segunda-feira, 15 de janeiro de 2007

Andorinha-inha


Ele acordou no meio da noite e constatou, surpreso, que tinha tido sonhos eróticos. Só se lembrava com precisão do último deles: uma mulher gigante nadava nua numa piscina, era pelo menos cinco vezes maior do que ele e tinha a barriga coberta por grossos pêlos que iam das coxas ao umbigo. Olhava-a da borda da piscina e sentia-se muito excitado.
Como pode ficar excitado com o estômago doendo e com o corpo enfraquecido? Como podia ficar excitado ao olhar uma mulher que, se estivesse acordado, só lhe inspiraria repulsa?
Disse a si mesmo: existem duas rodas dentadas que giram em sentido inverso no mecanismo de relojoaria do cérebro. Numa estão as visões, na outra as reações do corpo. O dente sobre o qual está gravada a visão de uma mulher nua encaixa no dente oposto, sobre o qual está inscrito o imperativo da ereção. Quando a engrenagem se altera, por qualquer motivo, e o dente correspondente à excitação entre em contato com o dente sobre o qual está desenhada a imagem de uma andorinha em pleno vôo, nosso sexo se endurece à vista da andorinha.
Aliás, ele lera um estudo no qual um de seus colegas, especialista em sono, afirmava que um homem que sonha está sempre em ereção, seja qual for o sonho que tenha. A associação da ereção com uma mulher nua não era, portanto, mais do que um regulagem escolhida pelo Criador entre mil outras regulagens possíveis para ajustar o mecanismo de relojoaria na cabeça do homem.
O que existe de comum entre tudo isso e o amor? Nada. Basta que uma roda da engrenagem desvie uma fração de milímetro na cabeça de Tomas para que ele fique excitado só de ver uma andorinha, o que não muda em nada o seu amor por Tereza.
Se a excitação é um mecanismo que depende de uma capricho de nosso Criador, o amor, ao contrário, é aquilo que só pertence a nós, e pelo qual escapamos do Criador. O amor é nossa liberdade. O amor está para além da necessidade, para além do "es muss sein!" ["tem de ser!"].
Mas nem isso é a verdade inteira. Mesmo que o amor seja algo diferente do mecanismo de relojoaria da sexualidade imaginado pelo Criador para seu divertimento, ele é, ainda assim, ligado a esse mecanismo como uma doce mulher nua se balançando no pêndulo de um enorme relógio.
Tomas diz a si mesmo: associar o amor à sexualidade é uma das idéias mais bizarras do Criador.
Pensou ainda: a única maneira de salvar o amor da tolice da sexualidade seria acertar o relógio de maneira diferente em nossa cabeça, para que pudéssemos ficar excitados com a visão de uma andorinha.
Embalou-se com este doce pensamento. À beira do sono, no espaço encantado das visões confusas, de repente teve certeza de que acabara de achar a solução para todos os enigmas, a chave do mistério, uma nova utopia, o Paraíso: um mundo em que se tem uma ereção diante de uma andorinha, e em que podia amar Tereza sem ser importunado pela tolice agressiva da sexualidade.
Voltou a adormecer.

Milan Kundera, A insustentável leveza do ser. 5, #22.

Esta passagem é infinitamente mais rica e mais vívida dentro da história de Tomas e Tereza e Franz e Sabina que eu reli, em uma sentada de seis horas ininterruptas (minto, comi polenta no meio).

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