segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Estou pensando em...


João me presenteou com um inusitado: Ser e Tempo, do Heidegger. Juro, juro, juro que tremi nas bases: é uma leitura chatíssima e dificílima. Mas maravilhosa: um verdadeiro desafio intelectual. Dou-me uns 3 ou 4 anos para lê-lo.

O Gato, evidentemente, até fuçou, mas não deu muita bola. Da próxima vez vou esconder atum no meio do livro, pra ele ver o que é bom. Já falei, gente, eu tento fazer de tudo por este gato, mas ele não colabora.

Minha ambição é ler este e A Fenomenologia do Espírito, do Hegel. Mais uns 2 ou 3 anos. Por quê? Porque eu quero. Tou pagando!!

Heidegger é um mistério para mim. Teoria e prática (um filósofo ensina pelo modo como vive, diz Arendt) são nebulosos. Mistério é a palavra exata, muitas vezes.

Por exemplo: no último mês envolvi-me com três livros diferentes, e como já disse, tempos atrás, uma estranha sinergia apossa as minhas leituras, de tempos em tempos: são livros que magicamente caem na minha mão e falam sobre perguntas que estavam, naquele momento, flutuando como escolhos no cais mental, e destas algumas poucas vezes outros escritos ajuntam-se, como coleguinhas de recreio, e apontam para uma mesma coisa ou questão, mesmo que eu não tenha sabido de antemão.

Os livros são: A vida do espírito, o livro póstumo da Hannah Arendt; Sócrates, o feiticeiro, Nicolas Grimaldi, uma brochurinha que encontrei num sebo e levei como curiosidade - graças a D'us - anos atrás, e O que é filosofia? do Deleuze e do Guattari. Este último ficou numa leitura morna, pelo próprio estilo "desterritorializante" dos autores. A Hannah, com seu estilo claro e preciso, foi lida de cabo a rabo, a primeira parte, sobre o pensar. O do Sócrates foi relido em goles fáceis, pois é poético e atina comigo.

Neste livro soberbo, criticado e aclamado, um tanto quanto esquecido - ele não foi terminado, somente a primeira parte está "completa" - Arendt, que investigou as três atividades da vita activa do homem (labor, trabalho e ação) na sua obra-prima, A condição humana, volta-se para a vita contemplativa, arrematando o ponto deixado em aberto. Pensar, querer e julgar são as atividades da vita contemplativa, e a parte completa é aquela que fala sobre o pensar.

Esta é uma questão que me tem pego, ultimamente: o que é o pensar? Nunca consegui, e não consigo, pensar o pensar e a filosofia como simples intellectual enterprise, como produção de conhecimento, como puro uso do intelecto e produção de conceitos. Evidentemente isto acontece, e todos sabemos que produzir "especulações metafísicas" é tarefa facílima, dados um pouco de leitura, cultura e tempo livre. Mas, para a mesma autora que defendeu a tese, em outro livro (Origens do totalitarismo), que levar uma ideologia até as seus extremos lógicos foi característica importante de todos os regimes totalitários, o que seria então o pensar?

Arendt diz que ficou estupefata com incapacidade de Eichmann de pensar. Eichmann, porém, era um homem relativamente culto - pelo menos educado - chegando a citar Kant em seu julgamento. A "banalidade do mal", conceito criado por Arendt, reside no fato que Eichmann era um cara comum, preocupado com sua carreira na SS, sem nenhum traço específico de antisemitismo ou "doença mental". Para ela, Eichmann simplesmente não conseguia "pensar".

Que é o pensar, portanto, é o que Arendt tenta responder, numa espécie de antologia e argumentação. E é uma pergunta - e uma possível resposta - interessantíssima. Se possível, tentarei digitar a introdução e colocar aqui, para quem quiser.

O que, particularmente, me chamou a atenção, foi uma citação de Heidegger (referenciado no corpo do livro) colocada como epígrafe à introdução:
O pensamento não traz conhecimento como as ciências.
O pensamento não produz sabedoria prática utilizável.
O pensamento não resolve os enigmas do universo.
O pensamento não nos dota diretamente com o poder de agir.
Isto eu chamo de "quebrar os braços", "puxar o tapete", ou "fazer a egípcia".

Fofoca: Heidegger e Arendt foram amantes, uma época. Dá-lhe Diotima!

