(versão 1, modificações possíveis, eu tenho pressa...)
Ultimamente tenho sido assombrado - literalmente assombrado, assombreado, soçobrado - por um questionamento cruel. Cruel, e delgado como uma lasca de cristal; a crueldade de uma lasca de cristal que se enterra debaixo da unha.
Onde está a diferença entre desistir e deixar acontecer? Onde está aquela sutil diferença entre desistir de algo - por achar impossível, por não poder mais ir adiante, por quaisquer razão - e a consciência limpa de que algo acabou, de que se tentou, se viveu?
Onde poder confessar que não dá mais, e onde é que esta confissão é uma mentira?
Será que dá para definir esta dúvida? Será que eu sempre sou responsável pelas minhas escolhas?
Nem todas as coisas são possíveis. Há coisas que simplesmente não podemos fazer. Isso não nos mostra que as coisas são impossíveis: há muitas coisas que podemos fazer. É assim que se dividem as coisas, então? Entre possíveis e impossíveis? Mas ora, como haveria de ser assim, se olhamos ao nosso redor e vemos as circunstâncias e a paisagem mudando, de momento a momento. Olhamos para a nossa história e vemos que certas coisas que achávamos impossíveis são possíveis, e outras, que achávamos possíveis, não o são tanto assim... e nada impede que este movimento continue, a colocar os possíveis nos impossíveis e vice-versa.
Estou falando de dois pólos, possível e impossível, mesmo sabendo, como coloquei agorinha acima, que não se trata de estes dois pólos, realmente. Se trata de algo muito, muito mais complicada: a probabilidade.
Mas... onde está a diferença entre desistir e deixar acontecer? Por que se desiste? Quem é que desiste?
Enfim, quem é que vai conviver com o arrependimento?
Afinal, arrependimento existe?
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Ao mesmo tempo, a realidade me bateu com força total, e me lançou de cara no chão.
Somos uma geração que tem medo de realidade, pois achamos que ela não existe por si só. Vivemos nesta posição esquisita de negar uma realidade forte, mas ao mesmo tempo a temos na nossa frente todo o tempo - e sabemos disto.
Creio que não se trata em nada de uma característica destes nossos tempos, esta dialética frente à realidade. Mas os nossos tempos são os primeiros a inventar para si a fantasia de uma realidade "virtual", de várias realidades, de várias facetas. Enquanto que em outras épocas parecia ser mais difícil sair fora da historinha do "real" - a não ser pela via da fantasia desenfreada, pra se dizer assim (romances, céu e inferno, loucura) - a nossa época se compraz e se congratula em colocar para si mesma que a realidade tem o impacto de uma bala de gelo no crânio. Ela pode impactar, mas ao mesmo tempo derrete-se.
Quando eu falo realidade eu não falo somente "do mundo lá fora". Este mundo lá fora, que é ele? Que sou eu, este mundo "aqui dentro"? Realidade pode ser definida, para os meus simples interesses leigos, como aquilo que resta depois de tudo mais, depois de qualquer dissolução do mundo dentro das nossas cabecinhas: a morte é um exemplo de realidade, para se colocar assim. Ou melhor, o saber-se morrer.
A realidade é o lembrete que se tem de fazer alguma coisa, mesmo que não se saiba o quê, ou o porquê.
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Onde desistir, então? Será que toda desistência é uma covardia? Será que devemos mesmo, como Hamlet, tomar de armas frente a um mar de problemas e, opondo-se a eles, extingui-los? Será que é esta a metáfora da vida humana - a da "luta", a da oposição, a da força humana frente aos vendavais que ameaçam extinguir sua tênue e fraca, porém inteligente, centelha de vida?
Ou será que a metáfora é a homérica, os homens como gerações de folhas ao vento, morrendo e caindo, ao capricho de deuses tão caprichosos quanto nós, mas imortais?
Ou será que a metáfora é outra, de um homem numa relação harmônica com os outros e com o seu mundo, encontrando um equilíbrio dinâmico - ou pior, encontrando a entropia?
O que nos espera além das estrelas: o fogo, o gelo, ou uma injeção de graça na testa? Ou o carimbo do Ibama intergalático?
