Comprei um tradutor de textos para o meu computador, esta semana passada.
Se me falta a capacidade de traduzir? Creio que não, quando se trata de um pequeno punhado de línguas, línguas que se reduzem a uns dois ou três dedos da minha mão. É que eu tenho o velho ditado italiano na minha cabeça que diz, já traduzido, que o tradutor é um traidor. Traidor do texto original, do autor de outro texto, em outra língua; amante, talvez, do seu texto, da sua autoria por tabela.
Todos os amantes e traidores, de textos ou qualquer outra coisa, crêem que o seu objeto é um elevado do resto, do todo-o-mais. Eu comprei um tradutor de textos por estar ciente da imensa continentalidade das línguas. Primo em um pequeno pedaço da Experiência Falante de todos os homens; com o meu português e demais, eu penso ser o rei do universo em uma casca de noz. E o menino das margens de um lago acinzentado pela nuvem de borrasca no meio do continente africano? Ah, estas línguas todas que eu não sei. Por mais que eu tente casar todas as minhas primas, umas com as outras.
Quem me vendeu foi um velho senhor simpático, de rugas caninas e pêlos felinos. Tresandava àquele sabor único de velhice, não o embolorado. Como pele animal curtida no sol e lavada repetidamente.
Em verdade, ele é o criador do tal método de tradução, ou melhor dizendo, o seu curador, o seu guarda. Como eu vou poder dizer mais abaixo, o M(N)étodo de Tradução é um tanto primoroso. O vendedor de fato foi quem eu imagino ser o filho, ou neto, ou qualquer descendência longa perdida na história de tal senhor. Um jovem bonito, de dentes brancos e saudáveis, e coxas fortes. Sim, um cavalo. Um belo cavalo de raça, um alazão mouro, um puro-sangue mestiço. As olheiras denunciavam o árduo trabalho em converter todo aquele trabalho - até então impresso em tipos elegantes - para um meio digital. Árduo trabalho. Imagino outros tantos quanto ele. Apareceu aqui em casa, a pele como coral, o odor marinho. Muito saudável.
Um tempo atrás, em que a Rede Mundial ainda fosse algo restrito aos militares e aos cientistas, o programa de tradução me tomaria muito espaço. Muito espaço. Nada comparado ao que ocupava antes, obviamente, mas se era gigantesco, um parente próximo da biblioteca Borgiana - da qual eu fui um dos únicos a sair vivo, embora não esteja ainda muito certo disto - ao menos era uma só, fisicamente localizável, um belo monumento à traição dos tradutores. A ambição louca daquele velhinho era disponibilizar, para todos aqueles que o quisessem, tal Método de Tradução, em sua própria casa. Com a net, nada mais fácil.
Todos sabemos qual é o grande problema com as traduções digitais: elas não traduzem. Seus algoritmos, por mais bem-construídos que sejam, não simulam o nosso falar. Eles trocam certas palavras por certas palavras, analisam algumas expressões e trocam por outras, embutidas em sua programação por um homem cansado, porém atento. Até mesmo analisam contextualmente, fazem cálculos de probabilidade e sorteiam, da mesma medula que o tal do homem cansado os deu. Um dia, as máquinas vão aprender a falar - se é que não já aprenderam. Talvez uma delas tenha aprendido a falar e nunca mais parou; está trancafiada em um sótão em Viena. Só que os algoritmos não sabem trair. Eles não traduzem.
Meu querido amigo me contou que este problema é fácil de ser solucionado: basta disponibilizar todas as traduções possíveis em todas as línguas possíveis. Diferentemente da biblioteca Borgiana, porém - trabalho inútil, segundo ele - só os textos que existem agora terão traduções agora. Este relato que vos escrevo, por exemplo, está em andamento em várias línguas, do ramo românico, saxão, eslavo, chinês e hindu. Mais de dois tradutores em cada uma delas se ofereceu para me traduzir. Os resultados podem ser acessados facilmente através da Web; o programa é relativamente barato, e expira somente depois de 30 anos. O prédio usado anteriormente para tal procedimento maciço está sendo transformado em fábrica de hambúrgueres. Volumes valiosíssimos - como 13 traduções em russo de todos os volumes de Júlia, Sabrina e Bianca - estão sendo leiloados a preço de banana.