(continua...)

Orly? Lorry?

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Você quer ser um líder de um culto?



A segunda parte está nos linques do vídeo no youtube.

Triste e verdadeiro. Embora pareça ser comédia, ou no mínimo sátira, as falas e atos são baseados em coisas que realmente acontecem.

O vídeo pergunta se você não gostaria de ser um líder de um culto. Eu pergunto: você quer ser um profissional do futuro? Sim? Então aprenda a ser um "desencultador". O fenômeno de culto é uma coisa tão antiga, mas também tão especialmente moderna, que não é de admirar que já existem pessoas - muitas vezes elas mesmas tendo feito parte de um culto no passado - que se especializam em tirar pessoas de um culto. Um processo que não é nada fácil, ao que parece.

Precisamos ter um pouco de cautela, contudo, em não querer ver em todas estas coisas um "culto" em si. Fosse assim, dançar e girar seriam sintomas inconfundíveis de atividade-física-que-provoca-transe-e-faz-parar-de-pensar. Culto é um fenômeno, um processo, que envolve um monte de coisas - a mentalidade "nós contra eles", o sentimento de ser especial, o "amor" pelo líder, a abandonar a vida pregressa, a promessa de algo melhor dentro do grupo.

Meditação e afins podem, evidentemente, ser utilizados neste contexto. A minha experiência com a meditação me faz pensar que isto não é a "meditação" que provoca, mas o contexto no qual ela é colocada.

A grande ironia dos cultos, porém, é que eles são dissidências de amor no seio das sociedades. Se tal amor e tal fidelidade fossem dirigidas para a pátria, ou nação, ou partido, e tal "discriminação intergrupal" e preconceito contra os "de fora", teríamos algo similar ao que sempre tivemos na nossa história política. Os cultos parecem refletir invertido, em pequena escala, algo que acontece em uma escala maior.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

"Acid made me kill a sausage"



Supostamente este é um vídeo para desestimular o uso do ácido lisérgico, LSD. E para assustar as pessoas também. Scare the shit hell cat outta.

Resumo da história: a moça comportada vai pro apartamento (universitário? Berkeley?) de um carinha e toma ácido. Ela coloca uma roupa mais colorida e tcham e tchum, e sai pra "rua do Mercado" pra passear ou uaréva. Ela compra um cachorro-quente e a salsicha, agora afogada em ketchup, começa a falar com ela e dizer que morrerá assassinada se ela for mordida. Conversa vai e vem, a moça decide parar de conversar com a salsicha - ah, como eu gostaria de ver isto - e morde a bicha, que solta um grito de dor e desespero. Assustada, a moça começa a pisotear a salsicha e tudo o que a acompanha - pão, molho - para se dar conta depois que no fim das contas acabou assassinando a salsicha - e pagou um mico federal no centro da cidade.

Tsc. Estudos clássicos em psicologia social mostram claramente que propagandas que utilizam o sentimento de medo e terror para desestimular algo funcionam menos que outras abordagens.

Tsc tsc. A mulher ficou aterrorizada com a salsicha falante? Mas ela não sabia que estava matando mesmo, ora bolas? Não pude evitar de me lembrar de uma pessoa, que não revelarei o nome, pessoa esta que é uma das ativistas vegetarianas e direitos-dos-animais. Ela (pessoa) descreveu, para mim e para um amigo, o Horror que paira no ar por causa da matança, e como pessoas mais sensíveis, como ela (pessoa), crianças, e demais, sentem o Horror. Pairando no ar.

É evidente que isto virou piada e até hoje usamos a expressão "c'est l'horreur/ une horreur".

Tsc tsc tsc. A War on Drugs é um atentado contra a nossa inteligência. Entre outros tantos.

É claro que não nego que a história possa ser verídica. Coisas assim acontecem, e com frequência.

A exploração de um lapsus calami

Procurando algo mais palpável para acusar Jacques Lacan por "amor despropositado em relação a lingotes de ouro", fui na minha útil barra googlica e, entre várias palavras de busca ("lacan love for gold", "lacan gold bars", "lacan money love") digitei o nome completo do psicanalista francês como Lacques Lacan.

