, muito mais complicada: a probabilidade.

Mas... onde está a diferença entre desistir e deixar acontecer? Por que se desiste? Quem é que desiste?

Enfim, quem é que vai conviver com o arrependimento?

Afinal, arrependimento existe?

*****

Ao mesmo tempo, a realidade me bateu com força total, e me lançou de cara no chão.

Somos uma geração que tem medo de realidade, pois achamos que ela não existe por si só. Vivemos nesta posição esquisita de negar uma realidade forte, mas ao mesmo tempo a temos na nossa frente todo o tempo - e sabemos disto.

Creio que não se trata em nada de uma característica destes nossos tempos, esta dialética frente à realidade. Mas os nossos tempos são os primeiros a inventar para si a fantasia de uma realidade "virtual", de várias realidades, de várias facetas. Enquanto que em outras épocas parecia ser mais difícil sair fora da historinha do "real" - a não ser pela via da fantasia desenfreada, pra se dizer assim (romances, céu e inferno, loucura) - a nossa época se compraz e se congratula em colocar para si mesma que a realidade tem o impacto de uma bala de gelo no crânio. Ela pode impactar, mas ao mesmo tempo derrete-se.

Quando eu falo realidade eu não falo somente "do mundo lá fora". Este mundo lá fora, que é ele? Que sou eu, este mundo "aqui dentro"? Realidade pode ser definida, para os meus simples interesses leigos, como aquilo que resta depois de tudo mais, depois de qualquer dissolução do mundo dentro das nossas cabecinhas: a morte é um exemplo de realidade, para se colocar assim. Ou melhor, o saber-se morrer.

A realidade é o lembrete que se tem de fazer alguma coisa, mesmo que não se saiba o quê, ou o porquê.
*****

Onde desistir, então? Será que toda desistência é uma covardia? Será que devemos mesmo, como Hamlet, tomar de armas frente a um mar de problemas e, opondo-se a eles, extingui-los? Será que é esta a metáfora da vida humana - a da "luta", a da oposição, a da força humana frente aos vendavais que ameaçam extinguir sua tênue e fraca, porém inteligente, centelha de vida?

Ou será que a metáfora é a homérica, os homens como gerações de folhas ao vento, morrendo e caindo, ao capricho de deuses tão caprichosos quanto nós, mas imortais?

Ou será que a metáfora é outra, de um homem numa relação harmônica com os outros e com o seu mundo, encontrando um equilíbrio dinâmico - ou pior, encontrando a entropia?

O que nos espera além das estrelas: o fogo, o gelo, ou uma injeção de graça na testa? Ou o carimbo do Ibama intergalático?
*****

Eu não vou afirmar que todas as respostas são temporárias (apesar de me parecerem assim), mas se assim são, eu não me admiro. Não vou afirmar que todas as decisões morais e éticas são temporárias, apesar de me parecerem assim, mas se o forem, eu não me admiro. Não vou afirmar: não posso dizer.

Me admiro um pouco, na verdade, a admiração de um cara que gostaria que ao menos uma coisinha ínfima que fosse fosse certa, segura e certeira.

(A morte? Mas quem é que morre? Te contaram? Quem?)

Mas não me admiro no sentido de achar que só é assim, se for, por uma falha humana.

Talvez faça mais sentido - e seja mais engraçado - se pudéssemos pensar que ter certeza seja a maior falha humana de todas. De que, quando alguém chegar e dizer para nós, "eu sei", podemos desconfiar muito dele.
*****

Vocês entendem? Se seguimos pelo caminho, encontramos nossos inimigos mais ferrenhos. Se não seguimos, não encontramos nada, nem ninguém, e morremos. Se continuamos pelo caminho, encontraremos no mínimo dois rios. Um do nada, e outro do tudo. Não é difícil de ver isto. Não é uma experiência mística. Encontramos dois rios, um do "niilismo", e outro do "eternalismo". Dizem que foram estes os dois rios que Sidarta encontrou, para usar o personagem espiritual com quem tenho mais intimidade. Encontramos o caminho de que nada existe, ou nada é verdadeiro, ou nada permanece, e vivemos com isto. Ou então encontramos o caminho de que algo existe, algo é verdadeiro, algo permanece - para sempre - e vivemos com isto.

Como viver com o primeiro? Já sabemos o que o niilismo sincero e aplicado pode fazer. Todos nós sabemos. O segundo, eternalismo, sabemos também.

Dizem que era esta a discussão que estava em voga 2600 anos atrás, na época de Sidarta: a discussão se existia algo que permanecia para sempre, ou, para colocar em uma palavra, se existia algo que era imutável. Alguns iam pro lado do niilismo e respondiam que não: nada era imutável, nem a mais minúscula das partículas imagináveis. Outros iam pro lado do eternalismo e diziam que sim, que havia algo imutável, mesmo que fosse a mais minúscula das partículas imagináveis.

Não precisamos ir muito longe para entrar nesta discussão: a discussão entre mutável e imutável encontra-se no nosso berço cultural, no nascimento da nossa "filosofia".

E, falando seriamente, não há nada de mais nesta discussão também, pois é um questionamento básico, ao meu ver. Ele continua ininterruptamente até hoje. O importante é perceber que cada um destes posicionamentos leva a uma atitude com relação à vida e morte.

Este questionamento está no âmago da vida cotidiana, da vida de todos nós. Esta AMBIVALÊNCIA está no âmago da vida de todos nós. Não precisa ser dotado para ver: não se trata de misticismo, ou de insight. Este conflito está no âmago da nossa "existência".

Quem eu sou? E nos damos respostas: escolhemos uma opção, muitas vezes mudamos no meio, misturamos um pouco, fazemos uma resposta, e vivemos desta forma.

E eu tenho a impressão de que nenhuma das respostas vai acabar com esta contradição fundamental. O que fazer, então?

Se fosse somente uma questão de responder a uma pergunta, não seria tão foda assim. Afinal, há várias perguntas que não damos a mínima se elas forem respondidas ou não - a não ser, é claro, quando elas se apresentam para nós, quando sim tratamos de resolvê-las (e nem sempre estamos certos de ter dado "A Resposta", mas grande coisa...) Mas esta contradição, ela te incomoda ou não?

Muitas vezes dá vontade de tirar uma faca que está enterrada no meu peito, achando que ela é a causa de tanta confusão, de tanta insatisfação. Mas todos sabemos o que acontece quando tiramos facas enterradas no peito: o sangue brota e jorra com força.

O que fazer? Fazer nada, afinal de contas é tudo um sonho, nada existe em seu sentido mais puro? Tiro ou não tiro?

