É sabido por alguns que meus primeiros meses de vida foram passados em Cachoeiro de Itapemirim, ES. Lá eu nasci, e por lá eu fiquei até que meus pais me trouxessem para esta cidade que aprendi a amar, Florianópolis.
Felizmente, pois o calor capixaba derretia lentamente os meus neurônios caucasianos, como pude (re)comprovar nesta última semana.
Visitando a família e uma avó em vetusta idade, a oportunidade de rever os meus parentes paternos, a dinâmica familiar um tanto quanto... diferente, para não dizer barulhenta e caótica, como as ruas da cidade. Quase ladeiras de mão única, as ruas de Cachoeiro se cruzam e descruzam em um labirinto irreconhecível, a não ser que o cauto visitante tenha sua Ariadne ao lado.
Casas e mais feias casas, caixas de tijolo ocre das fartas olarias da região, amontoam-se sobre os vários morrinhos que se elevam do baixio do rio Itapemirim. O povo moreno, apesar de suar e reclamar do calor, sobe e desce tais ruas e morros como formiguinhas, sob o sol a pino. A luz é abundamente amarela; as árvores têm folhas de um verde mais claro que as de cá. Ou é ilusão de olhos mal-acostumados, ou não se precisa de tanta clorofila assim.
Tal cenário repete-se quando se adentra para o interior do estado. As mesmas casas/caixas de tijolo, o mesmo verde pálido, a mesma terra salmão, poeirenta e brilhante na luz do sol.
Fui pegar o avião em Vitória e, para isto, tive que pegar um ônibus que atravessaria uns quatro ou cinco municípios no caminho. Janelas abertas, para deixar adentrar o vento refrescante. O cheiro de mato sumarento, o cheiro que primeiro me recepcionou em Cachoeiro, acompanha-nos durante toda a viagem - que foi, na verdade, uma grande rememoração de cheiros primevos. Se são primevos na minha memória, ou na suposta memória compartilhada, não o sei dizer.
Mato, pedra, terra, bosta de vaca, café, seiva, suave futum humano; o calor aumenta exponencialmente os cheiros de um lugar. A lição aprendida e compartilhada em Manaus - na metade de Manaus sem ar-condicionado, por favor, que são duas cidades divididas por um simples aparelho - foi relembrada no ônibus. Eu, o alemãozinho, não escapei do meu próprio futum, mais azedo e coalhado. Militares de farda e colete, rapazes de camisa social, mulheres de braços firmes e saias de tecido sintético, homens velhos e precavidos de calça de linho fino, camisa idem, bonés patrocinados por companias de combustível fóssil na cabeça, ninguém escapou de molhar fartamente os bancos com aquele valoroso suor que refresca.
Você sabia que o suor é praticamente urina mais diluída? Então. Em outras palavras mijamos nos bancos, o que explica o leve cheiro que permanece nas roupas depois. Quantas noites mijei na cama quando criança... e o colchão molhado, colocado no sol do quintal para secar, cheira diferente. Mas divago.
Invejava as pessoas dos pequenos lugares por onde passamos, que não precisavam se enfurnar em uma caixa de metal e plástico sob um sol de meio-dia, antes descansando sem camisa nas generosas sombras das árvores. Repetia comigo mesmo que "calor não combina com civilização", ecoando uma das teorias racistas em voga muitos anos atrás.
Antes, porém, que me acusem do mesmo, deixo claro que realmente acho que "civilização" - num modelo americano-europeu, que é o que temos - não combina com calor. Não dá. Quer dizer, sem ar-condicionado. Com ele, dá, por motivos óbvios. Mas é tudo ranço meu, mesmo, criaturinha frágil e branca que sofre mais com o calor do que seus colegas mais adaptados. Eu tinha um amigo, moreno, que dizia que quando o sol saía ele se alegrava, independente do calor, e quando se escondia ele se entristecia. Temos que tomar isto em conta, seja um fator racial ou qualquer outro.
