sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Anos e anos atrás li um livro chamado Sugar Blues. O título, em português, é inglês mesmo. William Dufty - também adepto da macrobiótica e o que a Wikipedia chama de ativista nutricional - faz um relato nervoso da história do açúcar no ocidente - lembra-me Galeano em suas veias abertas da América Latina -, e alerta com relação ao consumo - que ele considera excessivo - de açúcar.

Eu achei digno. Digo, o livro. Tirando as idéias mais radicais - que eu não vou dar o prazer de dar-lhes de bandeja assim - os argumentos são válidos e o livro é bem divertido. É preciso dar apenas uma colher de chá de confiança na confiança do autor nas teorias macrobióticas e quetais.

Eu, por meu lado, tive a minha experiência macrobiótica anos atrás e descobri o óbvio. O óbvio que a minha gurua alimentar, Sonia Hirsch, também descobriu. O óbvio que são conceitos pragmáticos e verificáveis, estes da "macrobiótica". Tente e verifique. E depois volte a comer um pouco de tudo.

Então eu dei uma colher de chá de confiança. E valeu a pena.

A história do açúcar é paradigmática. Assim como a nossa história recente será - eu tenho absoluta certeza - metaforizada e pensada a partir do "lixo", num futuro qualquer, a história do ocidente moderno anda e andou lado a lado com o açúcar, num ritmo cada vez mais crescente desde a "topação" do Novo Mundo e a colonização posterior. Em poucas palavras, de luxo para poucos passou a mercadoria extremamente barata para quase todos. O preço do açúcar, não é uma loucura? Baratérrimo. E ainda tem gente que reclama.

Soa triste aos meus ouvidos, porém, a história que ouvi recentemente, de um documentário brasileiro recém-produzido: a da mulher que, por falta de comida melhor, alimentava seus filhos com água e açúcar durante alguns dias. Tinha alguns que ela podia dar coisa melhor, um arrozinho ou feijão. Muita gente deve passar por isto. Não é de admirar que as crianças tinham dor nos dentes.

Alguns talvez até pensem: mas uai, água com açúcar, deve ser bom, afinal açúcar é glicose, carboidrato, energia. É isso sim, mas somente isto, e nada mais. Dufty enfatiza exatamente isto: o açúcar branco, refinado, puro, é o ponto final de uma cadeia que começa ou com a cana-de-açúcar ou beterraba, passando pelos melados, pelos açúcares não-refinados e enfim terminando com o açúcar branco. Ele o compara com a heroína - também um pó branco altamente refinado do suco da papoula, e também para reforçar a imagem do açúcar como "droga".

Suspendamos a imagem por aqui, porém. Pensemos somente que aquele delicioso caldo de cana que eu tenho a sorte de poder tomar, nas tardes de verão no Mercado Público, foi tirado da cana ainda verdinha e fresca, cheia de outras coisas além de glicose: sais minerais e vitaminas. Os caldos de cana e melados, todos sabemos, são ricos em ferro e fósforo e outras coisinhas. Estes últimos são progressivamente diminuídos, a cada degrau a mais no refino do açúcar, restando no final uma sacarose quase pura. Sacarose sem seus acompanhantes no metabolismo, acompanhantes que estariam presentes se nada fosse perdido no processo.

Eu me considero um "naturalista", quando se trata de comer. Tenho em mente que comer, além de ser gostoso e tudo o mais, é uma relação orgânica primal, uma das mais antigas na natureza. Antes mesmo de ver, comíamos. Antes mesmo de pensar, comíamos. Quer dizer, uma estrutura/servivo/whatever retirava de outra estrutura/servivo/whatever o que fosse preciso para renovar esta estrutura. Absorver. Metabolizar. Tirar dali para pôr aqui. Trocas tróficas. Interdependência pura. O que significa ser "naturalista", neste sentido?

Significa pensar que temos uma história de metabolismo, como organismos, nós primatas pelados; pensar que a nossa história alimentar tá ligadinha ali com o que somos hoje. E que há maneiras de comer que não só são mais eficientes, mas que também provocam mudanças no metabolismo e podem mexer com coisas tão diversas como o humor ou o pensamento. Bem, nem são tão diversas assim.

O tripé da alimentação brasileira, nas zonas urbanas, é composto por carboidratos complexos refinados (massas, farinha branca), gorduras e açúcar. Proteínas também estão presentes, mas muita gente simplesmente não tem dinheiro para comer carnes e leguminosas com frequência. Poucas fibras e minerais e vitaminas - mesmo que a farinha seja vitaminada, hoje em dia. Eu sei, eu sei que estou falando como um nutricionista, e vou então concluir de uma vez: não me admira que a obesidade esteja crescendo cada vez mais, juntamente com a diabetes tipo 2, em menor escala. E, ironicamente, não necessariamente nas classes que alimentam-se melhor, mas nas classes média-baixa e baixa. A obesidade não é mais coisa de gente rica. É verdadeiramente democrática.

Mas não só a obesidade. Também o humor. Também uma certa forma de vitalidade ao comer bem. Um dieta crônica, "engordativa", com altos teores de açúcar e uma certa baixa metabólica nos oligoelementos - gostasse dessa, não? - tem tudo para deixar uma pessoa mais cansada, mais mal-humorada. Mas aqui eu já extrapolo, embora não sem razão.

Na época dos grandes césares, não existia o açúcar refinado. Tampouco o chocolate. Nos triclínios, no máximo, o mel e os melados tirados de árvores davam a sua presença. Coisas mais caras que R$ 1,99 o quilo. Gerações passaram a léguas de doçuras diárias. A doçura foi, durante muito tempo, um sonho; o paraíso era cheio de frutas dulcíssimas; o mel exsudava de flores melífluas, e todos podiam fartar-se deste dulçor. O bebês nascem gostando do sabor doce, e nisto encontram seu gosto embalado pelo leve doce do leite materno.

Hoje o paraíso fica mais do lado da heroína, para muitos.

"Se você encontra mel, coma apenas o suficiente, para não ficar enjoado e vomitar." (Provérbios, 25:16)

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