Quem é que vai tirar a faca? E quando, e onde, e como?

segunda-feira, 29 de janeiro de 2007

Will-ill

Estou triste.
Amigo ou irmão... enfim, como continuam sendo poucas as palavras; e como continua intenso o meu anseio de empregá-las...
Muitos antes de mim já falaram de amigos. E muitos antes de mim já o foram. O mesmo para irmãos. Como posso dizer, senão isto, de alguém que se foi e que pra mim não pode ser somente ou irmão ou amigo?
Como amigo: os anos de convivência, os interesses conjuntos, as cenas compartilhadas, as tantas conversas. A leve sutileza da amizade, com os seus tempos de inércia - outros de exaustão - e seus reencontros de festa.
Como irmão, que outra palavra mais para descrever aquele palpitante mistério de um laço, de uma espécie de sangue conjunto correndo. Não simbioticamente: correndo, fluindo.
É uma tarde de um belo dia. Verão, ou primavera, ou qualquer outra estação que queirais. Aquela que sentirem melhor, batendo no seu rosto, é esta. Façam-me o favor de apenas não chegar a extremos de congelar a água: imaginem comigo, para que possais compreender. O sol oblíquo traz aquela luz dourada - aquela luz de final de tarde que esmaece e parece poder virar qualquer outra luz que lhe apeteça. Há pequenos glóbulos luminosos refletidos por um rio, este cercado por barrancos de terra rica e preta, e espigões de plantas delgadas, finos canudos. A água flui. Lentamente, letargicamente, nos cinturões onde as rãs depositam seus ovinhos. Água turva em contraste com a água corrente e rápida e lépida e fresca. Há alguma coisa se movendo nesta corrente: um barquinho, um tronquinho, uma pessoinha, não se pode ver. Duas pessoas, uma de cada margem, correm paralelas, um pouco atrás desta forma indistinta, esta sombra buraco no rio. Sou eu e meu amigo. Corremos e rimos e gorgolejamos de emoção e fúria, em disparada deste buraco negro no rio. Muitas vezes um vau no rio nos aproxima, chegamos perto de alcançar a nossa presa. Podemos sentir o calor e ver o suor na testa do outro. Outras tantas, estamos distantes. Margens são margens, distantes. Escuta-se o barulho dos galhos sendo quebrados pelos pés, ouve-se possíveis lamentações solitárias, vê-se que o outro diminuiu a marcha. Tiras verde-escuras cortam a sua imagem, me apresentam-no em fatias: quase desaparece. Corremos atrás da mancha no rio.
É assim que se flui.
Estou triste. Meu amigo Will foi-se para São Paulo, este final de semana.
Eu sei: São Paulo é ali do lado. Eu sei: que excelente oportunidade para ele. Eu sei: não vai ser a última vez que eu vou o ver.
Esta última eu mais sinto que sei. Mas eu sei.
Ele estava, faz muito tempo, contando com isto, querendo isto. Eu vi, acompanhei, dou fé, e dei apoio. É uma coisa importante para ele, muito além da importância que as pessoas dão para a palavra importância. E para mim também o é, mesmo que eu não o saiba dizer.
Pois o meu grande amigo dá o seu passo no Mundão. Todos nós damos os nossos passos no Mundão. Bilhões de pessoas deram os seus passos no Mundão - e a maioria delas está morta - história. Uns tinham filhos, outros não os tinham, como o Will. Muitos deram seus passos por necessidade, muitos por vaidade. Uns claudicantes, outros triunfantes. Uns sôfregos, outros trágicos, outros contidos, tantos ignorantes.
Choro por quê? então me perguntam. Que tristeza é esta?
Bem, eu chamo de tristeza para poder dizer a vocês. São tantas coisas em mim que eu detestaria vos fazer perder o seu tempo precioso catalogando os meus sentimentos.
Tristeza de não poder ter perto de mim este cara que dividiu muitas coisas comigo. Tristeza de ter que ouvir, escutar, e torcer, somente. Melancolia e nostalgia por visões do futuro passadas. Insegurança quanto ao futuro, por ele e por mim. Inveja - este o mais insidioso e mais pessoal de todos.
E, eu não sei explicar, um tremendo otimismo e bom-humor. Eu estou, de uma certa forma, contando contigo, Will. Acho que você sabe disto.
Eu não me dirijo muito a ele, aqui nesta minha escrita, pois eu sei que ele não me lê. Quase não me lê, e se duvidar nunca me leu, aqui no meu blog. Eu não me importo muito com isto. Mas eu vou me dirigir a você agora, Will, mesmo que você não me leia.
Admiro a tua presença. Admiro a tua alma. Ter te conhecido e conviver contigo é uma prova de vida - e ponto.
(Eu pretendia te escrever uma pequena eulogia, além destas palavras, mas não farei mais, por receio de ficar cheesy para os meus colegas amigos e algo-mais leitores. Né, meus colegas leitores? Eu queria que todos vocês saíssem chorando depois de ler o meu texto, devido a minha excepcional capacidade de colocar emoções no papel; que todos vocês desviassem os olhos marejados de lágrimas e pensassem então nos meus amigos, e deslumbrassem a ambivalência e a finitude dos laços humanos... Estou sendo egoísta: quero que todos chorem porque eu estou chorando. Sem essa, que a vaca tá esperando a ordenha.)
Então vá logo de uma vez, e trate de ser feliz. Nos vemos em breve.

terça-feira, 23 de janeiro de 2007

Javé-é

Sabemos que, para muitos de nós, Javé continua a ser a resposta mais acertada para uma pergunta angustiante: "Quem é Deus?" Um budista, um hindu ou um taoísta não concordaria, tampouco muitos cristãos, muçulmanos e judeus, mas a minha resposta é a de um crítico literário, e se fundamenta na força e no poder da única personalidade literária que, tratando-se de vivacidade e notoriedade, ultrapassa até Hamlet, Falstaff, Iago, Lear e Cleópatra. Traduzindo a questão em termos religiosos, o Javé de "J" é a representação mais convincente da alteridade transcendental que já encontrei na vida. E, no entanto, Javé não é apenas "antropomórfico" (termo inútil!), mas é mesmo absolutamente humano, e não é, de maneira alguma, um sujeito agradável - e por que deveria sê-lo? Não pretende se candidatar a cargo político, não busca a fama nem almeja receber tratamento favorável por parte da mídia. Se o cristianismo insiste que Jesus Cristo é a boa nova (asserção tornada inválida pela brutalidade dos cristãos ao longo da história), então, Javé é a "má nova" encarnada, e a Cabala nos diz que ele, com toda a certeza, tem um corpo, um corpo imenso. É algo terrível cair nas garras do Javé vivo.
Harold Bloom. Jesus e Javé: Os nomes divinos. Rio de Janeiro, Objetiva, 2006.

quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

Kundera-era-era

O pessoal do copirraite vai ter de me perdoar, mais uma vez. Mas a minha vontade de partilhar algo que não é meu vai além do meu ressabio.

Na verdade, eu duvido muito que tenha algum problema com o "pessoal do copirraite", este meu pequeno espaço virtual que meia dúzia de belos gatos pingados visitam, esperando pelo quê? ninguém sabe.

Mas este livro, que eu li de uma sentada de seis horas interrompida pela polenta com frango e quiabo - dos quais comi cuidadosamente só o quiabo, eita prato gostoso, Noss'Sora - me fez ter sonhos, sonhos que agitaram o copo da minha vida água com areia.

E que eu o li outra vez, alguém acredita? Mas o li com apenas 18 anos, e como parecem poucos os 18 anos... com 23 o leio de novo, e quedo-me hipnotizado. Neste ritmo, me dá cosquinha saber o que eu vou achar dos livros - e das músicas, e dos enfins - com o passar do tempo. Espero que o prognóstico para mim seja mais ou menos como o dos vinhos: refina com a idade. Afinal, eu também sou organoléptico.

Uso refina porque dizem "melhora". Mas melhora em que sentido? Pros apreciadores, somente. Enfim, quem me conhecer até este dia vai ter o prazer ou desprazer de poder saber - e quem sabe poder zombar da minha cara. Até lá, salve a juventude e as cosquinhas.

Mas então, este trecho, que eu fiz o grande favor de, quebrando as leis de copirraite, disponibilizar em uma bela página online, com o meu template inconfundível, é o seguinte imediato ao trecho que, quebrando as leis enfimenfimenfim, eu coloquei no meu post passado.

"....que nascera de seu sonho, que não era de lugar nenhum."

"Mas ela lhe diz, com amargura, que ele deve ficar onde se sente feliz, e faz aqueles gestos incoerentes que sempre o irritaram, que sempre achara desagradáveis. Segura suas mãos nervosas, apertando-as contra as dele para acalmá-la."

A questão das mãos, neste trecho, é tocante. O livro descreve, em várias cenas, como Tomas segura as pontas da mão de Tereza, sempre que esta as tem tremendo. As várias cenas fazem, então, um thread, um colar, compartilhando isto: os medos e as raivas de Tereza, as suas mãos tremendo. É um gesto poderoso.

A questão da cesta, remete à cesta em que veio Moisés, vista em outra parte. O tema do "es muss sein!" também não veio do nada.

E o trecho todo é mais tocante quando se acompanhou os dois até este momento. Sei que é desnecessário dizer, mas tomem-me então como o amigo bêbado que diz as coisas mais desnecessárias, sempre - as que todo mundo já sabe. As várias "amigas sexuais" de Tomas, de como Tereza sabia delas...

Então, paro por aqui antes que comece a passar o livro por inteiro.
*****

Eu dedico este texto a todos os amantes de faunos.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2007

Andorinha-inha


Ele acordou no meio da noite e constatou, surpreso, que tinha tido sonhos eróticos. Só se lembrava com precisão do último deles: uma mulher gigante nadava nua numa piscina, era pelo menos cinco vezes maior do que ele e tinha a barriga coberta por grossos pêlos que iam das coxas ao umbigo. Olhava-a da borda da piscina e sentia-se muito excitado.
Como pode ficar excitado com o estômago doendo e com o corpo enfraquecido? Como podia ficar excitado ao olhar uma mulher que, se estivesse acordado, só lhe inspiraria repulsa?
Disse a si mesmo: existem duas rodas dentadas que giram em sentido inverso no mecanismo de relojoaria do cérebro. Numa estão as visões, na outra as reações do corpo. O dente sobre o qual está gravada a visão de uma mulher nua encaixa no dente oposto, sobre o qual está inscrito o imperativo da ereção. Quando a engrenagem se altera, por qualquer motivo, e o dente correspondente à excitação entre em contato com o dente sobre o qual está desenhada a imagem de uma andorinha em pleno vôo, nosso sexo se endurece à vista da andorinha.
Aliás, ele lera um estudo no qual um de seus colegas, especialista em sono, afirmava que um homem que sonha está sempre em ereção, seja qual for o sonho que tenha. A associação da ereção com uma mulher nua não era, portanto, mais do que um regulagem escolhida pelo Criador entre mil outras regulagens possíveis para ajustar o mecanismo de relojoaria na cabeça do homem.
O que existe de comum entre tudo isso e o amor? Nada. Basta que uma roda da engrenagem desvie uma fração de milímetro na cabeça de Tomas para que ele fique excitado só de ver uma andorinha, o que não muda em nada o seu amor por Tereza.
Se a excitação é um mecanismo que depende de uma capricho de nosso Criador, o amor, ao contrário, é aquilo que só pertence a nós, e pelo qual escapamos do Criador. O amor é nossa liberdade. O amor está para além da necessidade, para além do "es muss sein!" ["tem de ser!"].
Mas nem isso é a verdade inteira. Mesmo que o amor seja algo diferente do mecanismo de relojoaria da sexualidade imaginado pelo Criador para seu divertimento, ele é, ainda assim, ligado a esse mecanismo como uma doce mulher nua se balançando no pêndulo de um enorme relógio.
Tomas diz a si mesmo: associar o amor à sexualidade é uma das idéias mais bizarras do Criador.
Pensou ainda: a única maneira de salvar o amor da tolice da sexualidade seria acertar o relógio de maneira diferente em nossa cabeça, para que pudéssemos ficar excitados com a visão de uma andorinha.
Embalou-se com este doce pensamento. À beira do sono, no espaço encantado das visões confusas, de repente teve certeza de que acabara de achar a solução para todos os enigmas, a chave do mistério, uma nova utopia, o Paraíso: um mundo em que se tem uma ereção diante de uma andorinha, e em que podia amar Tereza sem ser importunado pela tolice agressiva da sexualidade.
Voltou a adormecer.

Milan Kundera, A insustentável leveza do ser. 5, #22.

Esta passagem é infinitamente mais rica e mais vívida dentro da história de Tomas e Tereza e Franz e Sabina que eu reli, em uma sentada de seis horas ininterruptas (minto, comi polenta no meio).

sábado, 13 de janeiro de 2007

Panadero-ero

En un cuento de Guy de Maupassant, la joven sirvienta de una casa burguesa va con su canastro bajo el brazo a comprar el pan de cada mañana. Por un ventanuco espía al joven panadero amasando y se lleva consigo la imagen de suas anchas espaldas, sus brazos poderosos, la piel brillante de sudor y esas manos sensuales sobando y sobando la masa con determinación de amante, tal como ella quisiera ser tocada. Y como es cuento de amor, su fantasía se cumple con creces. La vista de uno de esos grandes panes campesinos me trae el inevitable recuerdo del panadero de Maupassant y sus manos en la masa y en la carne firme de la muchacha... Hay manos y manos, unas pesadas y torpes, otras pequeñas y fuertes, las hay livianas y temerosas, otras grandes y gentiles, pero para hacer pan y para hacer el amor, lo que importa es la intención que guía a la mano...

[....]

Recuerdo la cocina de un convento en Bruselas, donde presencié, reverente, la misteriosa cópula de la levadura, la harina e el agua. Una monja sin hábito, con las espaldas de un cargador de muelles y las manos delicadas de una bailarina, preparaba el pan en moldes redondos y rectangulares, los cubría con un paño blanco mil veces lavado y vuelto a lavar, y los dejaba reposar junto a la ventana, sobre un mesón de madera medieval. Mientras ella trabajaba, en otro extremo de la cocina se producía el sencillo milagro cotidiano de la harina y la poesía, el contenido de los moldes cobraba vida y un proceso lento y sensual se desarrollaba bajo esas blancas servilletas que, como sábanas discretas, cubrían la desnudez de las hogazas. La masa cruda se hinchaba en suspiros secretos, se movía suavemente, palpitaba como cuerpo de mujer en la entrega del amor. El olor ácido de la masa en fermento se mezclaba con el aliento intenso y vigoroso de los panes recién horneados. Y yo, sentada sobre un banquillo de penitente, en un rincón oscuro de esa vasta habitación de piedra, inmersa en el calor y la fragancia de aquel misterioso proceso, lloraba sin saber por qué...
Isabel Allende, Afrodita.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2007

Rebento-ento

Fiquei com ódio da vida, porque tudo o que se faz debaixo do sol me desagradou. Tudo é fugaz, uma corrida atrás do vento. Detesto todo o trabalho com que me afadigo debaixo do sol, porque devo deixar tudo para o homem que virá depois de mim. E quem sabe se ele será sábio ou insensato? De qualquer modo, ele será dono de tudo o que eu fiz debaixo do sol com a minha fadiga e sabedoria. Também isso é fugaz. Então fiquei com o coração desesperado por causa de todo o trabalho com que me afadiguei debaixo do sol. De fato, há quem trabalhe com sabedoria, conhecimento e sucesso. E depois tem que deixar seus bens para outro que com nada se afadigou. Também isto é coisa fugaz e grande mal.
Então, que proveito resta para o homem de todo o seu trabalho e esforço mental com que ele se afadigou debaixo do sol? Sim, os seus dias todos são dolorosos, a sua tarefa é penosa, e até de noite ele não pode repousar. Também isso é fugaz!
Eclesiastes, 2, 17-23.