Isto é conhecido como lapsus calami, uma "escorregadela da pena"; são erros que cometemos quando escrevemos. Assim como os lapsus linguae, os "atos falhos" de fala, os calami são vistos, pela psicanálise, não como acidentes fortuitos, mas sim como episódios que, dada a devida atenção, podem indicar (oute legei oute kryptei alla semainei, como era dito do oráculo de Delfos) algo do "inconsciente".

As aspas são úteis para indicar uma concepção não-reificadora do mesmo.

Como seria esta "devida atenção" a ser dada? Ora, o método da associação livre, bolas. E o que é a associação livre, então? É falar a primeira coisa que lhe vem à cabeça, desprezando qualquer censura, qualquer vergonha, qualquer pudor, qualquer orgulho, qualquer enfim. No símile vívido que Freud deu algures, é como estar em um trem, vendo pela janela a paisagem que corre, e descrevê-la para uma pessoa que está sentada ao seu lado. A paisagem que corre, em um divã, é evidentemente o nosso falatório e pensatório "interno".

E olha que Freud tinha uma certa ansiedade, para não dizer fobia, de trens.

Evidente, é preciso uma certa confiança e uma certa ironia para trabalhar com a associação livre. A ironia deve-se ao fato que os resultados deste trabalho, como uma espécie de interpretação (como são chamadas muitas das intervenções de um analista), podem muito bem ser uma espécie de círculo de retroalimentação de um discurso truncado - ou, melhor dizendo, a própria interpretação nunca acaba sendo o "discurso do inconsciente em si". Fabio Herrmann explora lindamente esta espécie de erro/sutileza metodológicos no seu "Andaimes do Real".

Como eu começaria com este "ato falho" do meu dedo no teclado, então? Bem, a primeira coisa que me veio à cabeça foi o tal do Laques, o diálogo platônico não-lido-a-não-ser-resumos-na-nete sobre a coragem e quetais. E assim vai.

Há uma descrição de um lapsus calami do Freud, em um bilhete de um presente que ele deu para uma amiga, e que foi interpretado por ninguém menos que a intrometida da Anna Freud. Abelhuda.

Quanto a história do Lacan, dizem que é verdadeira e que no final da vida ele, um self-made man, como ele chamou a si mesmo uma vez, colecionava lingotes de ouro. Mas não era perdulário, ao que parece.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Úmida ou Seca? Sem opção, mermão

pelo menos a sauna acima parece ser seca...

Florianópolis tem um clima subtropical úmido (Cfa, Cwa na classificação climática de Köppen). Ele difere dos climas mediterrâneo - onde as temperaturas são muito semelhantes, mas o verão é seco - e do oceânico - umidade espalhada pelas quatro estações, menos variação climática. Num clima subtropical úmido as quatro estações são bem delimitadas - há um outono e primavera bem definidos - e a estação quente, o verão, tem um grau de umidade alto, em volta de 80 porcento de umidade no ar.

Sob condições de alta umidade - acima de 60 porcento - a evaporação do suor pela pele é diminuída, e os esforços para manter a temperatura corporal não funcionam direito. Se a temperatura do ar também excede a temperatura corporal, o sangue trazido para a superfície do corpo não consegue "esfriar-se" fazendo troca de calor. Menos sangue vai para os músculos, órgãos internos e cérebro, diminuindo a força, a atenção e a capacidade mental, resultando em maior fadiga. Tal condição é chamada de hiperpirexia e levada a extremos pode resultar em hipertermia.

Tudo isto para explicar o porquê de eu morrer de calor no verão de Floripa. Minha vó do ES diz-me que o verão aqui faz a gente ficar "melecado", e eu entendo ela muito bem. Os ventos marítimos de verão não adiantam muito contra o calor. Só ar-condicionado mesmo - ou praia, já que é pra se melecar.

Tenori-on


Era só o que me faltava. A Björk já desfilou com um deles, o Four Tet ganhou de presente, já existe até duo que toca nele... e eu não sabia?

Enfim, o tal do Tenori-on, da Yamaha, é um novo instrumento que promete - e talvez seja bem-sucedido - em juntar sintetizador e sequenciador e demais quetais em um instrumentozinho capaz de ser carregado e utilizado nas mãos. São ótimas notícias, para quem quer ver a museletro literalmente "nas mãos" do pessoal que compõe e toca.

