Temple Grandin é doutora em ciências animais, propõe uma forma mais digna no abate de animais para consumo de carne, e é autista. Conhecida por ser o sétimo caso no maravilhoso livro de Oliver Sacks, Um Antropólogo em Marte - cujo título é uma expressão de Temple, referindo-se como ela se sente com relação às "outras pessoas" - Temple é uma mulher inspiradora: tanto na sua história com autismo, tanto no seu esforço para, a partir de uma percepção diferente dos animais, sugerir e trabalhar em formas menos cruéis de abate. É uma perspectiva que pode não ser ideal, para todos aqueles que querem um "mundo sem matança"; mas, como tal mundo é um ideal - e por muito tempo continuará sendo - é gente como Temple que faz o conjunto de pequenas diferenças que realmente fazem a diferença.
Os trechos abaixo focam-se mais na questão do abate de animais, e no trabalho de Temple. O texto completo é muito mais interessante, como Oliver Sacks reiteradamente os faz ser.
Oliver Sacks, Um antropólogo em Marte. São Paulo, Companhia das Letras, 2006.
"O gato fica perturbado com os mesmos tipos de sons que os autistas - sons agudos, assobios, ou barulhos altos e repentinos; não conseguem se acostumar com eles", Temple me disse. "Mas não se incomodam com barulhos graves e surdos. Ficam perturbados com contrastes visuais muito fortes, sombras e movimentos bruscos. Um leve toque faz com que se afastem, um toque firme os acalma. A maneira como eu me afastava ao ser tocada é igual como a vaca se afasta - acostumar-se a ser tocada é muito parecido com domesticar uma vaca arisca." Foi precisamente sua compreensão da base comum (em termos de sensações e sentimentos fundamentais) entre animais e pessoas que lhe permitiu mostrar tal sensibilidade pelos primeiros, insistindo vigorosamente num tratamento humanizado.
Ela achava ter sido instruída nesse conhecimento em parte pela experiência de seu próprio autismo e em parte por vir de uma longa linhagem de fazendeiros e, quando criança, ter passado tanto tempo em fazendas. Seu próprio modo de pensamento não lhe deixava saída dessas realidades. "Se você é um pensador visual, é fácil se identificar com animais", disse a caminho da fazenda. "Se todos os seus processos de pensamento estão na linguagem, como pode imaginar que o gado pensa? Mas se você pensa em imagens..."
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Ver a vaca sofrendo e ouvir seus mugidos de luto irritaram Temple e fizeram com que sua mente se voltasse para as inumanidades do abate. Não tinha nada a ver com galinhas, ela disse, mas a matança delas era particularmente repugnante. "Quando chega a hora de as galinhas irem para a Terra dos McNuggets, eles pegam-nas, viram-nas de cabeça para baixo e cortam os pescoços." Um agrilhoamento parecido do gado, pendurado de cabeça para baixo para que o sangue possa vir todo para a cabeça antes que cortem seus pescoços, é uma imagem comum em antigos matadouros kosher, ela disse. "Às vezes, quebram as pernas, berram de dor e terror." Graças a Deus, estas práticas estão começando a mudar. Adequadamente executado, "o abate é mais humano que a natureza", ela prosseguiu. "Oito segundos após o pescoço ser cortado, o corpo libera endorfinas: o animal morre sem dor. O mesmo acontece na natureza, quando um carneiro é dilacerado por coiotes. A natureza criou isso para aliviar a dor de um animal à morte." O terrível, tanto mais por ser evitável, segundo ela, é o sofrimento e a crueldade, a introdução do medo e da tensão antes do corte letal; e é o que ela mais se preocupa em evitar. "Quero reformar a indústria da carne. Os militantes querem acabar com ela", disse, e acrescentou: "Não gosto de nada radical, à direita ou à esquerda. Tenho uma antipatia radical pelos radicais."
Longe dos mugidos das vacas e dos bezerros separados, cuja angústia Temple parecia sentir na própria carne, achamos uma área tranquila e silenciosa da fazenda, onde o gado pastava placidamente. Temple se ajoelhou e estendeu a mão com um pouco de feno, e uma vaca se aproximou e o comeu, cutucando sua mão com o focinho macio. Uma expressão suave e feliz tomou o rosto de Temple. "Agora, sinto-me em casa", disse. "Quando estou com o gado, não tem nada a ver com cognição. Sei o que a vaca está sentindo."
