quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Food-drug continuum

maçã gala, t'és rajada
com'ma tigresa vermelha redonda
pintalgada

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Hum. Uhum. (Re)encontrei o uso do termo que tanto gosto, contínuo alimento-droga (food-drug continuum), remexendo nos velhos textos empoeirados no armário - da época em que ainda imprimia os meus arquivos. Agora só imprimo ou os difíceis ou aqueles que eu prevejo que serão leitura de cabeceira.

É do Humphry Osmond, no primeiro capítulo de um livro que nunca li, mas que é bem eloquente. Humphry Osmond é, por procuração, uma influência intelectual, já que ele dialogou com o Huxley - que, sem necessidade de dizer, é uma das mais profundas influências que eu tenho, reconheço mais e mais a cada dia. Brinco: não aceito influências intelectuais por procuração, há de ter um bom argumento (e uma boa cabeça, de preferência). Mas ei, se tivesse de ser sempre "boa cabeça" metade dos filósofos ia para fora com a água da banheira, então esqueçamos.

Osmond foi uma das pessoas que tentou ventilar um pouco de bom-senso na discussão da época, sobre os "alucinógenos". Ele também propôs a teoria, agora desacreditada, que a esquizofrenia seria uma espécie de "superdosagem" de uma substância "alucinógena" endógena, a ver a discussão médica, que os chamava de "psicotomiméticos" por enxergar nas situações de uso de "alucinógenos" - usualmente em laboratório - semelhanças (mimetismo) com quadros psicóticos. De certo modo ele apontou para um ramo de investigação correto, afinal todos nós produzimos DMT, embora não saibamos o porquê.

Talvez seja mais provável que "uma das causas" (detesto esta expressão, ela não dá conta da multifatorialidade de uma coisa desta) da esquizofrenia seja um vírus. Não é interessante?

A questão de ventilar um pouco de bom-senso não se refere à discussão de usar ou não usar os "psicodélicos", que no fundo torna-se uma questão menor dentro de uma discussão um pouco mais ampla; aquela sobre as substâncias que chamamos de droga, e das "drogas" que permitimos que façam parte do nosso cotidiano ou não. Esta é, aos meus olhos, uma das questões mais presentes e prementes da atualidade, e não se reflete somente no uso individual de "tóxicos" (do grego tóxon, "flecha, flecha envenenada", Apolo e suas flechas espalhando a peste no comecinho da Ilíada!) e suas consequências negativas - muito visíveis em muitos casos, por sinal -, mas também nos milhões de reais do tráfico nas grandes (e não tão grandes) cidades, e nos milhões utilizados na luta contra os milhões do tráfico - bilhões, se estamos falando dos EUA.

A maneira atual de ver esta questão é puxar toda uma classe de substâncias para baixo do tapete e chamar de "drogas", sem uma avaliação concreta do risco. As tentativas de avaliação de risco - dentre as quais destaco uma, para leitura dos curiosos - são as ações que, ao meu ver, mais podem influenciar em políticas futuras. A posição atual - que eu chamaria de hipocrisia, se não soubesse que não existe hipocrisia social, mas sim um campo complexo de decisões que tateiam em busca da melhor solução possível - leva, somente, a um reductio ad absurdum, especialmente trágico nesta época em que novas substâncias invadem as ruas a cada ano. Qual reductio ad absurdum? Espero falar disto mais tarde, mas trata-se do processo de, através de regressão praticamente infinita, descobrir que não podemos, de modo racional, demarcar a linha entre "droga" e "não-droga", sem concluir que a própria vida é uma "droga". Esta distinção deve existir apenas em termos de legislação, do licet e do non licet, and Lacan approves of that.

Falo tudo acima como indivíduo, cidadão e, especialmente, psicólogo, já que jurei agir de modo a promover, ao meu ver e ao ver da sociedade, a saúde pública. Vamos ao texto.
Qualquer cultura pode ser vista como uma ramificação de uma tecnologia particular, aplicada ao conjunto de condições locais dentro do qual este cultura se situa. O termo "tenologia", como utilizado aqui, refere-se a todo o conjunto de dispositivos - sejam mecânicos, químicos ou linguísticos - pela qual a adaptação dos indivíduos aos seus ambientes pode ser aumentada/melhorada.

