domingo, 24 de maio de 2009

Audaciosamente indo onde nenhuma ameixeira...

Começo meu dia com aproximadamente 100 miligramas de cafeína. Todos os dias. Esta é uma rotina que estabeleci desde os meus 14, 15 anos. Quando paro de tomar café tenho os sintomas de abstinência de cafeína. Tento sempre não exagerar muito, e ao mesmo tempo não parar de tomar café.

Já tive, muitos anos atrás, uma suave intoxicação por cafeína, em uma festa inesquecível. Era uma casa muito engraçada, com paredes de pedra e madeira, as últimas forradas com o verso de caixas de leite, como escamas, que brilhavam suavemente na luz colorida. Era de madrugada, a geada cobria o quintal da casa, uma vaca mugia ao longe e chega um salva-vidas moreno; ele cozinha uma canjica, para nosso maravilhamento, e todos comemos juntos. Bem servidos de café. Meu coração começou a bater muito rápido; eu suava frio. Havia tomado no mínimo umas quatro xícaras boazudas de café. Uma parte de mim olhava para tudo aquilo à distância.

Antes disso, porém, eu era uma criança. Não podia ser chamado de hiperativo, mas quando se tem um quintal imenso – na verdade, um bairro todo – para explorar e correr e bicicletar, até mesmo os mais introspectivos lascam o joelho no muro, ao seu próprio modo. Bem, a introspecção veio mais tarde.

Dei-me conta, agora, que eu era o líder do grupelho da vizinhança – que envolvia uma menina da minha mesma exata idade – nasceu no mesmo dia e ano -, os dois irmãos dela, pouco menores do que eu, a minha irmã e a sua amiga da casa do outro lado. Ocupava o lugar do capitão na nossa “nave”, a ameixeira no fundo do quintal: três galhos que se entrelaçavam e providenciavam um assento natural, no ponto acessível mais alto, onde ainda podíamos nos equilibrar. Quem decidia quem era o que, e onde, era eu: costumava mandar minha irmã para uma espécie de “sala de processamento de lixo e cozinha”, o primeiro andar – o primeiro galho horizontal -, de baixo para cima, perto da escotilha de entrada. Mais tarde ela foi promovida para a navegação, se não me engano.

Fiz, rapidinho no Paint, já que alguém aqui em casa andou desinstalando o meu Corel, um plano vertical da nossa nave.

1 - observação
2 - ponte de comando e batalha; arsenal
3 - cadeira do capitão
4 - comunicações; navegação
5 - sala dos motores; engenharia; arsenal (área pouco utilizada)
6 - armazenamento; cozinha; lavanderia
7 - saída de emergência
8 - escotilha

Estes são nomes que arranjei atualmente, embora na prática as coisas acabassem se arranjando desta forma. A área riscada são as “escadas”, que por acaso coincidem com o tronco da ameixeira.

Não consigo mais imaginar o que fazíamos, todos os dias, durante horas em cima daquela arvore.

Houve tentativas de usurpar o meu lugar, que foram resolvidas, provavelmente na base de pouca diplomacia e muita gritaria. Eu nunca fui de brigar... a não ser liderando as expedições punitivas contra B. R., o menino da “outra rua”, que eu tive o prazer de sujar com muita bosta de vaca e passar por cima do seu dedão com a bicicleta pesada da minha mãe, entre outras coisas. Passei tardes inteiras pensando em estratégias: como faze-lo passar por cima da minha armadilha de abacate?

No meio disto tudo eu tinha ataques de bronquite. É o que a minha mãe diz hoje, mas talvez fosse bronquiolite. Asma não, a não ser que tivesse ataques de asma até hoje. Dos cinco aos oito anos eu tinha estes pequenos ataques, seja por correr muito, ou quando ficava “nervoso” - tive de interrogar a minha mãe, pois não me lembrava de muita coisa. Tenho lembranças, isso sim, do meu encontro com o nebulizador. Não era nada cotidiano: esporadicamente lá vinha o nebulizador, com Berotec e Atrovent. Lembro do verde-e-amarelo da caixinha. O vapor se formava e dançavam as gotinhas dentro do tubinho plástico, antes de ir para a máscara que eu segurava disciplinadamente na boca, sentindo o leve gosto salgado.

Então tiveram a idéia: vamos dar café para o menino. Cafeína = (metil)xantina, xantina = broncodilatador. Nada a se estranhar, sendo o filho de uma farmacêutica e tendo como pai quem viveu o costume antigo, do interior do ES, de passar o “café forte” (a primeira passada de água pelo coador de pano) e o “café fraco” (a segunda passada, para as crianças). Todos os dias eu tomava café, com um pouco de leite, e um golinho de café puro.

Meu pai diz que o café me “curou” da bronquite. Fui promovido para o café forte desde criança, e até hoje estranho quando alguém exclama “não dá café pro menino!”.

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