Tudo isso ela me ensinava, quando sobre as questões de amor discorria, e uma vez ela me perguntou: - Que pensas, ó Sócrates, ser o motivo desse amor e desse desejo? Porventura não percebes como é estranho o comportamento de todos os animais quando desejam gerar, tanto dos que andam quanto dos que voam, adoecendo todos em sua disposição amorosa, primeiro no que concerne à união de um com o outro, depois no que diz respeito à criação do que nasceu? E como em vista disso estão prontos para lutar os mais fracos contra os mais fortes, E mesmo morrer, não só se torturando pela fome a fim de alimentá-los como tudo o mais fazendo? Ora, os homens, continuou ela, poder-se-ia pensar que é pelo raciocínio que eles agem assim; mas os animais, qual a causa desse seu comportamento amoroso? Podes dizer-me?

De novo eu lhe disse que não sabia; e ela me tornou: - Imaginas então algum dia te tornares temível nas questões do amor, se não refletires nesses fatos?

- Mas é por isso mesmo, Diotima - como há pouco eu te dizia - que vim a ti, porque reconheci que precisava de mestres. Dize-me então não só a causa disso, como de tudo o mais que concerne ao amor.

- Se de fato - continuou - crês que o amor é por natureza amor daquilo que muitas vezes admitimos, não fiques admirado. Pois aqui, segundo o mesmo argumento que lá, a natureza mortal procura, na medida do possível, ser sempre e ficar imortal. E ela só pode assim, através da geração, porque sempre deixa um outro ser novo em lugar do velho; pois é nisso que se diz que cada espécie animal vive e é a mesma - assim como de criança o homem se diz o mesmo até se tornar velho; este na verdade, apesar de jamais ter em si as mesmas coisas, diz-se todavia que é o mesmo, embora sempre se renovando e perdendo alguma coisa, nos cabelos, nas carnes, nos ossos, no sangue e em todo o corpo. E não é que é só no corpo, mas também na alma os modos, os costumes, as opiniões, desejos, prazeres, aflições, temores, cada um desses afetos jamais permanece o mesmo em cada um de nós, mas uns nascem, outros morrem. Mas ainda mais estranho do que isso é que até as ciências não é só que umas nascem e outras morrem para nós, e jamais somos os mesmos nas ciências, mas ainda cada uma delas sofre a mesma contingência. O que, com efeito, se chama exercitar é como se de nós estivesse saindo a ciência; esquecimento é escape de ciência, e o exercício, introduzindo uma nova lembrança em lugar da que está saindo, salva a ciência, de modo a parecer ela ser a mesma. É desse modo que tudo o que é mortal se conserva, E não pelo fato de absolutamente ser sempre o mesmo, como o que é divino, mas pelo fato de deixar o que parte e envelhece um outro ser novo, tal qual ele mesmo era. É por esse meio, ó Sócrates, que o mortal participa da imortalidade, no corpo como em tudo mais o imortal porém é de outro modo. Não te admires portanto de que o seu próprio rebento, todo ser por natureza o aprecie: é em virtude da imortalidade que a todo ser esse zelo e esse amor acompanham.

O banquete, Platão.

Renard-ard

- Ma vie est monotone. Je chasse des poules, les hommes me chassent. Toutes les poules se ressemblent, et tous les hommes se ressemblent. Je m'ennuie donc un peu. Mais, si tu m'apprivoises, ma vie sera comme ensoleillée. Je connaîtrai un bruit de pas qui sera différent de tous les autres. Les autres pas me font rentrer sous terre. Le tien m'appellera hors du terrier, comme une musique. Et puis regarde! Tu vois, là-bas, les champs de blé? Je ne mange pas de pain. Le blé pour moi est inutile. Les champs de blé ne me rappellent rien. Et ça, c'est triste! Mais tu as des cheveux couleur d'or. Alors ce sera merveilleux quand tu m'auras apprivoisé! Le blé, qui est doré, me fera souvenir de toi. Et j'aimerai le bruit du vent dans le blé...

- Minha vida é monótona. Eu caço as galinhas e os homens me caçam. Todas as galinhas se parecem e todos os homens se parecem também. E por isso eu me aborreço um pouco. Mas se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol. Conhecerei um barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros passos me fazem entrar debaixo da terra. O teu me chamará para fora da toca, como se fosse música. E depois, olha! Vês, lá longe, os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelos cor de ouro. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado. O trigo, que é dourado, fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo...
Antoine de Saint-Exupéry. O pequeno príncipe. Em português tirado daqui.

segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

Quando eu acordo de manhã e jogo o lixo no lixo de qualquer forma, com um pouco de raiva, até, mal me lixando se estou jogando sacolas plásticas junto com restos de comida, eu me dou conta de que algo mudou na minha vida.

E não é o melhor dos dias.

domingo, 7 de janeiro de 2007

Anamórfico


Encontrei este cara que faz estes desenhos incríveis na calçada.

Dêem uma checada: o efeito se chama "anamorfismo". Eu achei fantástico.

quinta-feira, 4 de janeiro de 2007


Você já se imaginou comendo uma quiche deliciosa como esta, com pequeninos pedaços de vidro? Pois eu e Will comemos.

*****


Ney Matogrosso cantando...
Finalmente

A vida toda eu esperei por agora
Sentir o teu perfume assim tão de pertinho
Esse teu cheiro que existe só na flora
Naquelas flores que também contém espinhos

A vida toda eu esperei essa glória
Beijar mordendo esses teus lábios de fruta
Boca vermelha cor de amora cor da aurora
Dois cogumelos recheados com açúcar

Já vem de longe esse desejo perene
Suco de kiwi escorrendo lentamente
Não é de hoje que eu preciso conter-me
Chegou a hora vamos ver finalmente



Alzira Espíndola, Paulo Salles e Itamar Assumpção

sábado, 30 de dezembro de 2006

Merton II

"A meditação budista, sobretudo a do Zen, não procura explicar, mas sim prestar atenção, conscientizar-se, manter-se vigilante, em outras palavras: desenvolver certo tipo de conscientização que está acima e além da ilusão produzida por fórmulas verbais - ou pela excitação emocional. Ilusão em relação a quê? Ilusão quanto à apreensão do que é a meditação em si mesma. Ilusão devido à diversão e à distração no que concerne àquilo que se encontra ali mesmo: a própria conscientização."
Thomas Merton, Zen e as Aves de Rapina. Cores e negritos por Lucas

Ney

Liz deu para minha mãe, tempão atrás, a gravação do Ney Matogrosso cantando com Pedro Luis e a Parede, o álbum Vagabundo.

