domingo, 4 de setembro de 2005

Dias muitos interessantes, estes últimos. Por onde começar.

Na sexta-feira, o dia inteiro dentro do meu quarto, pausa para uma caminhada no sol da tarde. Arrumando. tirando do armário aqueles quilos e quilos de papel (perto de quarenta, no total) que compunham textos e textos da facul, as milhares de outras coisas e, principalmente, as minhas cartas.

Lá pelos idos de 98-00 eu costumei trocar muitas cartas com muita gente. Maioria delas naquele negócio de excers e trekkers, que naquela época eu gostava bastante de X-files e Star Trek, mas isto é assunto pra outro dia. Eu já fui um pouco nerd, vocês precisam saber.

Havia também umas dezenas de cartas de amores, estas coisas. Muitas eu não cheguei a abrir, mas não consegui resistir a abrir algumas delas. E uma delas eu não resisti à idéia de guardá-la, novamente.

Só guardei, também, aquelas das duas pessoas com quem eu ainda me comunico. Adeus, Fernanda, Marjorie, Márcio, Roberta, Mari Sakaki, Dani Kumada, Valmir, Leonardo, ....

Maior surpresa foi redescobrir os apelidos carinhosos trocados. Pinguinzão foi o mais surpreendente deles, pois eu realmente não me lembrava. O resto é silêncio.

E alguns escritos, poemas, poemetos e pequenos textos dos meus 15, 16, 17 anos! Muitos, isso eu encho a boca para falar, me encheram de orgulho. São bons. Pra idade, são bons. E não estão na minha "gênese": são inéditos.

Impressão de uma viagem a Ouro Preto, nos meus 17:

Esta cidade é uma delícia para descer de bicicleta.
Descer somente.

Autocomentário:

"Olhe só" disse lucas [sic] ao se secar e botar a roupa ainda dentro do banheiro "a gente muda". Mais tarde, ao pendurar a camiseta azul no espelho, de modo que não amassasse para o dia seguinte, ele se perguntou se este ato não teria nada de simbólico a contribuir para a sua mitologia. Tenho pena deste meu rapaz.

Pequena poesia; a letra indica os 15-16 anos:

O que é tão assustador
e atraente agora
é que você vai acordar
sozinho

Um dos meus
melhores defeitos
é não enxergar
poesia
na poesia

Você pode?
Me diga
as suas dores não serão mais minhas

Você me escreve, me enrola,
me dá um tapa, ou um fora
mas eu gosto
seu realce traçado no rosto
e assim eu esqueço todo o resto

Que nome dar? "Masoquista"?

Eram nove horas da noite, indo pras dez, e eu ainda de vassoura em punho, arrancando as pobres aranhas dos cantos mofados da parede do leste, quando me ligam e pedem a minha presença. Eu vou, tomo uísques aqui e ali, com adições indianas, e tenho uma boa noite.

Algumas ressecas minhas me deixam com uma paz de espírito deliciosa. Nesta, eu não sabia que Mariana tinha acabado de descer do avião logo que eu acordei. Vinda da Bósnia e Croácia depois de três meses, Mari me presenteou com uma barra de Milka dos Balcãs, na tarde noite e madrugada que eu, Liz, Kati e ela ficamos conversando longamente, muito de sexo tantra e estas coisas, tomando suco de vinho.

Falta aqui, porém, os dois arremates: um pertence ao futuro, o qual não ouso tocar, e o outro foi uma chuvosa e bela tarde de quinta-feira.

Tenho esta vontade de deixar as palavras correrem soltas, a encontrar quem ou o quê que lhes creia, sinta ou afague. Dá alguns problemas, mas vale a pena, no final das contas. Pois no final das contas há um fecho, para não deixar as pérolas caírem no chão, e no final das contas que palavra há de bastar?

Quinta-feira, depois do café, senti vontade de ler um trecho do "Memórias de Adriano", da Yourcenar. Aquele que fala da "nuvem vermelha de que a alma é o relâmpago".

Não conheço, fora do amor, outra situação em que o homem deva decidir-se por motivos mais simples e mais inelutáveis. No amor, o objeto escolhido deve valer exatamente seu peso bruto em prazer, e é ainda no amor que o amante da verdade tem maiores probabilidades de julgar a nudez da criatura. A partir do desnudamento total, comparável ao da morte, de uma humildade que ultrapassa a da derrota e a da prece, maravilhamo-nos ao ver renovar-se, cada vez, a complexidade das recusas, das responsabilidades, das promessas, das pobres confissões, das frágeis mentiras, dos compromissos apaixonados entre nosso prazer e o prazer do outro, tantos laços impossíveis de romper e tão depressa rompidos! esse jogo cheio de mistérios, que vai do amor de um corpo ao amor de uma pessoa, pareceu-me belo o bastante para consagrar-lhe uma parte de minha vida. Aspalavras enganam, especialmente as do prazer, que comportam as mais contraditórias realidades, desde as noções de aconchego, doçura e intimidade dos corpos, até as da violência, da agonia e do grito. A pequena frase obscena de Posidônio sobre o atrito de duas parcelas de carne, que te vi copiar nos teus cadernos escolares com aplicação de menino ajuizado, é incapaz de definir o fenômeno do amor, assim como a corda que o dedo faz vibrar não pode explicar o milagre dos sons. Essa frase insulta menos a volúpia do que à própria carne, esse instrumento de músculos, sangue e epiderme, essa nuvem vermelha de que a alma é o relâmpago.
Confesso que a razão permanece confusa em presença do prodígio do amor, da estranha obsessão que faz com que essa mesma carne, que tão pouco nos preocupa quando compõe nosso corpo, limitando-nos somente a lavá-la, nutri-la e, se possível, impedí-la de sofrer, possa inspirar-nos uma tal paixão de carícias simplesmente porque é animada por uma personalidade diferente da nossa e porque representa certos traços de beleza sobre os quais, aliás, os melhores juízes não estariam de acordo. Aqui, como nas revelações dos Mistérios, tudo se passa além do alcance da lógica humana.

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