Estou no terceiro dia de moto e já me sinto à vontade em cima da máquina quase-voadora.
É mais ou menos assim: todas as vezes em que fico uma carinha sem tocar na dita cuja, quando volto volto cheio de medos e temores e: "ai que eu já caí, ai que eu já freei quase em cima do palio branco no verão passado, ai que os argentinos não sabem dirigir, ai que eu estou sem óculos, (com óculos) ai que estou com óculos e vou perder metade do campo visual se a minha lente de policarbonato quebrar em mil pedacinhos microscópicos se eu cair quase freando no palio branco de um argentino veranista..."
E então fico todo tenso e chego em casa cheio de dores musculares.
Até o belo dia em que percebo que ajoelhei, tenho que rezar, e com fé. Meto a mão e torço gostoso o acelerador.
Sair de moto sempre é acompanhada de um sentimento de "hoje é um bom dia para morrer". Parece trágico? Mas não é. Não tem nada de triste também não; é uma realidade, uma realidade que clama pela sua atenção e presença de espírito.
Pois pilotar uma moto é uma coisa aparentada e distanciada, ao mesmo tempo, da experiência de dirigir um carro.
Os dois são veículos, levam de um lugar para o outro, dividem o mesmo espaço arterial, obedecem às mesmas regras. E pronto; as semelhanças terminam mais ou menos por aí.
A moto é pequena, não se sustenta em pé. Gasta menos, não é tão rápida, e a aerodinâmica deixa a desejar (mais pela contribuição do piloto que da máquina). A moto convida para que se mexa nela; suas partes simples e expostas suportam a ignorância de mãos novatas.
O carro é resistente e continente em si mesmo; pode levar muita gente e muita coisa, além de servir de santuário e motel, para muitos. Muitos passam por um carro sem saber do que se passa no seu interior; o carro é, assim, mais fácil de ser abstraído (de um motor de combustível fóssil em um chassi com quatro rodas para, simplesmente, "carro", ora pois).
Dirigir um carro é orientar-se em um espaço bidimensional desenvolvendo-se numa tela à sua frente, usando os braços e as pernas. Há uma separação entre o dentro e o fora; o carro comporta vida privada.
A moto envolve o corpo inteiro, brincando com a gravidade, envolvendo mais de três sentidos.
Enquanto os carros, bólidos compactos, afileiram-se um atrás do outro dentro de uma faixa de asfalto, as motos costuram e cortam entre os motoristas, faceiras. O que ganham nisto, porém, perdem logo em que se encontram em uma faixa livre; motos normais nunca conseguem andar muito rápido, e ficam sendo ultrapassadas pelos carros lá de trás...
As motos são constantes e flutuantes, como borboletas; os carros páram e aceleram a toda hora.
Sair de moto é quase sempre um ritual.
Quando se tem um carro, entra-se no carro de qualquer maneira, joga as coisas pro banco de trás, deixa pra acordar no meio do trânsito. As meninas e os meninos de cabelos compridos só se incomodam com o vento. Carro se põe e se tira de todo lugar a toda hora, e entra gente, sai gente, e fica coisa, e vai coisa... e batidinhas sempre acontecem, coisa da pressa do meio da tarde.
A moto não. Em primeiro lugar, ninguém sobe na moto sem capacete; quer dizer, pra alguém pegar uma carona contigo ou precisa ser já da casa, ou estar andando com um capacete debaixo do braço. Daí vem toda aquela dança linda de motoqueiros se aprumando para subir na moto: arruma a mochila, depois enrola a corrente no peito, para então colocar o capacete e, daí sim, óculos para quem usa.
Sobe na moto e vai. De preferência de calça e jaqueta, pois qualquer batidinha é um vôo e é bom pensar em evitar, pelo menos, perder três bifes no asfalto.
Enfim, quando se está em cima de uma moto, se está em cima de uma moto. E ponto.