Evidente que tive de abdicar um pouco da minha certeza quando descobri, depois, que Iconha é o município brasileiro com maior proporção de caminhões e carretas por habitante. - o que pude comprovar passando por um dos restaurantes dedicados a estes motoristas incansáveis. Não admira. Iconha não é a terra da pamonha, mas a terra de banana e café. Bananeiras e cafeeiros convivem, pacificamente, lado a lado, ora disputando os lugares altos e baixos. Tentei, intuitivamente, sacar alguma regra pragmática de localização das mudas, com pouco sucesso. Ora eram bananeiras, ora cafeeiros. Em alguns lugares morros e demais morros eram tomados por hordas de bananeiras quase fluorescentes. Barraquinhas de madeira improvisadas vendiam, na beira da estrada, cachos apinhados de bananas-da-terra, maravilhosas de se cozer como batatas e comer, ainda na casca.
Vi estas cenas muitas vezes, quando íamos, de carro - loucura paterna - visitar Cachoeiro.
Outras cenas mereciam ter sido registradas e enviadas para o Concurso de Fotos do Terceiro Mundo de Düsseldorf, ganhando o vigésimo-sétimo lugar. Como aquela, de um conglomerado silvestre de casas/caixas baixas, de gente muito pobre para quem levantar uma parede é objetivo de vida, todas exibindo as mesmas antenas parabólicas, apontadas para a mesma direção, como girassóis de metal florescendo de canteiros de tijolos. Algum revendedor de antenas deve ter ganho um bom dinheiro por ali.
Não preciso dizer que descansei a minha câmera por toda o tempo passado fora de casa, seja Sampa ou ES, o que explica e redime o longo texto, sem quaisquer figuras.
Nem tudo são roças quentes, porém, no Espírito Santo. Este estado possui uma diversidade de terrenos e climas que vale a pena explorar. Com apenas uma hora de viagem é possível subir a serra capixaba e encontrar noites mais frescas, como eu fiz, escapando do inferno. Passei um final de semana num sítio da família. O caminho nos brinda com montes e as gigantescas pedras, quase nuas.
Pedras, por sinal, são outra coisa pela qual o lugar é conhecido. Grandes veios de mármore e granito fazem a riqueza de muitas empresas da região. Pedras se elevam acima dos morros, pedras sustentam os morros. Uma pedra é símbolo da cidade de Cachoeiro, o Pico do Itabira, ou a pica do Itabira, ou whatever.
As pedras também têm cheiros; existe um cheiro característico das pedras. Pedras quentes, pedras frias, secas ou úmidas, porosas ou não. Aquele cheiro de chuva caindo no asfalto quente? Sabe a pedra.
Anos atrás encontrei uma ótima metáfora para falar daqueles bons chocolates, feitos com muito cacau puro, só manteiga, pouco açúcar: chocolates são de pedra, de rocha. O aroma, o cheiro, algo no gosto: é rocha. Incidentalmente uma das maiores indústrias de chocolates brasileira é capixaba, a Garoto - se bem que seus chocolates mais sabem a lama doce. Go figure.
De Cachoeiro, terra onde nasci, Roberto Carlos perdeu a perna, e Rubem Braga relembra a infância comendo frutas, até Vitória, capital do estado. Vitória é parecido com Florianópolis: uma "ilha", na beira do mar, berço de praias, com direito a avenida beiramar com prédios altos e belos. Chegando em vitória senti-me mais em casa, vendo os citadinos com suas modas e diferenças de uma hora de ônibus atrás, quando estávamos no meio da roça.
Faço o check-in, e decido permanecer com a roupa e a sandália do não-tão-longo percurso de ônibus. Relembro as palavras recriminadoras da minha vó, sentados à mesa, eu comendo colheradas de papa de milho: "você vai pegar o avião de bermuda?" Compreendo: pegar avião é como se fosse ir para a missa de domingo. É um evento especial, não se faz todo dia. Há de se vestir bem. Na passagem o código da cidade de Vitória é VIX: em um site de relacionamentos que vasculhei, a fim de testar a vida amorosa capixaba, muitos apelidos terminavam com VIX. Qual estranha ironia que faz com que assuma-se o código de aeroporto da cidade para designar onde se encontra, eu não sei.