Eu sempre digo para todos que a museletro é um dos grandes achados do século XX - embora tenha gente do XIX que deu umas bandas também. Quer dizer, além da penicilina e bláblá e toda a virada eletrônica/digital, do qual a museletro faz parte, evidentemente. Ela mudou a concepção de música, como fazê-la e como escuta-la, e não digo que foi somente para melhor - como tudo que se preza.

Até eu tenho meus preconceitos. Quando escuto música mal-feita ou ruim, digo que é "feita no teclado Yamaha". Aquele típico mal-uso dos MIDIs que se encontra em todos os lugares, atualmente. Exemplos? Peruanos na rua, cantores de bar perdidos, aposentadas que se decidiram a tocar. É uma simples lembrança da infância compartilhada com um deles; não o peruano, mas um teclado Yamaha.

A invenção de sintetizadores portáteis - assim como a de computadores portáteis - foi uma onda que será muito apreciada daqui a duzentos anos. Roland, Moog, Korg: a possibilidade de criar sons como nunca se pode criar antes libertou a música das amarras da especialização que ela exigia. Consigo imaginar que séculos atrás só chegassem a manipular instrumentos musicais "mais requintados" quem a) sabia tocá-los, b) eram responsáveis pela sua manutenção, c) quem era rico e nobre e podia fazer o que quisesse, d) casais libertinos em um amasso perto do órgão da igreja local, se presente.

Agora qualquer um pode dar uma de Mozart.

Espero que daqui a algum tempo alguém invente uma tecnologia de "escuta opcional"; já imaginou você correndo na BeiraMar, e vê aquele pessoal todo se remexendo e dançando ao som de nada - pois você não escuta? Se quisesse escutar, era só parar e "conectar" no canal. O que, fones de ouvido, Maria? E você já dançou com um fone de ouvido antes?

Ah, um mundo mais silencioso, para uma época de gente mal-educada e celulares com som.

Para quem quiser experimentar um pouquinho com sintetizadores e sequenciadores no seu computador, baixe um programinha como o FL Studio. É preciso uma boa memória e uma excelente placa de som para conseguir os melhores resultados, mas para dar uma espiadinha não é preciso tanto. Programas como este, ou parecidos, tem sido a glória de gente como o Kraftwerk e tantas outras; junte um computador com boas caixas de som (monitors) e voa-lá.

O Tenori-on promete, no mínimo, tirar os meninos do Kraftwerk atrás dos seus laptops nas performances ao vivo. Ou não. Ele certamente me tiraria da cadeira.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Sabia ou não sabia?


tirado de cientistasocialnerd.blogspot.com

Estava eu lendo um dos livros mais surpreendentes que li nos últimos tempos - "Sócrates, o feiticeiro", de Nicolas Grimaldi, quando minha "sobrinha" de quatro anos de idade me pergunta o que leio, na pequena brochura que tenho nas mãos.

Eu digo que é uma história. Ele pergunta do que é a história. Eu digo que é uma história de um homem que ia todos os dias para o centro da cidade, e ficava perguntando a todas as pessoas que ele encontrava sobre várias coisas.

"Ele perguntava sobre o quê, Lucas?" Hum, nesta tenho que pensar um pouco. Como vou explicar que ele, Sócrates, ia interrogar sobre certas "virtudes" justamente aquelas pessoas que, de acordo com a opinião geral, as possuíam e delas demonstraram posse - a coragem em um general, a retórica com o melhor dos sofistas?

"Ele perguntava pras pessoas o que era a beleza. Você sabe, Maria?"

"O que é beleza?" (enrolando um pouco a língua)

"É".

"Não sei, Lucas".

Pausa para refletir se tento encetar um diálogo socrático com ela. Decido ser melhor não, e não pelo fato de ela ter quatro anos, mas sim por hesitar não conseguir prosseguir.

"E que outras coisas ele perguntava, Lucas?" ela continua, impávida.

"Sobre a verdade..."

"Ah", ela se remexe feliz na cadeira de balanço, "isso é fácil. Verdade é quando você não fala mentira. Você não sabia, Lucas?"

"Sabia, Maria."

"E ele sabia, Lucas?"

"Ele dizia que não sabia."

"Ele dizia que não sabia mas sabia, Lucas?"

"Não, ele dizia que não sabia mesmo, Maria."

"E ele ia perguntar pras pessoas pra saber, Lucas?"

"Talvez."