Excelente.

sexta-feira, 22 de dezembro de 2006

"O Filho que Eu Quero Ter"

Disseram-me que a Bina, amiga do disseram-me (Robizito, de Guarulhos), a qual eu acho que não conheço/não sei, está grávida. E ela colocou uma letra do Toquinho e do Vinícius, aqui.

Eu não conhecia. Muito, muito linda.
Estava lendo aqui, nesta madrugada, algumas acusações que ex-devotos do tal Sai Baba fizeram.

Abuso sexual de homens jovens, encenações e truques mágicos do que seriam "materializações", uso do dinheiro das doações. Enfim.

Estas são apenas as acusações (quem quiser saber mais, googleie por David Bailey, "The Findings"). A própria organização do Sai tem sua réplica, que eu comecei a ler, mas o estilo é praticamente soporífero, em muitos casos. Eu sinceramente não tiro nenhuma conclusão.

Digo apenas que não existe coisa que me tantaliza mais do que a perfídia e a escravidão mental que muitas práticas religiosas e devocionais trazem consigo. Eu fico chocado e muito, muito revoltado com este aspecto tão presente, reatualizado a cada instante. Ou você acha que no nosso mundo "esclarecido" estas coisas não acontecem?

*****

"Pareidolia" é um tipo de ilusão ou percepção equivocada, provocada por um estímulo vago ou obscuro. A definição é do Skeptic's Dictionary. É na pareidolia que o Rorschach se baseia. O caso do rosto marciano, se trata da mesma coisa. Do olho de Deus em um pulsar. Da face de Jesus em uma nebulosa - ou em um tronco de árvore - ou em uma tortilla.

Todos nós somos tendenciosos neste sentido. Vemos faces, mais do que tudo, onde sombras e manchas estão. Vemos muita coisa. Para quê cultuar uma tortilla? Cantemos a criatividade humana, em vez disso.

*****

Fico triste. Não me vejo como um idealista. Não creio que uma humanidade error-proof seria mais feliz. Não creio que acreditar em coisas inacreditáveis deixa as pessoas infelizes. E, contudo...

Tenho de andar com um espelho do meu lado, e parar para olhar - sempre.

*****

Uma pequena aranha na minha perna, agora.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2006

Eulogia

Que vergonha. Que vergonha.

Todos que me conhecem ou que me lêem por algum tempo passado sabem do meu variado gosto musical. Sabem do quanto eu me derreto com as interpretações divinas da Vaughan; o quanto meu coração portenho bate por uma Buenitos que não existe com Piazzolla, o quanto Mozart me comove, ou Bach me eleva às alturas.

E todos sabem da minha paixão, por assim dizer, pela museletro. E do como a minha nuca ainda se arrepia com o som do trance, do psy.

Durante muito tempo, eu curti muito o trance. Parei um pouco, no meu eterno questionamento das coisas que eu faço. Volta e meia escutava um Astrix da vida, umas das antigas do GMS, um Man with no Name, fechando com 1200 micrograms. E um pouco do Infected Mushroom, também. Mas confesso a vocês que este tipo de música, apesar de me atrair, não me chamava tanto mais assim.

Foi quando eu fui pro eletro, mas daí é uma outra história.

O principal motivo de largar um pouco o trance? Ele me cansa. Muito puxado, até mesmo para os meus ouvidos. Têm alguns que são, dá pra se ver muito bem, exclusivos de uma rave - e só numa rave mesmo pra aguentar uma coisa tão full power.

Sempre gostei um pouco do Infected, sempre. Mas, preferia outros. Não achava as suas músicas tão boas assim.

E hoje, para a minha vergonha, resolvi dar um tempo das três deles - são uma dupla israelense - que eram o meu default, o que eu escutava sempre.

Agora, humildemente, jogo cinzas por cima de mim, e rasgo as minhas vestes, em um gesto de perdão.

Pois que eu reescutei, com assombro e admiração, os dois últimos álbuns: Converting Vegetarians e IM the SuperVisor. Com assombro e admiração eu escutei o quanto os caras são bons; com assombro e admiração eu decidi, depois de ficar indiferente frente aos pedidos de pessoas próximas, vê-los em sua próxima passagem por aqui.

O último, IM the SuperVisor, é simplesmente incrível (o C.V. é meio bobinho). Não vou falar muito dele, obviamente, pois depois muitos virão pra cima de mim, falando que "nem é tão bom assim". Claro, né nega, se procuras samba sabes que não é disso que eu tou falando aqui. Mas, se é pra dizer uma coisa, eu digo: não, é o paraíso na terra; não, não é respirar fundo e ver o sol nascendo dourado e sentir amor por todas as coisas vivas e não-vivas e aquelas cujo status vivente ainda não se sabe, mas não importa; não, não são 188 bpm que vão te explodir e te fazer renascer num dos lokas hindus de flores gigantes e vacas gordas,

mas eles sabem o que fazem. Não se deixem enganar pela aparente simplicidade da música. Observem as linhas melódicas. Divirtam-se, ao menos, com a música título, que é engraçadinha.

Além da rave; além da pista de dança. Entre os dois, e além. Divirtam-se - e dêem um novo sentido para diversão, por favor.

Pois precisamos.

(Ah, o trio default era Cities of the Future, IM the SuperVisor e I Wish, esta do C.V.)

quinta-feira, 14 de dezembro de 2006

"Este fato tem sido explorado por engenheiros contrários à engenharia reversa. Discuto um exemplo em Dennet, 1978 (p. 279):
Existe um livro sobre como detectar peças de antiquário falsificadas (que é também, inevitavelmente, um livro sobre como falsificar peças antigas) que dá este malicioso conselho para quem quiser enganar o comprador 'experiente': depois de terminada sua mesa ou seja lá o que for (tendo usado todos os meios usuais para simular idade e uso), pegue uma furadeira moderna e faça um furo na peça em algum lugar bem evidente e intrigante. O provável comprador argumentará: ninguém faria um furo tão feio sem ter um motivo (não se supõe que ele seja 'autêntico', de qualquer forma), então ele deve ter servido a algum propósito, o que significa que esta mesa foi usada na casa de alguém; como foi usada na casa de alguém, não foi feita expressamente para ser vendida neste antiquário... Portanto, é autêntica. Mesmo que esta 'conclusão' ainda deixe espaço para algumas dúvidas, o comprador estará tão ocupado sonhando com usos para aquele buraco que meses se passarão antes que as dúvidas venham à tona.

Já se disse, com que plausibilidade eu não sei, que Bobby Fischer usou a mesma estratégia para derrotar adversários no xadrez, sobretudo quando o tempo estava se esgotando: faça um movimento deliberadamente 'estranho' e observe seu adversário perder um tempo precioso tentando entender o que você fez."

