terça-feira, 29 de agosto de 2006

Il y a?

Lembrando que, para um ponto de vista psicanalítico, homens e mulheres são definidos de formas diferentes com relação à ordem simbólica - independente de sua constituição biológica/genética. Este é o ponto de vista psicanalítico. Êêê. Assim, o texto abaixo não fala somente de homens e mulheres como os portadores de pênis ou vagina.

Tendo dedicado metade de um século ao estudo do amor, do sexo e da linguagem, Lacan apareceu, no final da década de 60, com uma dessas expressões-bomba pelas quais era tão bem conhecido: "não existe a relação sexual" ("il n'y a pas de rapport sexuel").

A redação em francês é ambígua na medida em que a expressão rapports sexuels pode ser usada para simplesmente se referir ao ato sexual. Entretanto, Lacan não estava afirmando que as pessoas não tinham relações sexuais - uma alegação no mínimo ridícula; o uso da palavra rapport aqui sugere uma esfera mais "abstrata" de idéias: relação, relacionamento, proporção, razão, fração e assim por diante.

De acordo com Lacan, não há nenhuma relação direta entre homens e mulheres uma vez que são homens e mulheres. Em outras palavras, eles não "interagem" uns com os outros como homem para mulher e mulher para homem. Alguma coisa impede tais relações; algo desvia estas interações.

Existem muitas maneiras diferentes de se refletir a respeito do que tal relação - se ela existisse - poderia envolver. É possível pensar que teríamos algo parecido com uma relação entre homens e mulheres se pudéssemos defini-los em termos um do outro, digamos, como opostos, yin e yang, ou em termos de uma inversão complementar simples como atividade/passividade (o modelo de Freud, se bem que insatisfatório até para ele). É possível até mesmo associar a masculinidade a uma curva seno e a feminilidade a uma curva co-seno, uma vez que isto nos permitiria formular algo que poderíamos tomar como uma relação sexual da seguinte forma: seno(ao quadrado)x+co-seno(ao quadrado)x=1.

[Segue uma figura de um gráfico com as duas funções, com uma diferença de fase de meio pi]

A vantagem desta fórmula específica é que ela parece explicar, de forma gráfica, a descrição de Freud dos diferentes tipos de coisas que os homens e as mulheres procuram um no outro: "Têm-se a impressão de que o amor do homem e o amor da mulher psicologicamente sofrem de uma diferença de fase" (vol.XXII, p. 164). Aqui, apesar da heterogeneidade aparente das curvas masculina e feminina, apesar de seus tempos distintos, seria possível combiná-los de tal forma a torná-los um.

Mas, de acordo com Lacan, tal igualdade é impossível: nada que se pudesse qualificar como uma relação verdadeira entre os sexos pode ser falado ou escrito. Não existe nada complementar a respeito desta relação, nem existe uma relação inversa simples ou algum tipo de pararelismo entre eles. Ao contrário, cada sexo é definido separadamente com relação a um terceiro termo. Consequentemente, só existe uma não-relação, uma ausência de qualquer relação direta imaginável entre os sexos.

Lacan procura mostrar que (1) que os sexos são definidos separada e diferentemente, e (2) que seus "parceiros" não são simétricos nem sobrepostos. Os analisandos demonstram dia após dia que seus sexos biomédica/geneticamente determinados (órgãos genitais, cromossomos, etc.) podem estar em conflito com conceitos socialmente definidos de masculinidade e feminilidade e com suas escolhas de parceiros sexuais (ainda concebidas por muitas pessoas como estando baseadas nos instintos reprodutivos). Os analistas são, portanto, diariamente confrontados com a inadequação de definir a diferença sexual em termos biológicos.

Bruce Fink, O sujeito lacaniano. Jorge Zahar; 1998.

0 comentários: