Edmond Blattchen – André Comte-Sponville, em Une éducation philosophique
[Uma educação filosófica], bem no início, o senhor diz, a propósito de Deus: “Sua existência, em seguida sua inexistência, sempre foi para mim a questão principal”. Existência primeiro, inexistência em seguida? Como se deu, para o senhor, a passagem da fé ao ateísmo?
André Comte-Sponville – É evidentemente a questão principal. Toda a nossa vida muda, parece-me, ao menos na sua primeira parte – creio que é menos verdade no fim do caminho -, mas toda a nossa vida parece primeiro mudar conforme acreditemos ou não em Deus. Ou seja, conforme creiamos ou não que a verdade está do lado de nossos sonhos, que a verdade está do lado de nossas esperanças.
No fundo, o que é crer em Deus? Crer em Deus é crer que o essencial de nossos desejos, de nossos desejos mais fortes, será satisfeito, ou até mesmo já está satisfeito. O que desejamos, no fundo, acima de tudo? Não morrer, reencontrar aqueles que perdemos, ser amados... E o que nos diz a religião? Que não morreremos, ou não verdadeiramente, que vamos ressuscitar; que reencontraremos aqueles que amamos e perdemos; enfim, que somos amados para além de toda a esperança. Como gostaria que isso fosse verdade! O senhor me pergunta: “Como passou da fé ao ateísmo?” Bem, passei da fé ao ateísmo passando da esperança ao desespero.
Não é a escolha mais fácil. O senhor escreve em Le mythe d’Icare [O mito de Icaro]: “O difícil é ser só, sem deus, sem amigo, sem amor. O ateísmo é difícil”. O senhor optou pela dificuldade?
Sim, porque é difícil renunciar às esperanças. Porque é difícil afrontar o que há de desesperador na condição humana. E ainda mais quanto se renuncia àquilo que chamo de “religiões de substituição”, ou seja, essas outras esperanças que serviram durante um tempo de ersatz de religião. E, em minha biografia, como o senhor evocou, há o que se chama hoje de “messianismo marxista”, ou seja, uma esperança, valendo, é certo, para esta Terra, uma esperança imanente, como diriam os filósofos, mas que tinha, em contrapartida, todos os caracteres do absolutismo religioso.
Uma vez que renunciei à fé, à esperança religiosa propriamente dita e também às esperanças messiânicas que entrevira no marxismo ou no comunismo, encontrei-me só e nu, como diz Sócrates. Ou seja, ante a vida tal como ela é. Mas não creia que escolhi o desespero por gosto pela tristeza; é exatamente o contrario. Um psicanalista me escreveu, quando saiu meu primeiro livro, que apreciava seu conteúdo “porque”, dizia ele, “como psicanalista, como terapeuta, constato que a esperança é a principal causa de suicídio”. Por quê? Porque se comete suicídio sobretudo por decepção. Em outras palavras, é muito bonito esperar isto ou aquilo, seja para esta vida seja para uma outra; mas, é preciso constatá-lo, a vida não deixa de continuar! A vida como ela é: a vida real.
Ora, o que eu constato (mas como todo mundo, me parece) é que a vida, no fundo, é decepcionante. Porque ela não corresponde às nossas esperanças. De forma que, diante das decepções que a vida não cessa de lhes infringir, muitas pessoas julgam que, se a vida não satisfaz suas esperanças, é a vida que não tem razão! E fecham-se assim vivos na amargura e no ressentimento...
Donde a escolha, de algum modo filosófica, do que se chama materialismo. Poderíamos talvez explicar o que Lenin chamava de “a linha de Demócrito”.
Sim. A escolha do materialismo é justamente esta: em vez de dizer “Se a vida não responde às minhas esperanças, é a vida que não tem razão”, diremos “A vida faz o que ela pode!”, “A vida é pegar ou largar”. Pois não há nada mais.
O real é pegar ou largar. São minhas esperanças que, desde o início, são infundadas. Cessemos de sonhar a vida, cessemos de esperar viver... e vivamos! A linha de Demócrito, como efetivamente dizia Lenin para caracterizar o materialismo, é primeiro este movimento que consiste em escolher o mundo real, este aqui, esse mundo material (donde a palavra materialismo), que consiste em pensar que não há outra vida senão esta, corporal, material; que não há nada a esperar da morte; que não há esperança última. Mas que, neste espaço, neste mundo, nesta vida, pode-se atingir o prazer, aquilo que é a experiência de todos nós, cotidiana; pode-se atingir a alegria; pode-se atingir a felicidade.