Daniel Dennett, A perigosa idéia de Darwin. Rocco, 1998.

terça-feira, 12 de dezembro de 2006

"A montagem da pulsão é uma montagem que, de saída, se apresenta como não tendo nem pé nem cabeça - no sentido em que se fala de montagem numa colagem surrealista. Se aproximarmos os paradoxos que vimos de definir no nível do Drang ao do objeto, ao do fim da pulsão, creio que a imagem que nos vem mostraria a marcha de um dínamo acoplado na tomada de gás, de onde sai uma pena de pavão que vem fazer cócegas no ventre de uma bela mulher que lá está incluída para a beleza da coisa."

Jacques Lacan, Seminário 11 - Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
all nearness pauses,while a star can grow

all distance breathes a final dream of bells;
perfectly outlined against afterglow
are all amazing the and peaceful hills


(not where not here but neither's blue most both)

and history immeasurably is
wealthier by a single sweet day's death:
as not imagined secrecies comprise


goldenly huge whole the upfloating moon.

Time's a strange fellow;
more he gives than takes
(and he takes all)nor any marvel finds
quite disappearance but some keener makes
losing,gaining
-love! if a world ends


more than all worlds begin to(see?)begin

E. E. Cummings

segunda-feira, 11 de dezembro de 2006

Que estes mesmos contactos insistam e se multipliquem em torno de uma criatura única até bloqueá-la toda inteira; que cada detalhe de um corpo apresente para nós tantas significações perturbadoras como os traços de um rosto; que um único ser, em vez de inspirar-nos quando muito irritação, prazer ou aborrecimento, nos obsidie como uma melodia ou nos atormente como um problema; que esse ser passe da periferia do nosso universo ao seu centro, que se torne mais indispensável do que nós próprios, e estará realizado o admirável prodígio: assistiremos então à invasão da carne pelo espírito, e não mais um passatempo do corpo.

Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar. Tradução de Martha Calderaro. Nova Fronteira, 1980.

domingo, 10 de dezembro de 2006

Thomas Merton no seu livro, Zen e as Aves de Rapina. Trecho interessante para a discussão do provável caráter escapista das práticas religiosas.
Em ambos os casos, os 'fatos' não são apenas impessoais e objetivos: são fatos de experiência pessoal. Tanto o budismo como o cristianismo se assemelham, ao utilizarem a trama ordinária do cotidiano da existência humana como material para transformação radical da consciência. uma vez que a existência humana ordinária, cotidiana, está cheia de confusão e sofrimento, é óbvio que serão utilizadas essas duas coisas para a transformação da nossa conscientização e nosso entender, passando para além de ambos a fim de atingir a 'sabedoria' no amor. Seria grave erro supor que o budismo e o cristianismo oferecem apenas explicações em relação ao sofrimento, ou, pior, justificações e mistificações construídas sobre este fato inelutável. Pelo contrário, ambos demonstram como o sofrimento permanece inexplicável, sobretudo para aquele que tenta explicá-lo a fim de evadir-se dele, ou que pensa que a própria explicação seja uma fuga. O sofrimento não é um 'problema' como, por exemplo, algo que pudéssemos controlar de fora. O sofrimento é considerado, tanto pelo cristianismo como pelo budismo, cada um a seu modo, como fazendo parte da nossa própria identidade-ego e de nossa existência empírica. E a única coisa a fazer em relação a isso, é mergulhar de cheio em plena contradição e confusão, de maneira a ser transformado pelo que o Zen denomina 'a Grande morte' e o cristianismo declara ser 'morte e ressurreição em Cristo'.
Acceptance of not-knowing produces tremendous relief.

Winnicott

terça-feira, 5 de dezembro de 2006


Cozinha de retiro. Muitas vagens picadas, cenouras cortadas, e silêncio. Eu, logo atrás da pequena estátua de madeira.

quarta-feira, 29 de novembro de 2006

Ciência versus Religião.

Boooooooooooooooooooom... (reboa um sino)

Ciência versus Religião.

Boooooooooooooooooooom...

Ciência versus Religião.

Boooooooooooooooooooom...

Ciência versus Religião.

Boooooooooooooooooooom...

Ciência versus Religião.

Boooooooooooooooooooom...

domingo, 1 de outubro de 2006

Olho no olho

Diz-se que estamos todos cegos, de alguma forma. Estamos cegos para quê, exatamente? Não escutamos, mas escutamos - o que escutamos? Não vemos, mas vemos - o que vemos? Não sentimos, mas sentimos - o que sentimos?

Você aí que me lê, na frente de uma tela de computador. Talvez na pressa, ainda com as costas não encostadas no espaldar; ou talvez escutando uma seleção de domingo das suas músicas mais favoritas, chateando, lendo seus interesses múltiplos e variados. É uma boa, não? Como é bom fazer as coisas de que gostamos... um daqueles dias em que sentimos a tranquilidade de uma vida bem vivida batendo de leve na janela.

Mas quem te ensinou a gostar? De onde vem isto? "Eu desenvolvi estes gostos, estas qualidades, estes planos de vida..." ou "alguns eu já os tenho desde pequeno..." ou "pode ser filogenético ou ontogenético?". Quem te ensinou a gostar? De onde vem isto?

O gostar de cada dia, a tranquilidade de uma vida bem vivida, bem oleada - como se anda sobre o fio de uma navalha a cada dia. Estar certo de estar fazendo o melhor que se pode, o melhor que se quer, de ter escolhido uma coisa boa, de onde vem isto? Como pode você estar tão certo andando sobre o fio de uma navalha?

Um leve sussurro, um estremecimento qualquer, um vento frio que passa e levanta as cortinas - um alfinete que cai no chão - uma gota de chuva na janela - o latido de um cachorro - a palavra de uma pessoa amada - uma rachadura na parede, uma rachadura na sua cara. Em cima da navalha você está, como não?

E eu?

quinta-feira, 7 de setembro de 2006

Coen

Festival mundial da Paz aconteceu aqui em Floripa, dia primeiro ao dia 6 de setembro.

Hoje é feriado, dia da independência. Eu não sou patriota MESMO, pois hoje eu acordei, vi que a Terezinha não veio, mas não estranhei, de vez em quando ela não vem. Mais tarde, escuto minha mãe roncando no quarto - ela nunca deixa de ir trabalhar de manhã, mas eu não estranhei, ela teve dias complicados. Então, meio dia e meia, desci para o meu almoço habitual no "aquilo" aqui perto - rua vazia, mercadinho fechado, o restaurante fechado. Claro, é feriado.

Não participei muito do festival não. Acho muito legal e interessante a iniciativa, mas não me agrada - falando em termos de preferência pessoal, somente - o trabalho da Unipaz. Mas eu passava lá de vez em quando, descobri a mulher das trufas, a primeira estava boa, que era somente de chocolate, mas as outras que não eram somente de chocolate pareciam ser somente de chocolate com aromatizantes. Peço delicadamente para a moça das trufas se dedicar mais a este aspecto, para o nosso próximo Festival Internacional da Paz.

Que é lindo um bando de gente se reunir para falar de paz, isto é.

Mas no último dia apareci. Tive de, conhecer a monja Coen, a famosa monja Coen que não irritou a Fernanda Young ("Irritando Fernanda Young", GNT). Ouço falar da Coen faz muito tempo. Ela falou algumas palavras no festival, e mais tarde ela proferiu uma palestra na Educação Física da Udesc - "Corporeidade, Sexualidade e Espiritualidade", junto com um doutor em sexualidade humana e mais um professor de tantra yoga, que veio para o festival também.

