Aproveitando o ensejo trazido pela homofonia da língua japonesa, compartilho um trechinho de Leminski, Paulo, o escritor e poeta brasileiro que primeiro conheceu - no sentido bíblico - os haiku japoneses - e percebeu a agudo e contundente sentimento em muitos deles, a ávida discrepância, a tolerante espera, a incongruência vívida. Em suas palavras: "não, o haikai de Bashô não é a fotografia adocicada de um lótus flutuando no velho tanque de um mosteiro".
***
tako tsubo ya
hakanaki yume wo
natsu no tsuki
蛸壺や
はかなき夢を
夏の月
A Bashô, este haikai pintou, quando num barco, na baía de Akáshi. Diz, mais ou menos:
a armadilha do polvo,
sonhos flutuantes,
lua de verão
O poeta, no barco, olha a água noturna e vê no fundo os cestos de bambu, onde os pescadores apanham polvos, atraídos pela luz das tochas: a boca das cestas tem pontas de bambu aguçadas, de modo que o bicho pode entrar mas não sair.
Os "sonhos flutuantes" ("hakanáki yumê") guardam relação com os reflexos das tochas na água trêmula, onde se reflete a lua amarela (ou quase vermelha) do verão.
Misteriosos parentescos entre os polvos que entram na armadilha, os sonhos que flutuam e os reflexos da lua: todas estas coisas parecem pertencer a um mundo irreal, subaquático, onírico.
No original japonês, uma estranheza de linguagem, que ainda carrega mais os milagres da cena. A partícula "wo", depois de "hakanáki yumê", sonhos flutuantes, indica, em japonês, que a expressão é o objeto direto de um verbo. Qual o verbo? O original não diz. Nem qual o sujeito. Quem faz o quê com os sonhos flutuantes? Arrisco a versão:
polvos na armadilha
sonhos pululam
a lua vermelha
"Flutuantes" não dá conta, plenamente, do japonês "hakanáki", verdadeira onomatopéia visual, imitativa do movimento de oscilação das águas. Algo como um zigue-zague. Um treme-treme. Um tremelique. Um quase-quase. A forma é simples. A intuição é barroca.
A tessitura sonora e silábica do haikai é rica de anagramas, tranças de sons que se entrelaçam. A sílaba "tsu" está em "armadilha" ("tsubo"), em verão ("natsu") e em "lua" ("tsuki"). "Hakanáki" quase rima com "nátsu".
Em "hakanáki", um japonês pode enxergar ainda, ainda, uma aparição do verbo "chorar", "náku", reforçando o clima aquático. "Hakanáki" compõe-se de dois ideogramas: "fruto" + "não" + "sem fruto".
"Hakanáki yumê", portanto é, literalmente, "sonho sem fruto".
Paulo Leminski. Vida: Cruz e Souza, Bashô, Jesus, Trotski. Porto Alegre: Sulina, 1998.
***
Haicai composto em 1688, durante a observação da pesca de polvos em Akashi, atualmente uma cidade da província de Hyogo. Potes de barro são submersos na água à noite, presos por cordas. Os polvos, tomando-os por abrigos seguros, neles se introduzem, permitindo sua captura. Por outro lado, as horas de sono do verão são curtas, tornando ainda mais efêmeros os sonhos. Será Bashô que sonha ou é o polvo, satisfeito com a tranqüilidade ilusória de seu pequeno mundo, ignorante do destino que o aguarda ao amanhecer? Na tradição poética, quem normalmente lamenta as poucas horas escuras do verão são os casais de amantes, que devem se separar na alvorada. Ao trocar esse sentimento romântico pela vida de um polvo, Bashô entra no campo do humor, característica da poesia de haikai. Entretanto, não sentimos vontade de rir. Ao contrário, somos tomados por grande compaixão pelo ser que, ao final de seu sonho, encontrará a morte. A lua que brilha sobre o polvo e seu pote é, afinal, a mesma que brilha sobre o homem e sua existência, tão fugaz quanto um sonho. O kigo é natsu no tsuki, lua de verão.
0 comentários:
Postar um comentário