Se me falta a capacidade de traduzir? Creio que não, quando se trata de um pequeno punhado de línguas, línguas que se reduzem a uns dois ou três dedos da minha mão. É que eu tenho o velho ditado italiano na minha cabeça que diz, já traduzido, que o tradutor é um traidor. Traidor do texto original, do autor de outro texto, em outra língua; amante, talvez, do seu texto, da sua autoria por tabela.
Todos os amantes e traidores, de textos ou qualquer outra coisa, crêem que o seu objeto é um elevado do resto, do todo-o-mais. Eu comprei um tradutor de textos por estar ciente da imensa continentalidade das línguas. Primo em um pequeno pedaço da Experiência Falante de todos os homens; com o meu português e demais, eu penso ser o rei do universo em uma casca de noz. E o menino das margens de um lago acinzentado pela nuvem de borrasca no meio do continente africano? Ah, estas línguas todas que eu não sei. Por mais que eu tente casar todas as minhas primas, umas com as outras.
Quem me vendeu foi um velho senhor simpático, de rugas caninas e pêlos felinos. Tresandava àquele sabor único de velhice, não o embolorado. Como pele animal curtida no sol e lavada repetidamente.
Em verdade, ele é o criador do tal método de tradução, ou melhor dizendo, o seu curador, o seu guarda. Como eu vou poder dizer mais abaixo, o M(N)étodo de Tradução é um tanto primoroso. O vendedor de fato foi quem eu imagino ser o filho, ou neto, ou qualquer descendência longa perdida na história de tal senhor. Um jovem bonito, de dentes brancos e saudáveis, e coxas fortes. Sim, um cavalo. Um belo cavalo de raça, um alazão mouro, um puro-sangue mestiço. As olheiras denunciavam o árduo trabalho em converter todo aquele trabalho - até então impresso em tipos elegantes - para um meio digital. Árduo trabalho. Imagino outros tantos quanto ele. Apareceu aqui em casa, a pele como coral, o odor marinho. Muito saudável.
Um tempo atrás, em que a Rede Mundial ainda fosse algo restrito aos militares e aos cientistas, o programa de tradução me tomaria muito espaço. Muito espaço. Nada comparado ao que ocupava antes, obviamente, mas se era gigantesco, um parente próximo da biblioteca Borgiana - da qual eu fui um dos únicos a sair vivo, embora não esteja ainda muito certo disto - ao menos era uma só, fisicamente localizável, um belo monumento à traição dos tradutores. A ambição louca daquele velhinho era disponibilizar, para todos aqueles que o quisessem, tal Método de Tradução, em sua própria casa. Com a net, nada mais fácil.
Todos sabemos qual é o grande problema com as traduções digitais: elas não traduzem. Seus algoritmos, por mais bem-construídos que sejam, não simulam o nosso falar. Eles trocam certas palavras por certas palavras, analisam algumas expressões e trocam por outras, embutidas em sua programação por um homem cansado, porém atento. Até mesmo analisam contextualmente, fazem cálculos de probabilidade e sorteiam, da mesma medula que o tal do homem cansado os deu. Um dia, as máquinas vão aprender a falar - se é que não já aprenderam. Talvez uma delas tenha aprendido a falar e nunca mais parou; está trancafiada em um sótão em Viena. Só que os algoritmos não sabem trair. Eles não traduzem.
Meu querido amigo me contou que este problema é fácil de ser solucionado: basta disponibilizar todas as traduções possíveis em todas as línguas possíveis. Diferentemente da biblioteca Borgiana, porém - trabalho inútil, segundo ele - só os textos que existem agora terão traduções agora. Este relato que vos escrevo, por exemplo, está em andamento em várias línguas, do ramo românico, saxão, eslavo, chinês e hindu. Mais de dois tradutores em cada uma delas se ofereceu para me traduzir. Os resultados podem ser acessados facilmente através da Web; o programa é relativamente barato, e expira somente depois de 30 anos. O prédio usado anteriormente para tal procedimento maciço está sendo transformado em fábrica de hambúrgueres. Volumes valiosíssimos - como 13 traduções em russo de todos os volumes de Júlia, Sabrina e Bianca - estão sendo leiloados a preço de banana.
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