A palestra não importa tanto, em termos de ponto de vista sobre estes três aspectos. Praticantes religiosos costumam pensar tudo em termos de reconexão, de modo que o assuntou acabou caindo para outros lados. A platéia era pequena, pequena mesmo, assim todo mundo ficou bem à vontade para falar qualquer coisa que quisesse. E eu exercitando, como sempre, a minha (in)tolerância no escutar as opiniões "idiotas" dos outros.

Confesso, tive olhos somente para a Coen. Uma mulher de cabeça raspada, próxima dos seus 60 anos, de olhos brilhantes e vívidos, de sorrisos. E diversas vozes.

Uma suave, tranquila, e baixa, que penetrava na minha cabeça e me trazia o maior enternecimento. Principalmente quando ela falava sobre o darma.

Falando sobre baratos, sobre drogas e sobre o uso masturbatório da sexualidade, Coen nos contava sobre os meninos de rua que ela costuma visitar. Que ela chega para eles e propõe que fumem um baseado, mas sem maconha, sem tabaco, sem coisa alguma. Que fechem um - e ela vai lá e fecha e eles fecham muito melhor que ela, têm mais prática - e vamos então. Puxa fundo - ar, somente ar - segura, e expira bem devagar. O que é isso? Pranayama. Ter barato com oxigênio.

Que coisa fantástica, que coisa linda a monja Coen chegar nos meninos e meninas assim, dessa forma.

Dei um abraço nela. Foi um prazer conhecê-la pessoalmente.

quinta-feira, 31 de agosto de 2006

six-branched


Eu me quedo em assombro com a simetria natural. Desculpem-me, mas eu me quedo.

É um floco de neve. Não são todos que são assim tão simétricos, contudo. A maioria deles não o são. Mas, dadas as condições necessárias, voilà.

Quem precisa de mais mandalas do que esta?

Poema para os Atos Mortos

Um texto muito interessante.

"Ainda que lhes tenhamos tanto medo, e que nos esforcemos por toda a vida a não cometê-los, são justamente nos atos errados que se abrigam as lições mais fundamentais da condição humana. Quem jamais desejou viver sua própria vida como um grande equívoco? Todos nós acalentamos o sonho de acertar, acertar sempre, e desta forma obter o máximo do mundo. Mas a existência possui mais facetas do que imaginamos, e - principalmente - não somos perfeitos. Ou, sendo mais correto, os atos humanos são forjados pelas intenções relativas, e ironicamente são justamente as certezas absolutas que dão fruto aos nossos maiores erros - não somos perfeitos porque nos achamos quase sempre certos."

(continua...)

terça-feira, 29 de agosto de 2006

Il y a?

Lembrando que, para um ponto de vista psicanalítico, homens e mulheres são definidos de formas diferentes com relação à ordem simbólica - independente de sua constituição biológica/genética. Este é o ponto de vista psicanalítico. Êêê. Assim, o texto abaixo não fala somente de homens e mulheres como os portadores de pênis ou vagina.

Tendo dedicado metade de um século ao estudo do amor, do sexo e da linguagem, Lacan apareceu, no final da década de 60, com uma dessas expressões-bomba pelas quais era tão bem conhecido: "não existe a relação sexual" ("il n'y a pas de rapport sexuel").

A redação em francês é ambígua na medida em que a expressão rapports sexuels pode ser usada para simplesmente se referir ao ato sexual. Entretanto, Lacan não estava afirmando que as pessoas não tinham relações sexuais - uma alegação no mínimo ridícula; o uso da palavra rapport aqui sugere uma esfera mais "abstrata" de idéias: relação, relacionamento, proporção, razão, fração e assim por diante.

De acordo com Lacan, não há nenhuma relação direta entre homens e mulheres uma vez que são homens e mulheres. Em outras palavras, eles não "interagem" uns com os outros como homem para mulher e mulher para homem. Alguma coisa impede tais relações; algo desvia estas interações.

Existem muitas maneiras diferentes de se refletir a respeito do que tal relação - se ela existisse - poderia envolver. É possível pensar que teríamos algo parecido com uma relação entre homens e mulheres se pudéssemos defini-los em termos um do outro, digamos, como opostos, yin e yang, ou em termos de uma inversão complementar simples como atividade/passividade (o modelo de Freud, se bem que insatisfatório até para ele). É possível até mesmo associar a masculinidade a uma curva seno e a feminilidade a uma curva co-seno, uma vez que isto nos permitiria formular algo que poderíamos tomar como uma relação sexual da seguinte forma: seno(ao quadrado)x+co-seno(ao quadrado)x=1.

[Segue uma figura de um gráfico com as duas funções, com uma diferença de fase de meio pi]

A vantagem desta fórmula específica é que ela parece explicar, de forma gráfica, a descrição de Freud dos diferentes tipos de coisas que os homens e as mulheres procuram um no outro: "Têm-se a impressão de que o amor do homem e o amor da mulher psicologicamente sofrem de uma diferença de fase" (vol.XXII, p. 164). Aqui, apesar da heterogeneidade aparente das curvas masculina e feminina, apesar de seus tempos distintos, seria possível combiná-los de tal forma a torná-los um.

Mas, de acordo com Lacan, tal igualdade é impossível: nada que se pudesse qualificar como uma relação verdadeira entre os sexos pode ser falado ou escrito. Não existe nada complementar a respeito desta relação, nem existe uma relação inversa simples ou algum tipo de pararelismo entre eles. Ao contrário, cada sexo é definido separadamente com relação a um terceiro termo. Consequentemente, só existe uma não-relação, uma ausência de qualquer relação direta imaginável entre os sexos.

Lacan procura mostrar que (1) que os sexos são definidos separada e diferentemente, e (2) que seus "parceiros" não são simétricos nem sobrepostos. Os analisandos demonstram dia após dia que seus sexos biomédica/geneticamente determinados (órgãos genitais, cromossomos, etc.) podem estar em conflito com conceitos socialmente definidos de masculinidade e feminilidade e com suas escolhas de parceiros sexuais (ainda concebidas por muitas pessoas como estando baseadas nos instintos reprodutivos). Os analistas são, portanto, diariamente confrontados com a inadequação de definir a diferença sexual em termos biológicos.

Bruce Fink, O sujeito lacaniano. Jorge Zahar; 1998.

segunda-feira, 28 de agosto de 2006

(Kissing, Alex Grey, 1983)

Il n'y a pas de rapport sexuel

quinta-feira, 24 de agosto de 2006

Unhas e estrelas

Minha irmã perdeu a unha do polegar direito, numa rave, depois que a mesma foi esmagada por uma porta de carro. Uma coisa muito feia, diga-se de passagem. Ficou preta, parecia que o dedo ia necrosar por inteiro, tomando todo o corpo dela.

A unha caiu, e ela está crescendo de novo. Hoje ela me mostrou a unha, que está cobrindo já metade da área de uma unha de polegar normal. Pode-se ver que a unha é grudada na carne, mesmo. Lembrei-me que a unha cresce da base para a extremidade, deslizando e empurrando a camada córnea acima dela. E nós vamos cortando, ou se somos indianos e queremos entrar para o Guiness deixamo-las crescerem até ficarem negras e encurvadas.

