quinta-feira, 21 de maio de 2009

Eat a Peach

Nada melhor do que chegar em casa tarde da noite, com fome, e esquentar um prato de parafusos com feijão, cenoura, alface – tudo juntinho-, um pouco de temperinho verde e lasquinhas de gengibre fresco, pra espantar o frio e enxotar o demônio que se apossou dos meus pulmões e garganta nos últimos dias.

(Bem, existem coisas melhores, mas me sinto muito pouco à vontade, neste blogue sem restrição de idade, para dedilhar meu gosto suspeito por gummi bears.)

E depois é uma ventania só. Como bom caucasiano sou um pouco sensível ao feijão preto – isso é verdade, dado estatístico comprovável. Mais um dos itens “Lucas queria ser negro ou mulato ou índio ou caboclo”.

***

João e eu fomos no super hoje e, antes de pegar a cerveja, passamos pelo estande de frutas, na promoção de quarta-feira. A maçã básica de cada dia. Banana, talvez, se não estivessem tão verdes, como sempre – banana verde, pra mim, é como comer isopor. Gosto daquelas que estão ficando pretas, quase apodrecendo; o povo de casa me recrimina por isto. Será uma perversão? Não sei.

Ele me aponta um pêssego muito bonito. Olhei. Cheirei. Tive um arrepio que contraiu até o cu. Desculpem pelo vocabulário tosco – em Portugal não é tosco, mas não estamos em Portugal. Lembrança das aulas de ashtanga-yoga em que, delicadamente, a instrutora pedia para contrair “o esfíncter”(qual, o piloro?), junto com a respiração.

Fruta é uma coisa muito doida, ruminávamos depois, sentados em um canteirinho qualquer no meio de uma rua. Atraente em todos os sentidos possíveis, e serve somente para isto: atrair. A própria fruta não é de nenhuma serventia para a semente, lá dentro, que dependendo do caso dispõe de mais ou menos substancia – na forma de castanha, noz, ou similar – para se nutrir. A carne da fruta é totalmente dada para o mundo, um luxo natural, uma transformista vegetal. Serve para que a comamos e sejamos bobos o suficiente para espalhar um pouco mais a semente, seja retirando a fruta da arvore ou engolindo aqueles caroços, pequenos ou enormes, de tão afobados em engolir a polpa sumarenta.

A melancia é a epítome da segunda estratégia. Só separo as sementes de melancia, até hoje, assombrado pela profecia materna: iriam nascer “pés” de melancia pelos ouvidos e nariz, se eu as engolisse.

E como cheira, uma fruta. Como cheira. Aprendi com meu pai a escolher fruta pelo cheiro, primeiro, e depois pela textura e cor.

Imagine você, numa época não muito distante, em que os cheiros bons não eram produzidos por grandes companhias cosméticas; em que as cores fortes e vibrantes não estavam disponíveis em galões de 20 litros. Imagine você indo atrás de comida; carne ainda é artigo de trabalho de grupo e muito suor e sangue, e você não consegue mais viver só de mato, como seus antigos primos orangotangos. E eis então o fruto. Um pêssego. Perdido e solitário, como você. Que fragrância suave, e ao mesmo tempo tão chamativa como o canto das mais espertas sereias! Que cor luminosa e contrastante com o verde e marrom dos arredores, e ao mesmo tempo tão natural que assim o seja, apontando para si mesmo, dizendo “aqui estou eu!”. Que textura macia e delicada, que suave penugem, que delícia pressentir o choque dos dentes rompendo a fina película protetora e afogando-se no gole do sumo que sangra...

Enfim, a pessoa come o pêssego. Romantizo um pouco, pois senão a história pararia por aqui, e eu não quero que assim seja, pois o quilo daquele pêssego era 28 reais e 80 centavos. Um pêssego nos custou quase quatro reais.

Estivéssemos cada um de nós sozinho em sua visita ranchal, jamais compraríamos o pêssego. Afinal é um luxo, caro, passando longe dos nossos radares antenados com o cálculo premente, custo x benefício. Mas estávamos em dois e, depois do arrepio esfincterial e espinhal, nada mais havia a ser feito a não ser levar um daqueles pêssegos californianos e dividi-lo. Sentamo-nos no meio-fio de um canteiro, nossas sacolas arriadas, e comemos. The rest is silence. (we starve, look at one another short of breath...)

Independente do que se come, comer junto de um amigo é muito mais nutritivo. Se se trata de pêssegos californianos, une-se o útil ao agradável, junto com o inevitável kairós - e o irrepetível.

O cheiro deles ainda está na minha mão, depois de uma hora e meia, e de fatias de gengibre. Mais acima, no pulso, pulsam as notas cítricas e de madeira de uma amostra de um novo perfume, que surrupiei de uma amiga. Talvez um dia, por descuido, ainda temperarei meu feijão com Armani ou Fahrenheit, pois guardo os meus perfumes dentro da geladeira, abaixo dos ovos caipiras.

Já fui vegano, e os animais que me perdoem, mas perfume é fundamental.

0 comentários: