Hoje sonhei novamente com a minha Cidade; nesta noite, era a minha "Paris". Minha cidade dos sonhos, contudo, é somente a Cidade: camaleônica, ela amolda-se à necessidade das invisíveis potestades oníricas, as que urdem a trama dos sonhos que sentam à cabeceira da minha cama.
Algumas vezes a Cidade é um símile distante da cidade natal de minha mãe; naquela - e não nesta - prédios e mais prédios duma arquitetura comum na época do meu nascimento, concreto e vidro espelhado, arcadas de cimento, escadas recobertas de granito, corrimões de aço escovado. Ceisa Cênteres ad infinitum. Galerias de pequenas lojas subterrâneas, onde se encontra de tudo que um citadino de médio porte necessita: pijamas de algodão, video games, empréstimos consignados, passagens de ônibus. As galerias se entrecruzam, as lojas têm portas ao fundo que dão para barraquinhas de suco e empanados, onde se pode subir as escadas e sair novamente para o sol frio. As ruas são somente uma só, uma rua Principal que se cruza e entrecruza dúzias de vezes, onde há o Banco e os Prédios Públicos, com as devidas concessões ao concreto e vidro, e onde na via pública são poucos os passantes. Logo adiante, nova entrada acolhedora para outra caverna subterrânea. O ar fresco e limpo das galerias é reconfortante.
Doutras vezes, a Cidade é a parte central de uma grande metrópole, o meu eixo Paris-São Paulo, sem escalas. Minha "Paris" é a última noite da capital de uma Roma imperial pós-moderna. As ruas - sempre é noite - são iluminadas por aquela velha luz lustrosa das lâmpadas de fósforo. Não há muito trânsito nem muitos carros, apesar das largas avenidas. Amplos bulevares também estão vazios, um tanto enevoados, como os Jardins de Luxemburgo no começo da noite. Elevados verde-oliva, mistura de Minhocão com um velho aqueduto romano, atravessam a Cidade, ligando algum subúrbio desconhecido a outro. As pessoas que estão nas ruas aglomeram-se todas em volta da entrada dos teatros, dos restaurantes e dos bares; todas excelentemente bem-vestidas, todas de maneiras aristocráticas, como a Dama das Baguetes que eu e Vitor encontramos em uma praça pequena e desconhecida no centro da real Paris. De Ouro Preto, a Voluptuosa, cujas volutas barrocas, em sonho, nasciam-me fragosamente da serra mineira, minha Cidade toma as diversas vielas e ladeiras íngremes e labirínticas, daquela pedra vulcânica lustrosa e dura, onde o salto de madeira claqueia e o eco dos desejos é abafado.
Na Cidade Ceisa, eu nunca estou hospedado, nunca tenho guarida. Sou somente um flâneur; o sol nunca se põe, e o dia é comercial, mesmo quando parece feriado. Algumas vezes o comércio fecha, e ficamos somente eu e as fechadas modestas num eterno domingo pós-prandial. Na minha Paris, o sol nunca se levanta, e é sempre uma sexta-feira de noite; lá eu fico - moro, possuo? - num pequeno flat de pé-direito alto, velhas portas de pesada madeira, como a pesada madeira dos tacos no chão, e mimosos azulejos na cozinha e banheiro. Algumas vezes eu sou visitante e sou hospedado por alguém - e neste caso o flat ainda é o mesmo, mas assume um ar mais impessoal de quarto de hotel 4 estrelas.
Em alguns sonhos é aurora ou crepúsculo, mas estou em outro lugar. Minha Paris onírica possui, a umas três ou quatro quadras do meu flat - estou bem localizado - um grande Teatro, uma magnífica Casa de Cultura que, ao mesmo tempo, porém, é uma Catedral e um Forte militar-religioso. Algumas vezes ela está em cima de uma pequena, mas imponente, colina, e em outras, ao contrário, está em um baixio. Durante a eterna-enquanto-dura noite o Teatro-Museu fulgura, convidativo, na cálida luz alaranjada; um grande Evento ali acontece, de onde todos saem, enlevados, para beber, dançar e conversar empolgadamente na esquina de sua escolha. Há ocasiões, porém, em que estou a subir a colina, que se torna ainda mais íngreme e rochosa, e o céu violáceo, de nuvens bem definidas, me avisa que o sol não está muito longe. Percebo então que um mar calmo, mas em movimento, agita e lambe a pedra, acizentada e já um pouco gasta pelo constante roçar; algas escuras e pequenos mariscos ressecam ao ar. Chego a uma esplanada de pedra, onde se apóiam os contrafortes da Catedral-Forte, onde se escoram algumas pessoas escuras, pequenas e silenciosas. Dou a volta e encontro a entrada, não guardada. Sei que há um ofício a acontecer lá dentro, e sei que faço parte, mas não tenho ideia do que se trata.
0 comentários:
Postar um comentário