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Eu não vou afirmar que todas as respostas são temporárias (apesar de me parecerem assim), mas se assim são, eu não me admiro. Não vou afirmar que todas as decisões morais e éticas são temporárias, apesar de me parecerem assim, mas se o forem, eu não me admiro. Não vou afirmar: não posso dizer.
Me admiro um pouco, na verdade, a admiração de um cara que gostaria que ao menos uma coisinha ínfima que fosse fosse certa, segura e certeira.
(A morte? Mas quem é que morre? Te contaram? Quem?)
Mas não me admiro no sentido de achar que só é assim, se for, por uma falha humana.
Talvez faça mais sentido - e seja mais engraçado - se pudéssemos pensar que ter certeza seja a maior falha humana de todas. De que, quando alguém chegar e dizer para nós, "eu sei", podemos desconfiar muito dele.
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Vocês entendem? Se seguimos pelo caminho, encontramos nossos inimigos mais ferrenhos. Se não seguimos, não encontramos nada, nem ninguém, e morremos. Se continuamos pelo caminho, encontraremos no mínimo dois rios. Um do nada, e outro do tudo. Não é difícil de ver isto. Não é uma experiência mística. Encontramos dois rios, um do "niilismo", e outro do "eternalismo". Dizem que foram estes os dois rios que Sidarta encontrou, para usar o personagem espiritual com quem tenho mais intimidade. Encontramos o caminho de que nada existe, ou nada é verdadeiro, ou nada permanece, e vivemos com isto. Ou então encontramos o caminho de que algo existe, algo é verdadeiro, algo permanece - para sempre - e vivemos com isto.
Como viver com o primeiro? Já sabemos o que o niilismo sincero e aplicado pode fazer. Todos nós sabemos. O segundo, eternalismo, sabemos também.
Dizem que era esta a discussão que estava em voga 2600 anos atrás, na época de Sidarta: a discussão se existia algo que permanecia para sempre, ou, para colocar em uma palavra, se existia algo que era imutável. Alguns iam pro lado do niilismo e respondiam que não: nada era imutável, nem a mais minúscula das partículas imagináveis. Outros iam pro lado do eternalismo e diziam que sim, que havia algo imutável, mesmo que fosse a mais minúscula das partículas imagináveis.
Não precisamos ir muito longe para entrar nesta discussão: a discussão entre mutável e imutável encontra-se no nosso berço cultural, no nascimento da nossa "filosofia".
E, falando seriamente, não há nada de mais nesta discussão também, pois é um questionamento básico, ao meu ver. Ele continua ininterruptamente até hoje. O importante é perceber que cada um destes posicionamentos leva a uma atitude com relação à vida e morte.
Este questionamento está no âmago da vida cotidiana, da vida de todos nós. Esta AMBIVALÊNCIA está no âmago da vida de todos nós. Não precisa ser dotado para ver: não se trata de misticismo, ou de insight. Este conflito está no âmago da nossa "existência".
Quem eu sou? E nos damos respostas: escolhemos uma opção, muitas vezes mudamos no meio, misturamos um pouco, fazemos uma resposta, e vivemos desta forma.
E eu tenho a impressão de que nenhuma das respostas vai acabar com esta contradição fundamental. O que fazer, então?
Se fosse somente uma questão de responder a uma pergunta, não seria tão foda assim. Afinal, há várias perguntas que não damos a mínima se elas forem respondidas ou não - a não ser, é claro, quando elas se apresentam para nós, quando sim tratamos de resolvê-las (e nem sempre estamos certos de ter dado "A Resposta", mas grande coisa...) Mas esta contradição, ela te incomoda ou não?
Muitas vezes dá vontade de tirar uma faca que está enterrada no meu peito, achando que ela é a causa de tanta confusão, de tanta insatisfação. Mas todos sabemos o que acontece quando tiramos facas enterradas no peito: o sangue brota e jorra com força.
O que fazer? Fazer nada, afinal de contas é tudo um sonho, nada existe em seu sentido mais puro? Tiro ou não tiro?
Quem é que vai tirar a faca? E quando, e onde, e como?