[....]

A tecnologia das drogas é uma das mais velhas tecnologias, e provavelmente teve seu início quando nossos ancestrais abriram caminho por entre as florestas e descobriram que, entre os alimentos que experimentavam, alguns produziam mudanças interessantes na forma de sentir, perceber e se ajeitar no mundo. Substâncias que alteram a consciência podem ser encontradas entre provavelmente todas as populações do mundo (Taylor, 1963). Substâncias que contém álcool e cafeína, em particular, parecem ser usadas em praticamente qualquer lugar, e o cânhamo e seus derivados também parecem ser amplamente utilizados.

Substâncias cujo efeito principal é reduzir a fome são classificadas como alimento. Mesmo que, nos dias de hoje, é comum mostrar uma análise, na embalagem, da composição química de muitos dos alimentos que comemos, sua ação é mais estudada em laboratórios de nutrição do que de farmacologia. Os tipos de estudos detalhados, que historicamente caracterizaram o estudo farmacológico - efeitos em estruturas particulares e sistemas de órgãos corporais - são raramente feitos com alimentos. [Temos uma pequena grande mudança nos últimos 40 anos, não?]

Substâncias que aumentam a sociabilidade ou estimulam o indivíduo são, comumente, tratadas como alimentos se elas podem ser ingeridas, ou mais como drogas (sem serem usualmente chamadas assim) se precisam ser fumadas. O álcool, café, chá e chocolate representam a classe comestível destas substâncias, assim como o é o tabaco e a cannabis, junto com seus derivados, em muitos países muçulmanos e do oriente. Cannabis e tabaco representam, provavelmente, as principais substâncias fumadas. O alvoroço contínuo contra o uso do álcool e da cannabis por vários grupos em nossa cultura sugere a posição atípica deste tipo de substâncias no contínuo alimento-droga [assim como tem acontecido com o cigarro atualmente, processo muito recente]. O medo e a ansiedade perante a degradação física e moral que pode resultar da sujeição pelo café, chá e chocolate, quando estes foram introduzidos na Europa, são outro exemplo. Deve-se salientar, também, que muitos fumantes de cigarros têm dificuldade em pensar o tabaco como uma droga, pois o termo "droga" desenvolveu significados muito específicos.

Entre os alimentos recolhidos pelos nossos ancestrais, alguns preservavam a vida, enquanto outros a destruíam. Outros, ainda, pareciam remover doenças. Algumas vezes os alimentos que destruíam a vida podiam também preservá-la, além de remover doenças, se administrados de maneira oportuna, e em doses corretas. É difícil dizer quando a distinção das [substâncias] comestíveis entre alimentos e venenos e entre alimentos e drogas surgiu, pois as divisões já existiam desde o começo da história documentada. As lendas da bruxa e do mago com as suas ervas, ou a da maçã cujo aroma repele a doença, são muito antigas. A tecnologia do uso de drogas é encontrada em todas as culturas, em conjunto com uma tecnologia dos venenos, e o controle desta tecnologia é investida à [em?] pessoas com funções sacerdotais ou semi-sacerdotais, ou em [à?] pessoas que alegam ter relações especiais com o sobrenatural. Com o aumento do conhecimento acerca das artes da cura os sacerdotes, que lidavam com a cura, abriram caminho para um grupo mais secular, com treinamento especial, chamados de médicos. Outro grupo reivindincou jurisdição sobre a preparação destas substâncias; foram chamados de apotecários ou, mais recentemente, farmacêuticos. Estes peritos sabiam quais drogas prescrever, e quando. Também era evidente que estas substâncias poderiam ser perigosas, algumas vezes, se preparadas ou utilizadas incorretamente, então era importante ouvir o que eles tinham a dizer a você sobre as substâncias possivelmente perigosas com as quais eles lidavam. Além disso, como eles lidavam com o alívio do sofrimento, foi fácil que uma imagem de "boa pessoa" surgisse. Como resultado, uma droga, neste contexto, tornou-se algo que deve ser usado sob a orientação de um médico, e que é uma idiotice usar de outra forma.
[Segue falando das outras visões - negativas - da palavra droga e do usuário de drogas.]

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