"E as pessoas sabiam e diziam pra ele, né Lucas?"

"Ele dizia que ninguém sabia."

"Mas..." pausa, olhando para o infinito, "ele sabia algumas vezes e não sabia outras, né Lucas?"

"Ele dizia que não sabia, Maria."

Trocamos de assunto.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Seja Sampa ou Espírito Santo

É sabido por alguns que meus primeiros meses de vida foram passados em Cachoeiro de Itapemirim, ES. Lá eu nasci, e por lá eu fiquei até que meus pais me trouxessem para esta cidade que aprendi a amar, Florianópolis.

Felizmente, pois o calor capixaba derretia lentamente os meus neurônios caucasianos, como pude (re)comprovar nesta última semana.

Visitando a família e uma avó em vetusta idade, a oportunidade de rever os meus parentes paternos, a dinâmica familiar um tanto quanto... diferente, para não dizer barulhenta e caótica, como as ruas da cidade. Quase ladeiras de mão única, as ruas de Cachoeiro se cruzam e descruzam em um labirinto irreconhecível, a não ser que o cauto visitante tenha sua Ariadne ao lado.

Casas e mais feias casas, caixas de tijolo ocre das fartas olarias da região, amontoam-se sobre os vários morrinhos que se elevam do baixio do rio Itapemirim. O povo moreno, apesar de suar e reclamar do calor, sobe e desce tais ruas e morros como formiguinhas, sob o sol a pino. A luz é abundamente amarela; as árvores têm folhas de um verde mais claro que as de cá. Ou é ilusão de olhos mal-acostumados, ou não se precisa de tanta clorofila assim.

Tal cenário repete-se quando se adentra para o interior do estado. As mesmas casas/caixas de tijolo, o mesmo verde pálido, a mesma terra salmão, poeirenta e brilhante na luz do sol.

Fui pegar o avião em Vitória e, para isto, tive que pegar um ônibus que atravessaria uns quatro ou cinco municípios no caminho. Janelas abertas, para deixar adentrar o vento refrescante. O cheiro de mato sumarento, o cheiro que primeiro me recepcionou em Cachoeiro, acompanha-nos durante toda a viagem - que foi, na verdade, uma grande rememoração de cheiros primevos. Se são primevos na minha memória, ou na suposta memória compartilhada, não o sei dizer.

Mato, pedra, terra, bosta de vaca, café, seiva, suave futum humano; o calor aumenta exponencialmente os cheiros de um lugar. A lição aprendida e compartilhada em Manaus - na metade de Manaus sem ar-condicionado, por favor, que são duas cidades divididas por um simples aparelho - foi relembrada no ônibus. Eu, o alemãozinho, não escapei do meu próprio futum, mais azedo e coalhado. Militares de farda e colete, rapazes de camisa social, mulheres de braços firmes e saias de tecido sintético, homens velhos e precavidos de calça de linho fino, camisa idem, bonés patrocinados por companias de combustível fóssil na cabeça, ninguém escapou de molhar fartamente os bancos com aquele valoroso suor que refresca.

Você sabia que o suor é praticamente urina mais diluída? Então. Em outras palavras mijamos nos bancos, o que explica o leve cheiro que permanece nas roupas depois. Quantas noites mijei na cama quando criança... e o colchão molhado, colocado no sol do quintal para secar, cheira diferente. Mas divago.

Invejava as pessoas dos pequenos lugares por onde passamos, que não precisavam se enfurnar em uma caixa de metal e plástico sob um sol de meio-dia, antes descansando sem camisa nas generosas sombras das árvores. Repetia comigo mesmo que "calor não combina com civilização", ecoando uma das teorias racistas em voga muitos anos atrás.

Antes, porém, que me acusem do mesmo, deixo claro que realmente acho que "civilização" - num modelo americano-europeu, que é o que temos - não combina com calor. Não dá. Quer dizer, sem ar-condicionado. Com ele, dá, por motivos óbvios. Mas é tudo ranço meu, mesmo, criaturinha frágil e branca que sofre mais com o calor do que seus colegas mais adaptados. Eu tinha um amigo, moreno, que dizia que quando o sol saía ele se alegrava, independente do calor, e quando se escondia ele se entristecia. Temos que tomar isto em conta, seja um fator racial ou qualquer outro.

