Eu cresci, a minha infância, no sul da ilha, no bairro do aeroporto, Carianos. O aeroporto não era internacional: era mais um galpão de concreto com uma pista, que se conectava por caminhos misteriosos com a base aérea da aeronáutica. Um dos finais da rua (que depois virou avenida) Diomício Freitas era, justamente, num portão - uma guarita - que separava o "bairro dos oficiais" do restante da população civil. Havia uma certa rivalidade entre quem era filho de oficial militar e quem não o era, alimentado pelo esnobismo inocente.
Meu pai, por ser o dono da farmácia do bairro, tinha o crachazinho para passar pela guarita e adentrar na base aérea. Quando eu ia tomar banho na Tapera - uma praia pequena, de areia muito grossa e água parada como uma poça, cheia de medusas - eu ia por ali. Começavam logo as casas, todas semelhantes, dos oficiais; logo depois terminava esta aglomeração e a estrada continuava durante muito tempo, cercada dos dois lados pelo mato. De vez em quando via-se uma clareira que seguia em linha reta por dentro do mato, onde antenas baixas e parrudas se alinhavam em intervalos regulares. Mais a frente, uma elevação retangular, verde de grama, abrigava uma piscina onde se era tratado o esgoto. Logo depois, a estrada fazia uma curva e descobertava-se então o mar, uma pequena praia da mesma areia grossa da Tapera, um pouco mais agitada por causa do vento sul soprando. Praia deserta, não se podia tomar banho - ou ao menos as pessoas não o faziam. Propriedade da BASF. Um trapichão se debruçava sobre o mar. Uma das primeiras fotos que eu tirei - com uma câmera pequena, que tirava ainda fotos quadradas - foi de lá. Eu tinha visto uma baleia espanando o rabo na água. Corri e tirei uma foto; não me lembro de onde veio a câmera. Jurava ter enquadrado a cena: engano meu. Na foto, somente o mar de várias ondas pequenas do vento sul.
Um sentimento maravilhoso: aquele mar, aquele vento, aquele sol, aquela tranquilidade. Quase nenhuma pessoa. Eu catava conchas, nas poucas vezes em que ia para lá, e trazia montes delas para casa. Elas fediam dentro de uma sacola, o cheiro de mar podre, até que pai ou mãe resolviam jogar fora, para a minha insatisfação: eu apenas não tinha decidido o que fazer com elas. Colocava muitas de molho em um balde com um pouco de sabão, para tirar a lembrança molhada do mar. Muitas estavam quebradas, ou lascadas nas beiradas. Muitas eram muito velhas: assim o supunha, por ser que pareciam como pedra-pomes, cheias de bolhas e buraquinhos, prestes a se esfarelar e se dissolver na água. Outras, eram brilhantes, peroladas, como unhas esmaltadas. Algumas tinham um preto como ébano laqueado; outras eram brancas como osso.
Eu me lembro, quando eu cortei o pulso em um acidente aqui mesmo, na porta do prédio onde moro, que eu vi de relance o osso do meu punho. Era uma cor de pérola, um branco perolado, lindo. Muitas conchas eram assim.
Para entrar no meu bairro de infância, era preciso - e ainda o é - atravessar um espaço só de mato e mangue. Você vai pela Costeira, e em vez de pegar para o Sul-propriamente-dito (Rio Vermelho, Campeche, etc), vai para o aeroporto. Passa a ponte, de onde se tem uma vista bonita da Hercílio Luz brilhando de noite, e um breve espaço sem nada construído, a não ser a estrada e uma cerca alta, tem de ser percorrido antes que o Carianos comece a surgir aos poucos. A primeira vista é a vista do estádio de futebol da Ressacada. Quando eu era pequeno, a estrada era baixa e, quando a maré estava alta, a água do mar tomava a pista, saindo do mangue e do rio ali pertinho. Muitos carros ficavam sem poder seguir em frente; outros modelos o motor aguentava melhor. Este problema não existe mais, pois elevaram a altura da pista. Foi assim, contudo, que eu aprendi sobre este segredo incrível das marés, da forma mais prática possível para mim.