E o que diz a tradição filosófica da qual parti, a tradição materialista com Demócrito, com Epicuro, a tradição racionalista com Espinosa, é que se pode encontrar nesta vida, bem mais do que nas esperanças religiosas, os meios para atingir uma plenitude de paz, uma plenitude de felicidade, o que Espinosa chama “a beatitude”; donde o titulo de meu livro, que o senhor evocava há pouco, Tratado do desespero e da beatitude. Não se tratava, ao meu ver, de dizer que era preciso escolher entre o desespero e a beatitude, mas, pelo contrário, que não se teria um sem o outro. É como as duas faces da mesma moeda: só teremos felicidade na proporção do desespero que formos capazes de suportar.
“O materialismo”, escreve o senhor, “mesmo não sendo sempre ateu, é inseparável da critica da religião.” É preciso dizer que, em Une education philosophique (1989), o senhor não poupa criticas com respeito à religião. Num capítulo intitulado “A moral desesperadamente”, o senhor escreve: “A religião é uma ilusão; pior, uma covardia e uma renegaçao”. É, portanto, um erro. É uma afirmação bastante forte!
Sim, é forte. Mas, aí, seria preciso detalhar um pouco mais. Por que “uma ilusão”? Parti do texto de Freud, O futuro de uma ilusão, em que ele explica que uma ilusão não é a mesma coisa que um erro, não é forçosamente um erro. Quando digo que a religião é uma ilusão, isso não quer dizer Deus não existe, mesmo que, é claro, seja o que eu creio. “Uma ilusão”, diz Freud, “é um pensamento derivado dos desejos humanos.” Ter ilusões, como se diz, é crer verdadeiro o que se deseja, crer verdadeiro o que se espera. Em outras palavras, familiarmente: tomar os seus desejos pela realidade.
Que desejamos nós? Não morrer, ser amados. E o que nos diz a religião? Que não morreremos, que somos amados para além de toda a esperança... Portanto, a religião é uma ilusão por ser um pensamento derivado não de um saber – pois é evidente que não há saber de Deus -, mas de nossos desejos! É, portanto, uma ilusão: crer em Deus é tomar os seus desejos pela realidade. Eis o primeiro ponto.
Por que, segundo ponto, uma covardia ou uma renegação? Porque, parece-me, ser religioso é considerar que a verdade já é conhecida, visto que é revelada. É, portanto, submeter a liberdade de seu espírito a um corpo de doutrinas já constituído, independentemente de todo exame.
E é verdade que neste sentido, como intelectual, como racionalista, como livre-pensador (não no sentido dogmático ou estreito que a palavra tem às vezes, mas no sentido literal), recuso submeter meu pensamento, antes de exame, a verdades pretensamente reveladas, quaisquer que sejam. Recuso tanto os dogmas quanto as promessas.
É a famosa frase de Renan!
“É possível que a verdade seja triste.” É nesta que está pensando? Sim, é possível que a verdade seja triste.
Em outras palavras, quando tento ver o que pode ser a verdade – não a conheço mais do que os outros, mas, como todos, tento ver qual é a verdade mais provável, o que me parece verdadeiro -, não devo levar em conta minhas esperanças. Nada prova que a verdade corresponde ao que espero.
Se eu devesse escolher em função das minhas esperanças, creia que preferiria que Deus existisse. Se só dependesse de mim!... Mas a esperança não é um argumento. E é isso que significa o ateísmo.
Enfim, a “renegação”?
A renegação, justamente, porque é renegar essa liberdade de espírito, é renunciar a esse poder, e a esse dever, de livre exame.
Depois, terceiro ponto, é também aceitar o horror. Aceitar o horror, pois o mundo tal como o conhecemos, a vida tal como a conhecemos, não são globalmente atrozes, mas comportam atrocidades. Há males pelos quais os homens são responsáveis, como as guerras ou a injustiça, mas há muitos horrores pelos quais eles não são responsáveis: os cataclismos, as doenças, o sofrimento das crianças...
Como, diante de uma criança que sofre, diante de uma criança que morre, diante da mãe dessa criança, como ousar celebrar a bondade e a onipotência de Deus ou as maravilhas de sua criação? Crer em Deus, crer num Deus ao mesmo tempo bom e onipotente, é tolerar o intolerável! É o que chamo de covardia: aceitar o inaceitável. É violar, parece-me, o dever de compaixão, de solidariedade, para com aqueles que estão no horror, com aqueles que enfrentam a atrocidade. Aqui, sinto-me próximo de meu mestre Marcel Conche. Ninguém, diante de uma criança que sofre e que morre, ninguém, diante da mãe desta criança, ousaria dizer: “O mundo é maravilhoso”; ninguém ousaria dizer: “Este mundo foi criado por um Deus bom e onipotente”. Pois bem, o que não se pode dizer perante uma criança que sofre, não se deve jamais dizer, jamais, porque há sempre em algum lugar crianças que sofrem de forma atroz. Não vamos transigir com o horror!
Comte-Sponville, Andre. O alegre desespero. Sao Paulo: Editora UNESP, 2002.
(esperando que o copirraite nao me impeça de compartilhar sem fins lucrativos...)