Isto me faz pensar sobre os processos vários que acontecem no nosso corpo, e dos quais sequer sentimos alguma coisa. Processos microscópicos, como o crescimento dos pêlos, das unhas, até mesmo dos membros. A tal da renovação celular - a maior parte da poeira de nossas casas é pele humana.

Olhem para o lua no céu claro, e tentem distinguir o seu movimento. Qualquer estrela, se for lua nova. A lua está lá, parada; eppur si muove.

Isto não é fantástico?

segunda-feira, 21 de agosto de 2006

(Estou no lugar de um novo post que virá em breve. Por favor, sejam gentis comigo. Por mais que pareça curto ou mesmo desprezível, eu tenho sim algo a dizer. Todos os posts têm.)

quarta-feira, 26 de julho de 2006

Associação Coral de Florianópolis, ontem, em sua apresentação de aniversário de 46 anos, no CIC.

Regida pelo fofo Heller, que desta vez resolveram "inovar" e fazer uma apresentação chamada Rock, juntamente com a banda Zawajus, esta que anima muitas festinhas de formatura e afins aqui pelos arrededores.

Na primeira metade do espetáculo fiquei insatisfeito: a acústica do CIC continua um tanto menos do que sempre se espera, mas as vozes das dezenas de integrantes do coral simplesmente eram apenas um murmúrio, um white noise, e se ouvia somente a bateria, o baixo, a guitarra e nem o piano do fofo Heller podia-se ouvir. Eu fiquei descontente.

Mas na segunda metade parece-me que equalizaram direito, e foi mais interessante. A interpretação da "Bohemian Rhapsody" do Queen foi muito linda: contando que eles a apresentaram ano passado, este ano ficou muito, muito melhor.

De qualquer forma, eu gostei, achei interessante, mas eu gosto de ouvir um coral ou um grupo vocal pelo o que ele é, mesmo.

Lembrei-me ontem de quando eu cantava num grupo vocal, uns quatro, três anos atrás, não me lembro. Eu não sabia (e ainda não sei) ler partitura, então o baixo cantava tudo para mim (eu era barítono), eu gravava na cabeça e mandava ver. Tenho esta boa memória musical.

Não exagero em nada ao dizer que um dos momentos mais "felizes", mais "completo", mais "banal" da minha vida foi quando, sendo uma música específica ou não, não posso lembrar, estava lá cantando de corpo e alma com todo o pessoal e uma consonância que para mim só poderia ser perfeita tomava conta. Era uma coisa linda.

O meu pequeno quinhão de voz que me cabia apoiado pelas vozes ao meu lado, reverberado, amplificado, vibrando em conjunto, até que a distinção entre a minha voz e a dos outros continua, mas importa pouco, ou de uma maneira diferente.

sexta-feira, 21 de julho de 2006

Terminou hoje a gloriosa semana da SBPC que ocupou a nossa querida federal daqui.

Digo gloriosa, pois foi legal ter a minha universidade, onde passo grande parte do meu tempo ultimamente, cheia de gente de diversos lugares. As pessoas que estão visitando, que vieram de longe (Paraíba e afins, e todo o resto) estavam muito mais felizes do que o pessoal daqui. Turistas (ainda mais cientistas e protocientistas) ficam muito felizes quando estão turistando. Tiram foto de cada arbusto, de cada folha seca à luz do sol da tarde. Senhoras de vestidos grossos sentadas na grama no sol baixo das três horas da tarde.

Uma feira enorme se estendeu perto do prédio do Convivência. Barraquinhas de bugigangas e comidas e mais bugigangas, e o sempre presente cheiro de incenso. Mulheres que vieram da Bahia para vender mandalas feitas de linhas coloridas esticadas numa base de metal. Os eternos gringos que vivem de vender brincos enroladinhos, como gavinhas de uma planta patagônica.

Aproveitei e assisti quatro palestras de graça (não era difícil). A primeira com a "filósofa da corte"; escutei a expressão e, apesar de saber que neste contexto ela é ofensiva, eu gostei; Marilena Chauí, a grande maga do ensino de filosofia para aqueles que nada sabem, como eu, falando sobre utopia. Um texto muito interessante, indo de encontro a um interesse meu de grande data: as distopias literárias modernas. Dois livros que apreciei muitíssimo, e ainda aprecio, foram 1984 e Admirável mundo novo. Eu tenho esta veia para ficção científica, quando na verdade a própria FC se trata de um futurismo, e todo futurismo literário tem seu tantinho de utópico.

Enfim, uma apresentação cheia do que me pareceu de leves indiretas à situação política atual.

Conheci Peter Fry, antropólogo britânico que estuda o "homossexualismo" no Brasil já faz 35. Considerações muito, mas muito interessantes sobre a questão das "paradas gays" e a saúde pública. A Míriam estava com ele também, e falou bem da questão das diferenças entre os objetivos de grupos GLBTSRHLDKAQQ aqui no Brasil e na França.

Conheci a Mara Lago, que apesar de ser daqui e de eu ter lido textos dela, eu ainda não a conhecia. E terminei com uma palestra de um antropólogo, que parecia ser bem conhecido, brasileiro, falando sobre Gregory Bateson.

Pra quem me conhece faz tempo, sabe o quanto eu tenho uma admiração secreta por este cara, o Bateson.

Ah! Eu ia quase me esquecendo que conheci também o Gabriel Cohn, este sim conhecido por aqueles que circulam pelo meio científico, que não é o meu caso, falando sobre "interdisciplinaridade" - que foi este, aliás, o tema do encontro da SBPC este ano, interdisciplinaridade.

Para mim foi muito interessante, e de uma certa forma construtivo, ver, principalmente, todas estas discussões ao meu redor. Não sou, e não pretendo, ser "cientista", mas é neste "mundo", de discussão, que eu vivo e espero fazer a minha vida em termos profissionais.

quinta-feira, 20 de julho de 2006

Então:

Daniel Cravinhos, 25, teve que ser retirado nesta quinta-feira do plenário do 1 Tribunal do Júri de São Paulo, onde acontece o júri do caso Richthofen, durante a leitura das cartas de amor que Suzane von Richthofen, 22, escrevia para ele na época em que os dois namoravam. Em contrapartida, os apelidos, a intimidade e as promessas de amor de Suzane para Daniel arrancaram risos da platéia.

Estes risos, por quê? O que faz uma pessoa rir das palavras de amor de um réu de assassinato?

Senso de justiça?

Senso de ironia?

Negar que um casal de "assassinos" teve tais sentimentos como amor e etcs?

Achei vil. "Entendo", mas achei vil.

terça-feira, 18 de julho de 2006

Ah, o jazz.

Tem dias que só mesmo a Sarah pra estar do meu lado.

Alguém tem que fazer a estatística pra confirmar a minha impressão: as letras de jazz usam tanto o would quanto eu escuto? é would pra cá, would pra cá... it would be nice, it would be good, if i'd, if you'd.

Tem para nós, falantes do português, aquele gostinho do futuro do pretérito, este tempo tão ausente das nossas falas e tão presente nos nossos atos cotidianos: amaria, ficaria, faria, seria...

Ah, este gostinho amargo do futuro do pretérito.