quinta-feira, 17 de maio de 2007

Fratura exposta na canela

Fui hospitalizado uma vez somente, creio. Talvez duas. Foi quando eu quebrei a minha perna, na metade da canela; tinha eu 13 anos. Fratura exposta: andava de bicicleta no meu bairro de infância, quando eu decido atravessar a rua, defronte à casa do meu pai. Vi um carro ao longe, indo para o aeroporto; talvez ele estivesse indo rápido demais, talvez eu tenha calculado mal. Ficou a primeira versão.

Era uma mulher, dentro do carro, que parou e me socorreu. De qualquer forma, o socorro era o menor problema, pois com a pancada pode-se ouvir lá de trás, onde o meu pai se encontrava com a minha irmã e a namorada dele.

O capô amassou e a minha cabeça bateu no vidro dianteiro, quebrando-o e deixando-o com linhas diversas, como uma teia de aranha. Eu voei aproximadamente quinze metros, indo parar do outro lado da rua.

É uma percepção engraçada: eu me lembro de coisas fragmentadas. Lembro de ver o carro vindo na minha direção, e de saber que ia ser atropelado - sem sentir medo, ou me lamentar. Lembro então de ver, tudo meio preto e branco, cinzento, pouca luminosidade e poucas cores, a minha vista indo do asfalto para o céu para os fios dos postes para o asfalto para o céu para os fios de postes - eu girei no ar umas duas vezes. Então estava no chão. Nenhum baque, nada disso. Simplesmente saí voando e pousei, sem sentir a batida ou o baque no chão. Foi como se eu tivesse levantando vôo e pousado de costas.

Mexi-me devagar. Nada parecia errado. Vi se tinha quebrado os dentes, ou se sentia alguma coisa na cabeça. Percebi que o meu relógio não tinha quebrado. Um tanto automático, sem pensamentos. Levantar-se. Era estranho. Mexi a perna direita: ela se movimentou. Mexi a perna esquerda: algo estava engraçado. Era como se ela não estivesse lá, como se fosse de borracha. Levantei a cabeça e vi o meu calcanhar fazendo um ângulo grave com o resto da canela. E foi então que eu gelei, e gritei alto, sem o saber.

Daí para frente, é só ver o meu pai e o pessoal todo vindo, com olhares assustados e vozes ansiosas. Até hoje tenho uma cicatriz que incomoda um pouco quando se passa a mão, e creio que uma perna ficou maior que outra.

Fiz operação e tive a minha primeira anestesia geral. Um verdadeiro sono sem sonhos.

No momento: não dói, não há medo, não há preocupação. Tudo isto vem depois - depois do quê, exatamente? Esta é uma pergunta muito interessante.

Eu sempre me lembro deste episódio. Sabem por quê? Eu morro de medo de ter dor.

Continua...

terça-feira, 1 de maio de 2007

Meu presente

Completei 24 anos de vida, na semana passada, dia 17.

Ganhei poucos presentes. O que se sucede? Com o passar dos anos, as pessoas dão menos presentes? Sou eu e a minha talvez falsa modéstia em dizer que não precisa de nada, somente a "presença"? Ou é a falsa modéstia dos outros? A situação econômica?

E nem mesmo fui caprichoso em alguns pedidos... me perguntaram o que eu queria, eu respondi: "um abajur", pois preciso de um abajur para meu quarto. Talvez tenha sido somente para demonstrar a intenção de me dar um presente... talvez a própria intenção de me presentear, por si mesma, tenha sido o meu presente. Tempos estranhos, em que nos presenteamos com intenções.

Ainda estou esperando o meu exemplar de "O idiota". Existem outros itens, também, desde 15 reais até a seu rendimento anual. Ainda está em tempo; aproveite.

Mas eu descobri o que eu gostaria muito de me dar de presente. Sim, eu me dar de presente: este papo de presente entra em cena no aniversário, mas todo dia é dia de índio e de presente - uma flor, qualquer coisa. Eu me daria de presente a qualquer dia, este presente. Eu gostaria de ter, sempre do meu lado, um alguém ou algo que me criticasse, com argúcia, inteligência, ironia, finura e firmeza.

Não precisa ter um ar de intelectual e usar óculos de retângulo aro grosso, me olhar por cima e jogar sua torrente ácida; tampouco seria alguém com "experiência", um realista, uma pessoa mais dura e vivida que sabe do que a vida "é feita" e que me puxasse para baixo. Besteira. Nem um tampão, nem um tapado. Podia ser uma pessoa tão estúpida quanto eu; perdida nos mesmos rodeios, um tanto hesitante, um tanto entediada em muitos momentos.

Não, não estou falando de um amor, de um relacionamento. Não, gente, nada disso. Estou falando de um crítico, ou conselheiro, a palavra que melhor lhes descer.

Podia ser um amigo imaginário, uma alucinação, um diálogo interno comigo mesmo. Que diferença faz? Nenhuma, a não ser que se faça na rua e assuste os cavalos. Podia ser um homem jovem, ou uma mulher velha; idoso ou jovem, menos criança - uma criança assim pode me assustar. Um animal também não conviria muito: ia achar muito estranho um animal falante. Pelo menos no começo.

Alguém bem-pensante e bem-falante. Nada de circunlóquios ou preleções; nada de um mestre para me dizer o certo, ou um sacerdote para me contar do errado. Alguém que sabe que critica, mesmo enredado nas mesmas coisas que critica; alguém que sabe que toda firmeza pode ter algo de agressivo, mas somente por um momento; termina-se com um café, depois. Nada de carinhos ou abraços excessivos: eles tendem a atenuar demais os efeitos das palavras.

Eu queria uma outra palavra para atenuar as minhas arestas; uma outra palavra para me tirar um pouco fora daquilo que eu presto tanta atenção: a mim mesmo, à minha miséria e à minha salvação.

Tirar fora não é, simplesmente, esquecer.

Eu queria me levar menos a sério. E isto, muitos devem saber, é facílimo de dizer - e tão complicado para vivenciar.

Este lugar - este lugar que eu delineei e poderia continuar a fazê-lo, embora de fato seja muito simples - é um lugar complicado. Poucas pessoas assumem este lugar. Em sua maioria, amigos, durante pouco tempo, quando não entram naquilo que amigos gostam muito de fazer: fantasiar conjuntamente.

Este lugar é um lugar: não é uma pessoa, ou um título. Como eu falei, pode ser uma alucinação, se for o caso. O problema das alucinações é que elas costumam ser bastante perturbadoras - e isto não tiro da minha experiência pessoal, que é muitíssimo pobre em alucinações.