Mas eu comecei a escrever para falar de outra coisa. Comecei e fui por outros caminhos, ou por outro caminho, o caminho da "memória"... Eu cresci no sul da ilha, e conheci razoavelmente as praias da região. Tenho as minhas preferências, a até hoje gosto muito mais das praias do sul, de mar bravio e azul-escuro, açoitadas continuamente pelo vento sul, do que as paradas águas das praias do norte - as praias conhecidas do norte, claro. Santinho é uma exceção, e Moçambique, bem, ainda não tive coragem de conhecer a maior praia. Andei em vários costões, e muitas vezes encontrava grandes pedras, de uma pedra meio avermelhada, cor de ferrugem, com pequenas depressões. Muitas eram como se fossem pratos talhados na rocha: buraquinhos redondos, bem rasos, do tamanho de um prato cotidiano, um tanto maior. Haviam também, em menor quantidade, talhos profundos ou rasos. Eu sempre me perguntei, e perguntava aos adultos ao meu redor, o que eram aquilo: intuía que não era nada natural, embora não ficasse tão surpreso se alguém me dissesse que eram naturais. Mas a mim me pareciam coisa humana. Pensava se não seria gente mais antiga e mais rude, pescadores também, que utilizariam as pedras - e seus curiosos entalhes - para limpar peixe, talvez? Não sabia, e ninguém podia me dizer o que era.
Leio hoje num jornaleco, então, o projeto para colocar placas perto destas pedras, na Barra da Lagoa, informando do que elas serviram: oficinas líticas, ou "bacias de polimento", assim o dizem, onde os povos pré-históricos e indígenas da Ilha poliam e afiavam seus utensílios, armas e ferramentas. E lá estava a foto de uma dessas pedras, tão claras na minha lembrança. Na Barra tem algumas, uma, se não me engano, na beira mesmo do canal, perto de onde a criançada pula na água. É bom que se conte a história: as coisas ficam mais interessantes. Se bem que eu ainda ache que ficaria mais interessante sem placas, sendo contada por um manezinho...
Meu pai, por ser o dono da farmácia do bairro, tinha o crachazinho para passar pela guarita e adentrar na base aérea. Quando eu ia tomar banho na Tapera - uma praia pequena, de areia muito grossa e água parada como uma poça, cheia de medusas - eu ia por ali. Começavam logo as casas, todas semelhantes, dos oficiais; logo depois terminava esta aglomeração e a estrada continuava durante muito tempo, cercada dos dois lados pelo mato. De vez em quando via-se uma clareira que seguia em linha reta por dentro do mato, onde antenas baixas e parrudas se alinhavam em intervalos regulares. Mais a frente, uma elevação retangular, verde de grama, abrigava uma piscina onde se era tratado o esgoto. Logo depois, a estrada fazia uma curva e descobertava-se então o mar, uma pequena praia da mesma areia grossa da Tapera, um pouco mais agitada por causa do vento sul soprando. Praia deserta, não se podia tomar banho - ou ao menos as pessoas não o faziam. Propriedade da BASF. Um trapichão se debruçava sobre o mar. Uma das primeiras fotos que eu tirei - com uma câmera pequena, que tirava ainda fotos quadradas - foi de lá. Eu tinha visto uma baleia espanando o rabo na água. Corri e tirei uma foto; não me lembro de onde veio a câmera. Jurava ter enquadrado a cena: engano meu. Na foto, somente o mar de várias ondas pequenas do vento sul.
Um sentimento maravilhoso: aquele mar, aquele vento, aquele sol, aquela tranquilidade. Quase nenhuma pessoa. Eu catava conchas, nas poucas vezes em que ia para lá, e trazia montes delas para casa. Elas fediam dentro de uma sacola, o cheiro de mar podre, até que pai ou mãe resolviam jogar fora, para a minha insatisfação: eu apenas não tinha decidido o que fazer com elas. Colocava muitas de molho em um balde com um pouco de sabão, para tirar a lembrança molhada do mar. Muitas estavam quebradas, ou lascadas nas beiradas. Muitas eram muito velhas: assim o supunha, por ser que pareciam como pedra-pomes, cheias de bolhas e buraquinhos, prestes a se esfarelar e se dissolver na água. Outras, eram brilhantes, peroladas, como unhas esmaltadas. Algumas tinham um preto como ébano laqueado; outras eram brancas como osso.
Eu me lembro, quando eu cortei o pulso em um acidente aqui mesmo, na porta do prédio onde moro, que eu vi de relance o osso do meu punho. Era uma cor de pérola, um branco perolado, lindo. Muitas conchas eram assim.
Para entrar no meu bairro de infância, era preciso - e ainda o é - atravessar um espaço só de mato e mangue. Você vai pela Costeira, e em vez de pegar para o Sul-propriamente-dito (Rio Vermelho, Campeche, etc), vai para o aeroporto. Passa a ponte, de onde se tem uma vista bonita da Hercílio Luz brilhando de noite, e um breve espaço sem nada construído, a não ser a estrada e uma cerca alta, tem de ser percorrido antes que o Carianos comece a surgir aos poucos. A primeira vista é a vista do estádio de futebol da Ressacada. Quando eu era pequeno, a estrada era baixa e, quando a maré estava alta, a água do mar tomava a pista, saindo do mangue e do rio ali pertinho. Muitos carros ficavam sem poder seguir em frente; outros modelos o motor aguentava melhor. Este problema não existe mais, pois elevaram a altura da pista. Foi assim, contudo, que eu aprendi sobre este segredo incrível das marés, da forma mais prática possível para mim.
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Mas eu comecei a escrever para falar de outra coisa. Comecei e fui por outros caminhos, ou por outro caminho, o caminho da "memória"... Eu cresci no sul da ilha, e conheci razoavelmente as praias da região. Tenho as minhas preferências, a até hoje gosto muito mais das praias do sul, de mar bravio e azul-escuro, açoitadas continuamente pelo vento sul, do que as paradas águas das praias do norte - as praias conhecidas do norte, claro. Santinho é uma exceção, e Moçambique, bem, ainda não tive coragem de conhecer a maior praia. Andei em vários costões, e muitas vezes encontrava grandes pedras, de uma pedra meio avermelhada, cor de ferrugem, com pequenas depressões. Muitas eram como se fossem pratos talhados na rocha: buraquinhos redondos, bem rasos, do tamanho de um prato cotidiano, um tanto maior. Haviam também, em menor quantidade, talhos profundos ou rasos. Eu sempre me perguntei, e perguntava aos adultos ao meu redor, o que eram aquilo: intuía que não era nada natural, embora não ficasse tão surpreso se alguém me dissesse que eram naturais. Mas a mim me pareciam coisa humana. Pensava se não seria gente mais antiga e mais rude, pescadores também, que utilizariam as pedras - e seus curiosos entalhes - para limpar peixe, talvez? Não sabia, e ninguém podia me dizer o que era.
Leio hoje num jornaleco, então, o projeto para colocar placas perto destas pedras, na Barra da Lagoa, informando do que elas serviram: oficinas líticas, ou "bacias de polimento", assim o dizem, onde os povos pré-históricos e indígenas da Ilha poliam e afiavam seus utensílios, armas e ferramentas. E lá estava a foto de uma dessas pedras, tão claras na minha lembrança. Na Barra tem algumas, uma, se não me engano, na beira mesmo do canal, perto de onde a criançada pula na água. É bom que se conte a história: as coisas ficam mais interessantes. Se bem que eu ainda ache que ficaria mais interessante sem placas, sendo contada por um manezinho...
1 comentários:
Gostei desse post. Você se lembra tão bem da sua infância que contou tudo nos mínimos detalhes. Também sou assim: não gosto de deixar escapar um detalhe sequer e já deixei de publicar alguns posts por isso.
Agora sobre o Sul da Ilha em si, nunca fui lá para saber, mas é interessante saber que você ama esse lugar. =)
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