Acho que a vida sexual dos comissários de bordo é muito, mas muito mais ampla do que eu pensava.
Felizmente, pois o calor capixaba derretia lentamente os meus neurônios caucasianos, como pude (re)comprovar nesta última semana.
Visitando a família e uma avó em vetusta idade, a oportunidade de rever os meus parentes paternos, a dinâmica familiar um tanto quanto... diferente, para não dizer barulhenta e caótica, como as ruas da cidade. Quase ladeiras de mão única, as ruas de Cachoeiro se cruzam e descruzam em um labirinto irreconhecível, a não ser que o cauto visitante tenha sua Ariadne ao lado.
Casas e mais feias casas, caixas de tijolo ocre das fartas olarias da região, amontoam-se sobre os vários morrinhos que se elevam do baixio do rio Itapemirim. O povo moreno, apesar de suar e reclamar do calor, sobe e desce tais ruas e morros como formiguinhas, sob o sol a pino. A luz é abundamente amarela; as árvores têm folhas de um verde mais claro que as de cá. Ou é ilusão de olhos mal-acostumados, ou não se precisa de tanta clorofila assim.
Tal cenário repete-se quando se adentra para o interior do estado. As mesmas casas/caixas de tijolo, o mesmo verde pálido, a mesma terra salmão, poeirenta e brilhante na luz do sol.
Fui pegar o avião em Vitória e, para isto, tive que pegar um ônibus que atravessaria uns quatro ou cinco municípios no caminho. Janelas abertas, para deixar adentrar o vento refrescante. O cheiro de mato sumarento, o cheiro que primeiro me recepcionou em Cachoeiro, acompanha-nos durante toda a viagem - que foi, na verdade, uma grande rememoração de cheiros primevos. Se são primevos na minha memória, ou na suposta memória compartilhada, não o sei dizer.
Mato, pedra, terra, bosta de vaca, café, seiva, suave futum humano; o calor aumenta exponencialmente os cheiros de um lugar. A lição aprendida e compartilhada em Manaus - na metade de Manaus sem ar-condicionado, por favor, que são duas cidades divididas por um simples aparelho - foi relembrada no ônibus. Eu, o alemãozinho, não escapei do meu próprio futum, mais azedo e coalhado. Militares de farda e colete, rapazes de camisa social, mulheres de braços firmes e saias de tecido sintético, homens velhos e precavidos de calça de linho fino, camisa idem, bonés patrocinados por companias de combustível fóssil na cabeça, ninguém escapou de molhar fartamente os bancos com aquele valoroso suor que refresca.
Você sabia que o suor é praticamente urina mais diluída? Então. Em outras palavras mijamos nos bancos, o que explica o leve cheiro que permanece nas roupas depois. Quantas noites mijei na cama quando criança... e o colchão molhado, colocado no sol do quintal para secar, cheira diferente. Mas divago.
Invejava as pessoas dos pequenos lugares por onde passamos, que não precisavam se enfurnar em uma caixa de metal e plástico sob um sol de meio-dia, antes descansando sem camisa nas generosas sombras das árvores. Repetia comigo mesmo que "calor não combina com civilização", ecoando uma das teorias racistas em voga muitos anos atrás.
Antes, porém, que me acusem do mesmo, deixo claro que realmente acho que "civilização" - num modelo americano-europeu, que é o que temos - não combina com calor. Não dá. Quer dizer, sem ar-condicionado. Com ele, dá, por motivos óbvios. Mas é tudo ranço meu, mesmo, criaturinha frágil e branca que sofre mais com o calor do que seus colegas mais adaptados. Eu tinha um amigo, moreno, que dizia que quando o sol saía ele se alegrava, independente do calor, e quando se escondia ele se entristecia. Temos que tomar isto em conta, seja um fator racial ou qualquer outro.