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Caminhamos devagar ao longo de uma rampa ligeiramente curva e com paredes altas, por onde o gado passava em fila indiana, alegre em sua inconsciência do que estava por vir, até o choque de um disparo letal. Temple foi uma das pioneiras no desenho dessas rampas, e seu nome está associado, no mercado, com a introdução das calhas em curva. Conforme subíamos a passarela, olhando por cima das paredes da calha, Temple me falou das virtudes especiais dessas rampas, como a curva impedia os animais de ver o que os esperava no final, até estarem bem próximos (evitando assim qualquer apreensão), e, ao mesmo tempo, aproveitando a tendência natural da vaca para andar em círculos. As paredes altas evitavam as distrações perturbadoras e serviam para que o gado se concentrasse em seu caminho.
No alto da rampa, dentro do edifício, os animais eram levados, quase imperceptivelmente, por uma correia rolante que passava sobre suas barrigas (esse "retentor de trilho duplo" era outra inovação de Temple). Algus segundos depois, o animal era morto instantaneamente por um tiro de ar comprimido no cérebro.
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Tive uma sensação de horror quando Temple me mostrou a máquina, mas ela me garantiu que o gado não tinha o menor indício, a menor apreensão, sobre o que lhe esperava; todo o esforço dela, de fato, ia no sentido de eliminar tudo o que pudesse causar terror ou desgaste aos animais, para que pudessem seguir pacífica, dócil e inconscientemente para a morte. Mas eu continuava a sentir náuseas com relação a tudo aquilo. Como será que ela se sentia, como será que os outros se sentiam, trabalhando naqueles lugares?
Temple explorou o assunto e escreveu um artigo clássico sobre o tema. Alguns funcionários de matadouros, ela comenta, desenvolvem rapidamente uma dureza defensiva e passam a matar os animais de uma maneira puramente mecânica: "A pessoa encarregada de matar encara o seu trabalho como se estivesse grampeando caixas numa esteira rolante. Não tem qualquer emoção em relação ao seu ato". Outros, ela mostra, "passam a gostar de matar e [...] atormentam os animais de propósito". Falar dessas atitudes levou o pensamento de Temple a fazer um paralelo: "Vejo uma correlação muito forte", ela disse, "entre a forma como os animais são tratados e os deficientes. [...] O estado da Geórgia é um ninho de cobras - tratam [os deficientes] pior que os animais. [...] Os estados com pena de morte são os que infligem o pior tratamento aos animais e aos deficientes".
Tudo isso deixa Temple apaixonadamente irritada e preocupada com a reforma da humanidade: quer mudar o tratamento dos deficientes, em especial dos autistas, assim como o tratamento dispensado ao gado pela indústria da carne. (A única maneira adequada de matar animais, a única que demonstra respeito pelo animal, segundo Temple, é a via do ritual, ou "sagrada".)
Foi um grande alívio sair do matadouro, para fora daquele cheiro pestilencial que parecia permear cada centímetro do lugar, embrulhando-me o estômago e me obrigando por vezes a segurar a respiração para não vomitar; um imenso alívio, uma vez do lado de fora, poder respirar o ar fresco e puro, não contaminado pelo cheiro de sangue e de vísceras; um imenso alívio, moralmente, afastar-me da idéia da matança. Questionei Temple sobre isso no carro. "Ninguém deve matar animais o tempo todo", ela disse, e me contou que tinha escrito bastante sobre a importância de uma rotatividade de funcionários, para que não ficassem empregados permanentemente no abate, lidando com sangria ou violência. Ela própria precisa de outros ambientes e ocupações, que formam uma parte vital e de modo geral mais prazerosa da sua vida. Sua compreensão da psicologia e do comportamento dos animais de rebanho é requisitada não apenas por fazendas de corte e matadouros pelo mundo afora, mas por tosadores de ovelhas até da Nova Zelândia, e por parques de animais selvagens e jardins zoológicos. Fiquei com a impressão de que ela gostaria de passar um tempo nas estepes africanas, dando consultoria sobre manadas de elefantes e de animais visados como presas, como antílopes e gnus. Mas fiquei na dúvida se conseguiria entender os macacos (que têm certa "teoria da mente") assim como compreende as vacas. Ou os acharia desconcertantes, impenetráveis, da mesma forma que achava as crianças e outros seres humanos? ("Com os animais de fazenda, sinto o comportamento deles", disse posteriormente. "Com os primatas, compreendo suas interações intelectualmente.")
Os sentimentos mais profundos de Temple estão relacionados ao gado; sente uma ternura, uma compaixão por eles que é análoga ao amor. Discorreu longamente sobre isso enquanto nos dirigíamos para nossa próxima parada, uma fazenda de corte - como procurava estabelecer um clima leve ao colocar o gado na calha, transmitir tranquilidade aos animais, trazer-lhes paz nos últimos momentos de suas vidas. Para ela, tratava-se de algo meio físico e meio sagrado acalmar o animal nos últimos momentos de sua vida, e era o que tentava ensinar incessantemente às pessoas que trabalham com as calhas nos matadouros.
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