sábado, 20 de dezembro de 2008

A maravilhosa leitura de Dogen, 7 séculos e meio depois

Dogen Zenji, nascido em 1201, é o fundador, no Japão, do que mais tarde seria conhecido como a escola Soto do zen japonês.

Seus textos começaram a me fascinar de uns anos para cá, e depois de ler algumas traduções eu, um tanto descontente com a esterilidade de alguns textos, começo a passar o dedo em cima do texto japonês original. Somente, claro, para ter alguma idéia melhor de certos conceitos chaves; dizem - pois eu não sei ler japonês - que o texto de Dogen é um japonês medieval que os japoneses modernos não necessariamente entendem, à primeira vista.

Digo maravilhosa leitura pois os textos são muito bonitos e bem escritos. Recomendo o Genjokoan e o Fukanzazengi, para início de conversa - e para final, também, pois são os dois para onde sempre volto, tirando o Bendowa.

Caso você, caro leitor, tenha dado uma passadinha de olhos na literatura zen online em inglês, notará a abundância de uma determinada expressão - realization - para definir uma coisinha estranha. Realization anda sempre junto com enlightement, o que todos já sabemos o que é, pois todos vimos o filme com o Keanu Reeves, e actualization, a palavrinha marota que me lembra um dos primeiros trabalhos acadêmicos em psicologia, sobre Maslow.

Realization/enlightement/actualization; grosso modo, a obtenção/percepção/alcançamento/realização (tornar real)/iluminação/despertar. Cabe ao tradutor e autor escolher a palavra que melhor lhe cabe: na maioria das vezes muitos optam por realization, que é uma palavra maravilhosa que recolhe 4 significados expressivos em um:

perceber/tornar-se consciente, conseguir/alcançar alguma coisa, acontecer, produzir/tornar real.

A questão é que este tal de realize é um conceito fundamental nos textos de Dogen, e pela falta de uma tradução decente em português e na vontade de saber um pouco mais sobre "o que ele quis dizer", eu fui dar uma olhada - e demorei para achar, mas achei.

Dogen nos diz, em poucas palavras, que praticar o budismo - neste caso o zazen, a meditação sentada - para alcançar a "iluminação" é ir cada vez mais longe dela. Como Sawaki roshi dizia: zazen é bom para nada, não há nada a se ganhar no zazen. Sentar-se em zazen é simplesmente sentar, shikantaza; shikan é "simplesmente" fazer algo. Mas, continua Dogen, mesmo que a prática do zazen, tão enfatizada por ele, não "traga nada", sentar-se em zazen é iluminação/despertar - realization - por si mesmo. Vamos dar uma olhadinha mais de perto.

Dogen nos traz esta expressão, comumente traduzida como practice/realization, ou prática/esclarecimento, prática/iluminação. Em japonês, ou melhor, em chinês ajaponesado [leitura on-yomi, leitura chinesa dos ideogramas], é shushô.

[Dogen escrevia alguns textos em chinês com pitadinhas japonesas, e outros em japonês mais cotidiano. A mesma coisa faziam outros autores, tanto em religião, filosofia, arte. Descartes, p. ex. escrevia alguns textos em latim, e outros no francês cotidiano. Usualmente quando o contexto era mais formal usa-se a língua mais "eclesiástica".]

shu é "prática", no sentido de uma disciplina, um treino, um estudo, um cultivo. Lembremos que um dos sentidos de "meditação", no páli original da época do Buda, é de "cultivar". A prática não se restringe somente ao meditar.

shô é mais difícil. No japonês moderno tem o sentido de provar, confirmar, verificar, certificar, e é usado em muitas construções relacionadas a certificados, provas, autenticação. Provavelmente seria um erro tomar a acepção moderna e fingir que nada tenha mudado desde Dogen; mas, ao mesmo tempo, é de se pensar por que este termo e não outro mais direto, como iluminação, (satori, go) despertar/bodhi (kaku), p. ex., tenha sido usado. Além do mais, diversos tradutores modernos optam por traduções como "verificação".

[ofereci links para os kanji por problemas de configuração do blog]

"Verificação" do quê, porém? O que é verificado com ou através da prática, sendo que prática e "verificação" são atividades conjuntas?

No começo do Fukan Zazengi Dogen coloca quatro questões, a primeira sendo conhecida como a pergunta que o incomodou durante tanto tempo, até ter encontrado uma "resposta" na sua viagem para a China:
O despertar do Buddha originalmente permeia tudo; como pode ele depender da prática e da experiência/verificação? ["Prática e experiência" são shushô.]
Ou, em outras palavras: se dizem que a natureza de buddha está em todo lugar, qual a necessidade de praticar?

Anos depois, em um texto [Genjo Koan] que escreve para um leigo (um não-monge), Dogen, depois de expor poeticamente o ponto de vista do despertar, termina com uma pequena historinha, um koan:
Hotetsu Zenji do monte Mayoku estava se abanando. Um monge se aproxima e pergunta: “Dizem que ‘NATUREZA DO VENTO SUBSISTE ETERNAMENTE, NENHUM LUGAR NÃO VISITADO.’ Então por que o mestre também usa um leque?” O professor responde: “Você somente entende que a brisa é, por natureza, constante, mas não entende a idéia que não há lugar que ela não tenha alcançado.” O monge disse: “O que quer dizer, então, qual é a idéia de NENHUM LUGAR NÃO VISITADO?” Neste momento o mestre simplesmente se abanou. O monge junta as mãos em profundo respeito.
E acrescenta:
Tal é a experiência que valida a doutrina buddhista, sua verdadeira mensagem tornando-se viva. “Eu não preciso usar um leque, pois de qualquer forma eu sentirei a brisa, se ela for realmente constante”. Falando assim perde-se o sentido tanto de constância quanto da natureza da brisa.
Prática e experiência não estão separadas, para Dogen; ou, "se você fizer a menor diferenciação, criará um abismo maior do que aquele entre céu e terra." É neste ponto que os ensinamentos budddhistas se tornam redundantes, e que a prática/experiência entra com força total. Voltando mais uma vez para o Genjo Koan:
Vendo as coisas como coisas Buddhistas [de um ponto de vista buddhista], então temos sabedoria e prática, temos vida e morte, temos buddhas e seres sencientes.
Quando todas as coisas não tem uma essência, não há nem delusão nem satori, não há nem budas nem seres sencientes, não há nem começos e nem fins.
O caminho do buddha plana acima da extravagância do primeiro e da austeridade do segundo, unindo começos com fins, unindo delusão com satori, unindo ser senciente com buddha.

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