Evidente que tive de abdicar um pouco da minha certeza quando descobri, depois, que Iconha é o município brasileiro com maior proporção de caminhões e carretas por habitante. - o que pude comprovar passando por um dos restaurantes dedicados a estes motoristas incansáveis. Não admira. Iconha não é a terra da pamonha, mas a terra de banana e café. Bananeiras e cafeeiros convivem, pacificamente, lado a lado, ora disputando os lugares altos e baixos. Tentei, intuitivamente, sacar alguma regra pragmática de localização das mudas, com pouco sucesso. Ora eram bananeiras, ora cafeeiros. Em alguns lugares morros e demais morros eram tomados por hordas de bananeiras quase fluorescentes. Barraquinhas de madeira improvisadas vendiam, na beira da estrada, cachos apinhados de bananas-da-terra, maravilhosas de se cozer como batatas e comer, ainda na casca.
Vi estas cenas muitas vezes, quando íamos, de carro - loucura paterna - visitar Cachoeiro.
Outras cenas mereciam ter sido registradas e enviadas para o Concurso de Fotos do Terceiro Mundo de Düsseldorf, ganhando o vigésimo-sétimo lugar. Como aquela, de um conglomerado silvestre de casas/caixas baixas, de gente muito pobre para quem levantar uma parede é objetivo de vida, todas exibindo as mesmas antenas parabólicas, apontadas para a mesma direção, como girassóis de metal florescendo de canteiros de tijolos. Algum revendedor de antenas deve ter ganho um bom dinheiro por ali.
Não preciso dizer que descansei a minha câmera por toda o tempo passado fora de casa, seja Sampa ou ES, o que explica e redime o longo texto, sem quaisquer figuras.
Nem tudo são roças quentes, porém, no Espírito Santo. Este estado possui uma diversidade de terrenos e climas que vale a pena explorar. Com apenas uma hora de viagem é possível subir a serra capixaba e encontrar noites mais frescas, como eu fiz, escapando do inferno. Passei um final de semana num sítio da família. O caminho nos brinda com montes e as gigantescas pedras, quase nuas.
Pedras, por sinal, são outra coisa pela qual o lugar é conhecido. Grandes veios de mármore e granito fazem a riqueza de muitas empresas da região. Pedras se elevam acima dos morros, pedras sustentam os morros. Uma pedra é símbolo da cidade de Cachoeiro, o Pico do Itabira, ou a pica do Itabira, ou whatever.
As pedras também têm cheiros; existe um cheiro característico das pedras. Pedras quentes, pedras frias, secas ou úmidas, porosas ou não. Aquele cheiro de chuva caindo no asfalto quente? Sabe a pedra.
Anos atrás encontrei uma ótima metáfora para falar daqueles bons chocolates, feitos com muito cacau puro, só manteiga, pouco açúcar: chocolates são de pedra, de rocha. O aroma, o cheiro, algo no gosto: é rocha. Incidentalmente uma das maiores indústrias de chocolates brasileira é capixaba, a Garoto - se bem que seus chocolates mais sabem a lama doce. Go figure.
De Cachoeiro, terra onde nasci, Roberto Carlos perdeu a perna, e Rubem Braga relembra a infância comendo frutas, até Vitória, capital do estado. Vitória é parecido com Florianópolis: uma "ilha", na beira do mar, berço de praias, com direito a avenida beiramar com prédios altos e belos. Chegando em vitória senti-me mais em casa, vendo os citadinos com suas modas e diferenças de uma hora de ônibus atrás, quando estávamos no meio da roça.
Faço o check-in, e decido permanecer com a roupa e a sandália do não-tão-longo percurso de ônibus. Relembro as palavras recriminadoras da minha vó, sentados à mesa, eu comendo colheradas de papa de milho: "você vai pegar o avião de bermuda?" Compreendo: pegar avião é como se fosse ir para a missa de domingo. É um evento especial, não se faz todo dia. Há de se vestir bem. Na passagem o código da cidade de Vitória é VIX: em um site de relacionamentos que vasculhei, a fim de testar a vida amorosa capixaba, muitos apelidos terminavam com VIX. Qual estranha ironia que faz com que assuma-se o código de aeroporto da cidade para designar onde se encontra, eu não sei.
Acho que a vida sexual dos comissários de bordo é muito, mas muito mais ampla do que eu pensava.
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