Evidente que tive de abdicar um pouco da minha certeza quando descobri, depois, que Iconha é o município brasileiro com maior proporção de caminhões e carretas por habitante. - o que pude comprovar passando por um dos restaurantes dedicados a estes motoristas incansáveis. Não admira. Iconha não é a terra da pamonha, mas a terra de banana e café. Bananeiras e cafeeiros convivem, pacificamente, lado a lado, ora disputando os lugares altos e baixos. Tentei, intuitivamente, sacar alguma regra pragmática de localização das mudas, com pouco sucesso. Ora eram bananeiras, ora cafeeiros. Em alguns lugares morros e demais morros eram tomados por hordas de bananeiras quase fluorescentes. Barraquinhas de madeira improvisadas vendiam, na beira da estrada, cachos apinhados de bananas-da-terra, maravilhosas de se cozer como batatas e comer, ainda na casca.

Vi estas cenas muitas vezes, quando íamos, de carro - loucura paterna - visitar Cachoeiro.

Outras cenas mereciam ter sido registradas e enviadas para o Concurso de Fotos do Terceiro Mundo de Düsseldorf, ganhando o vigésimo-sétimo lugar. Como aquela, de um conglomerado silvestre de casas/caixas baixas, de gente muito pobre para quem levantar uma parede é objetivo de vida, todas exibindo as mesmas antenas parabólicas, apontadas para a mesma direção, como girassóis de metal florescendo de canteiros de tijolos. Algum revendedor de antenas deve ter ganho um bom dinheiro por ali.

Não preciso dizer que descansei a minha câmera por toda o tempo passado fora de casa, seja Sampa ou ES, o que explica e redime o longo texto, sem quaisquer figuras.

Nem tudo são roças quentes, porém, no Espírito Santo. Este estado possui uma diversidade de terrenos e climas que vale a pena explorar. Com apenas uma hora de viagem é possível subir a serra capixaba e encontrar noites mais frescas, como eu fiz, escapando do inferno. Passei um final de semana num sítio da família. O caminho nos brinda com montes e as gigantescas pedras, quase nuas.

Pedras, por sinal, são outra coisa pela qual o lugar é conhecido. Grandes veios de mármore e granito fazem a riqueza de muitas empresas da região. Pedras se elevam acima dos morros, pedras sustentam os morros. Uma pedra é símbolo da cidade de Cachoeiro, o Pico do Itabira, ou a pica do Itabira, ou whatever.

As pedras também têm cheiros; existe um cheiro característico das pedras. Pedras quentes, pedras frias, secas ou úmidas, porosas ou não. Aquele cheiro de chuva caindo no asfalto quente? Sabe a pedra.

Anos atrás encontrei uma ótima metáfora para falar daqueles bons chocolates, feitos com muito cacau puro, só manteiga, pouco açúcar: chocolates são de pedra, de rocha. O aroma, o cheiro, algo no gosto: é rocha. Incidentalmente uma das maiores indústrias de chocolates brasileira é capixaba, a Garoto - se bem que seus chocolates mais sabem a lama doce. Go figure.

De Cachoeiro, terra onde nasci, Roberto Carlos perdeu a perna, e Rubem Braga relembra a infância comendo frutas, até Vitória, capital do estado. Vitória é parecido com Florianópolis: uma "ilha", na beira do mar, berço de praias, com direito a avenida beiramar com prédios altos e belos. Chegando em vitória senti-me mais em casa, vendo os citadinos com suas modas e diferenças de uma hora de ônibus atrás, quando estávamos no meio da roça.

Faço o check-in, e decido permanecer com a roupa e a sandália do não-tão-longo percurso de ônibus. Relembro as palavras recriminadoras da minha vó, sentados à mesa, eu comendo colheradas de papa de milho: "você vai pegar o avião de bermuda?" Compreendo: pegar avião é como se fosse ir para a missa de domingo. É um evento especial, não se faz todo dia. Há de se vestir bem. Na passagem o código da cidade de Vitória é VIX: em um site de relacionamentos que vasculhei, a fim de testar a vida amorosa capixaba, muitos apelidos terminavam com VIX. Qual estranha ironia que faz com que assuma-se o código de aeroporto da cidade para designar onde se encontra, eu não sei.

Acho que a vida sexual dos comissários de bordo é muito, mas muito mais ampla do que eu pensava.