sexta-feira, 5 de maio de 2006

Seria Horácio epicurista?

[Adendo do dia seguinte, seis de maio de dois mil e seis, data do sesquicentenário do nascimento do médico vienense, forefather da psicanálise, vida doçura esperança salve salve Sigmund Freud {lê-se "fróid"}. Sim, Quinto Horácio Flaco tinha sua ampla raiz epicurista. Depois de uma estafante busca pela internet encontrei fontes fidedignas deste fato, e descobri que Epicuro falava umas coisas muito mais interessantes do que eu imaginava, e que eu sou um cara tão genial que acabei sendo epicurista na minha pontuação da poesia, mesmo conhecendo três linhas biográficas sobre a vida de Epicuro, tirada de um velho manual de filosofia qualquer. Mentira, é que o epicurismo tem um pontos de contato com o pensamento budista. O texto, assim sendo, está sendo reescrito para o futuro próximo.]

Estou passando por uma época complicadinha. Não entro em detalhes, mas estava recentemente procurando alguma peça de literatura que refletisse este velho drama, o drama do amor e da separação; não o drama do amor-resto de um, e de outro que não ama mais. Falo sim do amor de dois, separados. Procurei, e algumas coisas que encontrei não me satisfaziam. Principalmente Romeu e Julieta, muito cristão, que a única parte que eu gosto é a linda declaração de amor dos dois.

Eu sou muito (pós?)moderno para ser romântico!

Hoje de manhã, do nada, me lembrei do Horácio, a tal falada ode do Horácio (Odes, I.11), que uma época eu cheguei a ter escrita em letras grandes no meu quarto, mas nunca eu parei para ler direito como eu fiz hoje. Ela fala o seguinte (a tradução depois é minha; valeu, Perseus!!):

Tu ne quaesieris, scire nefas, quem mihi, quem tibi
finem di dederint, Leuconoe, nec Babylonios
temptaris numeros. ut melius, quidquid erit, pati.
seu pluris hiemes seu tribuit Iuppiter ultimam,
quae nunc oppositis debilitat pumicibus mare
Tyrrhenum: sapias, uina liques et spatio breui
spem longam reseces. dum loquimur, fugerit inuida
aetas: carpe diem quam minimum credula postero.

Não queiras, Leuconoê - é ímpio - conhecer o fim que a mim, a ti, deram os deuses, e nem tentes os cálculos dos babilônios. Quão melhor suportar o que quer que virá! Sejam vários invernos, ou seja o último que Júpiter nos concede, e que agora enfraquece o mar Tirreno contra as pedras; sejas sábia, filtres os vinhos, e corte todas as longas esperanças, sendo nosso tempo breve. Enquanto nos falamos fogem os nossos instantes, invejosos: colha os dias, confiando o mínimo no futuro.

Enfim, estava bem ali, debaixo do meu nariz este tempo todo. Sentei-me hoje então e escrevi uma pequena análise leiga, baseado no que eu conheço, e algumas questõezinhas interessantes, esclarecendo e aumentando o pouco o sentido e o significado de algumas palavras e expressões. Não seria nem uma análise, e sim alguns pontos interessantes.

O que se segue é este texto.

Nefas é a palavra para "contra a lei divina". Sendo este poema romano e pagão, seriam as vontades e leis dos deuses; impiedade seria, por exemplo, a húbris, o orgulho humano em se exceder acima de sua medida (p. ex, de conhecer o que lhe reserva a vontade - ou mesmo o capricho, pois os deuses são caprichosos - do Olimpo). Este é um conceito grego, mas creio que pode se aplicar neste poema de Horácio. Os "cálculos (números) dos babilônios" se refere à astronomia caldéia - à previsão de um futuro através de sinais externos.

E por que seria "tão melhor" suportar o que vier? É uma boa pergunta. Eu mesmo estou me fazendo ela a torto e a direito. De três uma: ou há o destino, e mesmo que o pudéssemos prever não poderíamos controlá-lo; não há destino certo e seguro, e neste caso poderíamos conhecê-lo um pouco e controlá-lo um pouco, talvez muito pouco; ou não há destino. As Moiras, na mitologia greco-romana, eram as três deusas: uma fiava o tecido da vida, outra media o comprimento dele, e outra o cortava. Mas, mesmo assim, as vidas dos homens eram como folhas de árvores, sujeitas à vontade e necessidades dos deuses. Como fica esta questão?

Em qualquer um dos três casos, porém, não vale a pena saber do futuro. Em um, porque ele não vai mudar; em outro, porque ele é incerto, e no terceiro, porque não dá pra saber.

Os invernos e os verões e demais estações que se repetem e, apesar de ser cíclicos, marcam a linha reta unívoca que marca a vida humana; este mesmo inverno (se) enfraquecendo, debilitando (e a primavera começa antes do inverno terminar...) ao bater e bater e bater as ondas contra a barreira de pedras lambidas por muito tempo pelas mesmas ondas da água do mar Tirreno (pumex significa pedra, em geral, especialmente estas pedras erodidas pela água). Que visão magnífica! As pedras lentamente sendo dilapidadas pela água, pedras onde o próprio inverno deixa de ser... Quão prático, numa cena dessas, usar a palavra "inverno" para invocar um tempo natural e cíclico, sendo que o "inverno", tal como nós vemos, morre a cada ano...

Filtrar os vinhos, isto é, passar o vinho por peneira ou coador para retirar as impurezas: os pedaços de casca e de fruta ainda presentes, pedrinhas, os sais que se formam no fundo, e a parte da borra que ainda permanece. Como todos os visitantes da cantina da Pipa sabem (ou da sua cantina de vinhos coloniais local) vinho com impurezas dá uma dor de cabeça!, além de não ser a coisa mais fantástica de se tomar na vida. A sabedoria - invocada anteriormente - pode ser também a sabedoria de tomar dos próprios vinhos. Aliás, se uma pessoa filtra os seus vinhos, há uma grande chance de que a mesma os tenha produzido (e talvez plantado e talvez colhido e talvez pisado as uvas). Quer dizer, a pitadinha de ponos, de sofrimento/trabalho duro, presente na vida cotidiana.

Spatio brevi é ablativo absoluto de razão, "sendo a extensão (da vida) curta".

Spes longam é a "esperança que se estende (muito no futuro)"; "de uma vida curta corte todas as esperanças que apontam demasiado além". Quer dizer, não são todas as esperanças a ser cortadas de uma tal vida curta, mas sim estas longas esperanças. Aiaiai...

"O tempo invejoso nos foge enquanto falamos". Este inuida, além de invejoso, pode significar algo que nos odeia, algo que não nos é favorável. "Estamos aqui a falar, Leuconoê, e eu a te contar para colher os dias, enquanto estes mesmos dias estão a correr por baixo do nosso nariz". Invejosos do quê? Eu não sei. Me parecem mais impiedosos de não conceder a nós o que tanto queremos - o desejo de que eles não passem, o desejo de termos algo aqui para sempre.

E então chegamos a um ponto importante, o famoso carpe diem. Colha os dias, imperativo. Quando se trata de plantas, carpo quer dizer colher como se colhe uma flor, ou uma fruta. Para animais, é se alimentar (tomar como nutrição) de (plantas). O carpe do Horácio faz uso de quase todos os usos do verbo carpo, desde colher até alcançar, juntar, aproveitar, usar, perseguir, gastar. Me agrada, porém, pensar que este carpo me relembra os vinhos a ser filtrados. Os dias (momentos) podem ser como moscas para um rã, prontos a ser rapidamente agarrados (e usados, gastos, comidos, um atrás do outro...), mas de que forma, se não somos rãs?

Eu retomo este ponto por causa do significado que carpe diem acabou tomando com o tempo, desvinculado do seu contexto aqui no poema. "Aproveite o dia" é uma frase simples e equívoca demais, podendo ser lida de várias formas. Procure rapidamente na internet por carpe diem e literatura, e verás de tudo, desde os sonetos engraçadíssimos do século XVI (um dos quais traduzi, faz muito tempo, aqui - relevem que faz tempo), até definições e defesas do hedonismo. No poema inteiro, certamente, Horácio fala da brevidade da vida, de como ela nos foge em cada momento. Ao pedir a Leuconoê, porém, para que seja sábia e filtre os vinhos, ele está simplesmente pedindo que ela seja uma sábia hedonista e prefira uns prazeres que outros, somente?

A última frase pode apontar para um possível sentido: confiando o mínimo no (dia) posterior. Credulus é a mesma que o nosso crédulo: o que acredita com facilidade, sem suspeita. Acreditar no quê, porém? Acreditar que um dia seguirá o outro, certamente, e que amanhã certamente o sol levantará no leste e se porá no oeste. E talvez acreditar nos prazeres futuros, e nos sofrimentos futuros, o que não deixa de ser o destino, ao meu ver. Quam minimum credula postero, acreditando o mínimo. Acreditar e esperar, acreditar "um mínimo" e esperar "não muito além".

Até onde? Esta é uma pergunta fantástica que eu tenho me feito todos os dias.

[Aliás, para os budistas, estes últimos pensamentos podem ter lembrado, mesmo que de longe (para mim foi muito de perto) a famosa reflexão sobre a morte, que para muitos parece um pensamento pessimista, mas é uma prática que traz uma reflexão muito profunda.]

1 comentários:

Vitor Eduardo disse...

Sublime. Gostei muito mesmo. Você ficaria surpreso de ver como o que você escreveu encaixa no que eu estou passando aqui e nas coisas que tenho conversado com alguns agora que cansei de futilidade.
Mas ainda espero ansiosamente um contato seu. Não quero continuar mandando mensagens para o vazio.